segunda-feira, 23 de dezembro de 2013

Belo Horizonte ou a mediocricidade

É impossível olhar para Belo Horizonte e não desejar ir embora daqui. Não que os problemas da cidade sejam exclusivos; na verdade, quase todos eles são brasileiros ou universais, mas Belo Horizonte tem uma vocação especial para a mediocridade. Tendo nascido e vivido aqui todos os anos da minha vida – ao contrário de grande parte de belo-horizontinos natos ou não, que ignoram até mesmo como se grafa seu gentílico, a começar por suas maiores autoridades, que fugiram daqui assim que puderam ou correm para longe nos feriados, nos fins de semana ou mesmo para dormir – tenho direito de dizer isso.

O prefeito desapropria um lote na Avenida do Contorno com Avenida Prudente de Morais, usa a esquina para alargar o acesso dos veículos à avenida, cimenta o resto, põe uns bancos sem encosto e uma enorme placa indicando que se trata de uma obra da prefeitura. Obra para quem? No máximo alguns trabalhadores vão se sentar ali no horário de almoço em dias sem chuva e sem sol, porque lá não tem uma sombra sequer para as pessoas se abrigarem. O que foi feito ali foi mais um não-lugar, como inúmeros, infinitos, que cada obra municipal cria na cidade. Beneficiados, além dos carros, só mesmo a empreiteira que provavelmente deu dinheiro para a campanha do prefeito.

Uma chuva torrencial caiu agora na cidade. Cai sempre, em todos os verões, desde que a cidade existe. Alaga muitos locais. E o que a prefeitura faz? Espalha placas avisando os moradores para não passarem por esses lugares quando chover. A cidade alaga porque está toda impermeabilizada com asfalto e edifícios, o solo não a absorve e a canalização não é capaz de recebê-la toda. Mas a prefeitura – e seus amigos do governo do estado – nada faz para mudar isso, ao contrário: cada vez asfalta mais e constrói (autoriza a construção de) mais edifícios! É uma mediocridade absoluta, não por burrice ingênua, mas por burrice gananciosa, já que é com as construções que o prefeito e seus seguidores ganham, e ganham as empresas que o sustentam e para quem ele trabalha.

Esta é a cidade que temos, a cidade em que nasci e vivo. O que este local possuía de bom, quando foi escolhido para ser sede da nova capital, era a natureza: os ribeirões e córregos, a Serra do Curral, o clima. A única coisa que se fez para melhorar a cidade desde então foi a Pampulha: a represa com orla de 18 quilômetros, as belas construções de Niemeyer. Mais nada. Fora isso, a cidade tem o Parque das Mangabeiras, subutilizado, um belo e grande parque para a elite que mora no melhor bairro da cidade, na sua parte mais alta, o único que pode ser chamado assim; há mais alguns parques pequenos, cercados, inacessíveis à noite – o parque central da cidade foi fatiado, cortado por uma rua, cedido para outros fins, invadido por construções, e acabou reduzido a um terço do seu tamanho original. Qualquer pedacinho de área pública com árvores a prefeitura chama de parque, mesmo quando não passa de uma pracinha.

Cada vez mais os moradores fazem caminhadas, mas são raras as pistas. A Praça da Liberdade é um dos locais preferidos para isso, mas não tem área específica, não tem barras de alongamento, nada. O projeto óbvio para a praça, se não fosse feito por uma administração medíocre, era fechar as ruas laterais e anexar o palácio do governo, sem grades, formando um único e grande espaço público. O que foi feito? Um arremedo de projeto cultural, com muita propaganda, mas medíocre como tudo que os governos municipal e estadual fazem. A única ação efetiva foi danosa para a cidade: a entrega dos imóveis tombados para a iniciativa privada explorar em museus ridículos e desertos.

A Serra do Curral foi minerada e transformada numa casca de montanha. Um ponto que mereceria ser usado para passeios, escaladas, mirante, não só não mereceu até hoje nenhuma ação dos governos, como foi cercada e tornada inacessível à população pelo atual prefeito. Um prefeito que liberou as construções em todos os pontos, tornando ainda mais grave a situação dos bairros na saída para o Rio, que agora possuem altos edifícios, que mudaram as correntes de ar e aqueceram ainda mais a cidade. Um prefeito que vendeu e loteou imóveis públicos para que sejam feitas mais construções na cidade: mais concreto, mais asfalto, mais impermeabilizações, menos áreas verdes, menos áreas públicas. E áreas públicas e verdes são o que os belo-horizontinos mais precisam, justamente porque moram em prédios e não têm mais quintais, nem árvores, nem espaço e nem conhecem seus vizinhos. É nos espaços públicos que os moradores se encontram, e é obrigação da prefeitura de qualquer cidade civilizada não só criar espaços públicos, como mantê-los e oferecer programações de lazer nelas.

