domingo, 18 de julho de 2010

Crônica é conversa fiada

A crônica, ao contrário da ficção e da notícia, não tem desfecho nem lide, é um olhar sobre o cotidiano, com humor, com poesia, com palavras incomuns; seu valor está na originalidade do olhar e na relevância do assunto. E em alguma coisa mais, difícil de explicar.

Pode-se dizer que a crônica tem em comum com a ficção o desfecho: um desfecho dá sorriso à crônica, faz suspirar, faz a fama do autor. Mas o desfecho da crônica não é propriamente um desfecho, melhor seria chamá-lo de fecho apenas.

O fecho da crônica não é, como na ficção, a explicação de tudo, sem o qual a história não faz sentido. É uma frase de efeito, uma conclusão, uma lição, uma moral... É, enfim, um arremate. Alguma coisa que se guarda para o fim, de forma a pôr um ponto final, a terminar em grande estilo, a dizer que acabou. Todo texto tem de dizer que acabou, até uma notícia; a crônica gosta de fazê-lo com ênfase.

Pode-se dizer que o fecho cumpre uma função além do próprio encerramento, a função de desviar o leitor da ideia que acompanha a leitura de toda crônica, a ideia da perda de tempo, do desnecessário. A crônica é o gênero literário do desnecessário, por excelência.

Já se disse que a arte é inútil, o que provocou grande discussão, na época em que ideias motivavam discussões – e muita produção intelectual, de forma a se provar a necessidade da arte. Como lazer, uma peça de teatro ou um filme (cinema é arte?) se justificam de tal forma, que ninguém se preocupa com o fato se foi necessário assistir à sessão ou não; o que se questiona muitas vezes é se o autor tem o direito de fazer o público pensar, além de diverti-lo.

A crônica, ao contrário, tem dificuldade de se justificar. Os próprios cronistas já se ocuparam disso mais de uma vez. Pode-se mesmo dizer que o caráter supérfluo da crônica é um tema recorrente dos maiores cronistas.

Há dificuldade inclusive de se definir a crônica. O que é a crônica? Este texto, por exemplo, é uma crônica? O que caracteriza uma crônica, além do tamanho curto e da linguagem leve? A crônica conta uma história? Sim e não – pode contar não uma, mas várias histórias, mas pode também não contar nenhuma. Crônica acabou sendo todo texto que não se encaixa em outros gêneros. Mas há crônicas e crônicas – este texto pode até ser uma crônica, mas só será uma boa crônica se for capaz de fazer o leitor pensar que valeu a pena lê-lo, como uma crônica de Carlos Drummomd de Andrade ou de Fernando Sabino e de tantos outros, a começar pelo mestre dos mestres, Rubem Braga.

Estes grandes cronistas eram mestres na arte de enganar o leitor, desviando seu pensamento final da inutilidade daquela leitura, posto que eles próprios tinham dúvida da utilidade do que tinham escrito, mas tinham certeza de que era preciso encerrar com um belo fecho – e às vezes, num mau dia, é preciso dizer, até eles falhavam. Eles sabiam que tinham escrito uma bela crônica quando eram capazes de iludir o leitor com um belo fecho.

Não há nada demais no verbo iludir – toda arte é ilusão, haverá quem diga que a própria vida é ilusão. A mais antiga das ilusões, o teatro, é um costume a que até hoje (e renovado no cinema) nos entregamos com prazer. Sabemos que tudo aquilo que acontece no palco é mentira, mas desejamos nos iludir.

Não há, portanto, nada de errado em o cronista iludir o leitor. O que distingue o bom cronista, a meu ver, são outras qualidades (além da condição sine qua non de qualquer arte literária, o saber usar as palavras). As outras qualidades que distinguem Braga, CDA e Sabino, para ficar nos nossos (o capixaba deu seus primeiros passos profissionais em Minas), são o tema, a fluidez do texto, as imagens marcantes que ele é capaz de criar. E o fecho.

Porque a crônica não passa de conversa fiada. O leitor sabe disso, mas quem de nós não pratica com gosto uma boa conversa fiada? A conversa fiada é necessária à vida, pode-se até dizer que é a forma de lazer social primitiva. Quem não se lembra de um amigo que é um grande contador de casos? Nem digo contador de histórias, me refiro àquelas pessoas com quem conversar à toa, jogar conversa fora, é um prazer.

Essas pessoas que cultivam a boa conversa fiada sabem encerrá-la, de forma a deixar no outro um prazer final, um sorriso nos lábios, uma lembrança, uma impressão de que aqueles momentos à toa valeram a pena. Fazem isso com uma frase, um gracejo, a repetição enfática de algo que já tinha sido dito. Um fecho. Como o fecho da crônica.

quinta-feira, 15 de julho de 2010

Marina e o portão

Minha primeira caçulinha me mandou esta linhas nas quais me reconheço, embora não me lembrasse delas. Ela diz que se reencontra lendo-as.