Mas a prefeitura medíocre quando constrói espaços públicos faz como fez na esquina da Contorno com Prudente ou na Savassi, uma obra horrorosa, que, logo se vê, não foi minimamente pensada para quem a usa: tem fontes de péssimo gosto, está cheia de obstáculos para os pedestres e, em vez de propiciar novos lugares para os moradores usufruírem, acabou com o que havia de melhor ali, como a Travessa. Mas como o prefeito poderia pensar no que é melhor para a população, se ele nem mora na cidade? Mora numa casa luxuosa, com muito espaço e muito verde, num condomínio localizado num município vizinho! Para não falar no governo estadual, que construiu um ultrapassado centro administrativo no meio do nada e sem transporte, uma cópia extemporânea e esdrúxula das obras de JK, uma pirâmide bilionária que os mineiros pagarão durante décadas, e mais um não-lugar.

Por isso o belo-horizontino que constata a mediocridade sem remédio da cidade deseja se mudar daqui. Não que seus problemas sejam exclusivos, a questão é que Belo Horizonte só tem os defeitos das cidades grandes contemporâneas e nenhuma das suas qualidades. Ao mesmo tempo, perdeu todas as qualidades das cidades pequenas. É uma cidade sem graça, sem encanto, sem riquezas, sem energia, sem salvação. O que tem de bom pode ser citado nos dedos de uma mão: o conjunto arquitetônico da Pampulha (e a lagoa, assoreada, fétida, só paisagem), o Parque das Mangabeiras, seus artistas (Grupo Galpão, Grupo Corpo e outros), o conjunto de bares e restaurantes. Quem viu isso, viu tudo. Só a Pampulha foi construída pelos belo-horizontinos (na verdade por gente de fora: um diamantinense e um carioca), tudo o mais foi destruído em pouco mais de um século. (PS: Acrescento, 8/8/2016, o Mercado Central, local que conserva autenticidade e possibilita a convivência entre todos os tipos de pessoas, hoje o melhor lugar de Belo Horizonte. Mas isso é um alerta: chegará o dia em que a mediocridade autoritária vai tentar destruí-lo, sob pretexto de "modernizá-lo".)

O prefeito diz cuidar de obras para a Copa do Mundo de 2014 – e para tornar a cidade "melhor para o turista" torna-a ainda pior para seus habitantes. Como se uma cidade fosse destinada a turistas. A cidade, antes de tudo, precisa ser boa para seus moradores, não para aqueles que vêm aqui nos visitar, que passam um fim de semana, alguns dias no máximo, mesmo porque não há o que ver nem fazer por aqui. Se a cidade fosse boa para seus moradores, nós teríamos orgulho dela, a faríamos melhor e assim atrairíamos naturalmente os turistas, porque eles gostariam de desfrutar dos encantos que nós estaríamos desfrutando. Mas Belo Horizonte não tem encantos e destruiu os poucos que possuía.

Uma cidade pode ser feia e ter encantos que a tornam peculiar: um calçadão, ainda que seja uma rua só, ou mesmo um quarteirão, tradicional, com personalidade, estabelecimentos antigos que oferecem bons produtos e serviços, frequentado e reconhecido orgulhosamente pelos próprios moradores; um parque que seja o ponto de confraternização geral, o local em que a população se reúne nos momentos mais importantes, nos grandes eventos – eventos de qualidade verdadeira, como um festival de música ou de teatro e outros, não os ridículos, autoritários e medíocres “eventos Coca-Cola”; um bom mercado, público, em espaço agradável e amplo, com as melhores e mais variadas mercadorias vindas de todas as partes ou mesmo com os melhores produtos locais e regionais, e que tenha seus botecos de boa gastronomia, com mesas espalhadas nas calçadas; um bairro com música e casas noturnas de qualidade ou uma região de teatros, cinemas, casas de espetáculos.

Até mesmo um eficiente, confortável, barato e civilizado sistema de transporte público pode ser um encanto local. Ou ainda acontecimentos de qualidade – como festivais de teatro, cinema, circo, música, dança etc., que Belo Horizonte efetivamente tem –, que transformem a cidade durante alguns dias, criando um clima mágico que só com o envolvimento sincero da população é possível – o que Belo Horizonte não tem, porque a administração atual cria dificuldades e os transforma em "eventos Coca-Cola", que afastam e inibem a população.

Se Belo Horizonte tivesse preservado a Lagoa da Pampulha, por exemplo.

Se tivesse preservado os bondes.

Se tivesse preservado a Serra do Curral e a explorado para passeios.

Se tivesse preservado o Parque Municipal.

Se tivesse conservado o casario antigo e mantido o limite de construção de edifícios a cinco andares.