Quando morávamos na Rua Corumbataí, o apartamento tinha uma varanda guardada por um portãozinho baixo, que fazia barulho estridente ao abrir-se. Ele indicava que alguém estava à nossa porta, porque era preciso transpô-lo para bater à porta ou fazer soar a campainha. Muitas vezes eram as meninas, que, nos momentos de brincadeira, entravam e saíam de casa sem parar. Eu estava sempre dizendo a elas: "Flora, fecha o portão", ou: "Marina, volta lá e fecha o portão". Marina, sempre mais rebelde, respondia que já ia voltar, provocando minha autoridade paterna: "Não importa, quando você sair, abre de novo".

Vigiando-as, eu chegava à janela do quarto, no segundo andar daquele sobrado, e olhava a rua, acompanhando suas brincadeiras com os coleguinhas das vizinhanças. Daí mesmo chamava sua atenção ou convocava-as para o almoço, o lanche, o banho. Da mesma forma, elas nos gritavam, olhando para a janela, quando queriam mudar a regra de estarem sempre ao alcance das nossas vistas. "Pai, posso ir à casa do seu Acir?", perguntava Flora. "Pai, vou à casa da Viviane", avisava Marina, completando, persuasiva: "É rapidinho".

Ainda hoje, às vezes, em momentos em que estou deitado, a ler, ou cochilando, ouço o barulho daquele portão e desperto, pensando: “Há alguém aí”. Não há, porque já não moro naquele apartamento há muitos anos, mas o simples ranger do portão, que permanece na minha memória, é capaz de reviver a rotina familiar daqueles dias.

terça-feira, 13 de julho de 2010

Um r com som de z e outras letras

A meninada está mudando a língua na internet, mais que a nova reforma ortográfica. Nas mensagens instantâneas, criatividade e ignorância andam juntas e o resultado é uma nova língua que arrepia os puristas e que os jovens inventam sem se darem conta.

Cá pra nós, essa linguinha portuguesa é osso! A gente aprendeu por obrigação, sem questionar, os mais bestas achando que é bonito escrever bem, e achando que escrever bem é escrever diferente do que falamos. Apesar dos modernistas, há quase noventa anos. Na internet, a bugrada ignorante escreve como fala, e assim é compreendida. Kkkk! Todo mundo sabe que isso é uma risada, embora não usemos a letra k (agora ela foi reabilitada, no acordo controvertido); não faria o menor sentido se a moçada resolvesse escrever cacacaca, ainda que nosso contraditório idioma use o c para fazer esse som...


Acompanho minhas filhas pequenas aprendendo a escrever e é difícil explicar para eles por que se usa o s aqui, o c ali, a cedilha acolá... Ah! A cedilha! Quer letra mais supérflua que o c com cedilha? E ainda vem com proibição: não pode começar palavra! Por mim, c tinha som de c; quando o som é de z, a gente usava z mesmo, e k quando o som fosse k.

O português tem um exagero de sons duplicados e até triplicados: c, k, q. Meu nome, por exemplo. Seria muito mais lógico que fosse Karlos – ou Qarlos. C é c, não é k nem q. E pra que o q, se existe o k – ou o inverso (inverco, inverço). O que não faz sentido é uma letra que se chama c, e não q, ser usada para escrever Carlos. Eu até acho bonito, graficamente, mas o som deveria ser Sarlos, Çarlos, e não Karlos, ou Qarlos. Não há absolutamente diferença entre o q e o k, para que então as duas letras? Só para complicar e tornar metidos aqueles que sabem quando se usa uma ou outra. A língua tem uma burocracia, cheia meandros, só acessíveis ao iniciados.

Os exemplos não têm fim. Minha filha não entende por que Isabel se escreve com s e não com z. Seu aprendizado da língua escrita já começa pela exceção. Falando nisso, por que aprendizado e não aprendisado? Pois é... E não é só criança que a língua confunde, gente rica e grandes empresas se atrapalham, a diferença (diferensa?) é que sem constrangimento nem humildade. Quem escolheu, por exemplo, Geosolo para nome da sua firma, pronuncia-o Geossolo – ou Geoçolo (poderia ser simplesmente Geocolo, se o c trabalhasse – trabalhace – um pouco mais), embora devesse pronunciar Geozolo.

Caso semelhante acontece com o estrangeirismo site, que introduziu no Brasil o i com som de ai. Em Portugal, que trata sua língua com rigor, a palavra virou sítio, mas nós, brasileiros, cuja relação com o português é bem diferente, falamos saite e escrevemos site (com raras e ilustres exceções, como Millôr Fernandes). Sem itálico nem nada.

Já internet, uma palavra que termina em t mudo, está grafada rigorosamente certa, como me ensinou minha filha. T mudo? Como assim, se a gente pronuncia ele (êle)? Pois é... E pra que enfiar uma vogal depois, quando a consoante já faz sozinha o som, como o t? Ou será que a letra t deveria ser pronunciada ti? Afinal, a gente fala muito mais ti do que tê. O fato é que, na internet, cujos endereços ignoram a cedilha e transformam comunicação em comunicacao, a meninada não está nem um pouco preocupada com isso; a turma escreve rápido do jeito que acha que é, do jeito que se faz entender. Se a gente usasse o c com som de c, escreveria capato, em vez de sapato, e karrapato, em vez de carrapato.