Se preservasse o que a Savassi tinha de bom (o antigo Café Três Corações, a citada Travessa etc.) e incentivasse – ouvindo comerciantes e população – a vocação da região, em vez de transformá-la em mais um não-lugar da cidade.

Se transformasse a Praça da Liberdade no espaço cultural e de lazer para o qual tem vocação e não num conjunto de museus fantasmas em prédios históricos privatizados, frequentemente ocupado com horrorosas e agressivas tendas de "eventos Coca-Cola", um lugar inóspito, no qual não se pode pisar na grama nem entrar no palácio, nem fazer caminhadas direito, nem andar de bicicleta, nem andar na rua.

A Avenida do Contorno tem vocação pra integrar toda da cidade e o transporte coletivo deveria ser pensado a partir dela, inclusive para passeio; em vez disso, é uma via congestionada por carros e inúmeras linhas de ônibus péssimas e desnecessárias.

Enfim, o que é que pode nos atrair nesta cidade, além do Corpo e do Galpão, do abandonado Parque das Mangabeiras e da assoreada Pampulha? Os bares e restaurantes, "a praia dos mineiros", se tornaram pretensiosos e caros; os proprietários gastam tanto em reformas e "modernização" que têm de cobrar preços desonestos por produtos e serviços corriqueiros. Cada vez é mais difícil achar um boteco bom e agradável, daqueles em que a gente se sente em casa, conhece o garçom, pode comer bem, beber boa cerveja e boa cachaça e conversar, sem ser roubado, sem ter de escutar música de má qualidade e alta, sem ser obrigado a ver televisão.

Os belo-horizontinos fogem da sua cidade: o governo estadual mudou-se para o limite norte e todos os investimentos são feitos em vias viárias, isto é, para que as pessoas saiam – para os condomínios de Nova Lima e Brumadinho ou de Lagoa Santa, para o aeroporto de Confins, para o Rio e para São Paulo. Os belo-horizontinos – a começar por seu prefeito – preferem morar fora de Belo Horizonte e fazem dela uma cidade fantasma nos feriados. E é só nesses dias que aqueles que ficam podem perceber como ela poderia ser mais agradável e civilizada se tivesse menos carros, menos barulho, menos tumulto.

Belo Horizonte é uma cidade que foi planejada e se tornou modelo de não planejamento: sua área suburbana foi esquecida; sua área rural foi destruída; seus morros foram ocupados por favelas pobres ou de luxo. A cidade que deveria ter 200 mil habitantes tem doze vezes mais. A cidade que tinha o melhor clima do estado hoje é insuportavelmente quente, sujeita a inundações e vendavais. A cidade que poderia ter crescido organizadamente e melhorado cada vez mais foi abandonada à própria sorte e se tornou detestável.

Isso não aconteceu por acaso, porém. Todo esse tempo tivemos prefeitos e vereadores, todas as ações públicas passaram por leis, decretos, portarias e tais; todas as iniciativas particulares tiveram apoio ou tolerância das autoridades. O monstrengo que esta cidade se tornou foi desejado ou ratificado por seus governantes. Para se transformar córregos e ribeirões de águas límpidas em esgotos foi preciso o trabalho sistemático e sancionado dos órgãos municipais. Para desfigurar as montanhas que dão personalidade à cidade, sujeitos influentes agiram persistentemente, sob proteção da lei – ou à margem dela, certos da impunidade. Para transformar casas e pequenos edifícios num eucaliptal de concreto, muitos fizeram discursos, convenceram a maioria, mudaram leis, levaram propinas, se enriqueceram. Donde se percebe que poderes públicos funcionaram sempre como um comitê a serviço desses interesses particulares que transformaram Belo Horizonte na cidade medíocre que é hoje.

A mediocridade só foi afastada daqui durante breves períodos: o governo JK, os governos Patrus e Célio de Castro. Bravos belo-horizontinos se esforçaram e continuam se esforçando para fazer desta cidade um lugar em que dê orgulho viver: o pessoal do Corpo, o pessoal do Galpão, artistas de circo e música, alguns educadores e outros profissionais dignos, empreendedores de estabelecimentos comerciais admiráveis e cada vez mais raros, jovens idealistas – gente, enfim, que merece uma cidade melhor do que têm. No começo deste século, quando Lula foi eleito presidente pela primeira vez e o PT governava Belo Horizonte, parecia que a batalha contra a mediocridade – demorada, persistente – estava tendo sucesso. A chegada do milionário Lacerda à prefeitura, em 2008, pôs tudo a perder e sua reeleição, em 2012, foi uma ducha de água fria na esperança de que a mediocridade e seus acelerados efeitos destruidores pudessem ser revertidos.

Em 2013, aos 116 anos, a mediocricidade parece instalada no coração de Belo Horizonte para sempre.

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