Aliás, karapato – para que dois erres? O r é uma letra singular, pois para escrevê-la por extenso – erre – é preciso dobrá-la: uma sozinha não faz o som que indica, se estiver entre duas vogais. São as exceções, o português adora exceção (olha que palavrinha: para que x antes do c, se o som é o do c apenas? E para completar um c com cedilha! Uma criança em idade de alfabetização escreve ececão – se já aprendeu a sutileza do til; podemos dizer que ela está errada?).

Semelhante ao r, mas diferente, é o caso dos dois esses. Embora a gente aprenda junto e até confunda o uso dos dois erres (ou rs) e dos dois esses (ss). Usamos os dois esses quando um som daria som de z – mas há grande distância entre o r e o s, tanto que Isabel e Izabel dão na mesma, é questão de gostos, de épocas – ou de opinães, como quer o Rosa, inventor da língua. Para o r entre vogais, porém, não há substituto.

Aí, a língua portuguesa, tão zelosa (e esta palavrinha? O mesmo som, ora com z, ora com s – não é pra confundir?) em duplicar, sofre o defeito da escassez (falando em escassez, por que esse som final não pode ser sempre assim, com z? Por que, vira e mexe aparece um ês? Só pode ser pra confundir o freguês!). Erre, que não pode ser dobrado no começo da palavra, é erre, como o nome da letra diz, não é ere. São dois sons distintos, defeituosamente escritos com a dobra de uma letra. Falta-nos a letra ere... Quanto ao s, por que não restringir seu uso ao de letra que faz plural, em vez de pô-la a competir com o c?

E o trema, que caiu? Agora, linguiça é lingiça mesmo – ou seria, se o g soubesse que som ele faz, se de g ou de gue. Novamente, a língua não oferece letra adequada e resolve sua trapalhada com um jeitinho. Que a queda do trema só fez confundir, pois gua é sempre gua, mas gui pode ser gui ou gi – considerando que estamos falando de g e não de j. Este pega sons do g, mas não o substitui, mais uma vez, só veio para complicar. Janela deveria ser ganela, assim como Carlos deveria ser Karlos. O j, que quer tanto fazer parte do alfabeto, poderia ter entrado para fazer os sons do gua, gue, gui, go, gu...

E o ch? Pra começar, são duas letras, mas a gente as chama no singular. As crianças adora usar o x, e com razão: por que duas letras para fazer o som que uma sozinha faz? O português aliviou o x para dar-lhe a tarefa que o z faz, o z, que já é ajudado pelo s. Assim, temos som de z com x e com s, além do próprio z. A existência (ezistência) de tal regra faz parte da mixórdia (michórdia) na língua. Coisa de português.

O ch não é a única letra dupla, tem também o lh e o nh (além dos dois eres e dos dois eses). O espanhol, língua irmã do português, resolveu o nh de forma mais simples, com um til sobre o n, mas no som do lh não foi muito diferente: dobrou o l. Há certa coerência, porém, que não eziste no português: se o h não tem som, como é que pode modificar o som de outra letra?

O fato é que o português resolveu mal (ou mau? As crianças não conseguem entender o l no fim das palavras: se o som é de u, por que usar l? Vai entender...) seus problemas, por pedantismo ou burrice mesmo. A própria palavra português é um erro: gu-ês ou guês? Ou güês? Ou guez? Por que não gês? Ou gez? São tantas possibilidades, que ele resolveu aqui de um jeito (geito?) e ali de outro.

Minha filha definiu com precisão infantil a condição ambígua (!) do g: “A letra g não quer ir, ela fica chorando, 'quero minha mamãe'. Aí o j fala: 'deixa que eu vou'. E vai”.

Está errado escrever geito? O editor de texto rejeita (regeita) e troca por conta própria, pois conhece a braveza (bravesa) do revisor, mas lê-se diferente, se escrevemos com g ou com j? Não está erado, assim como basta um r para se ler coretamente ambas as palavras “erradas” desta frase (fraze). O que nos falta é um r com som de z, digamos assim. Quem sabe a moçada (mocada) não a inventa na internet?

sexta-feira, 9 de julho de 2010

Manual de Português

Foi na adolescência que descobri que as coisas estão erradas. Um dia achei por acaso minha velha gramática do ginásio e a folheei. Eu estava no segundo grau, que então se chamava “científico”, mas eu não fazia o científico, fazia o curso técnico, equivalente. Peguei o velho manual de português para olhar os desenhos, assinaturas e escritos diversos deixados pelos colegas, amigos que tinham ficado para trás e dos quais agora me lembrava com saudade. Eu podia sentir de novo a algazarra quase infantil na qual rabiscamos nossos livros, no último dia de aula da segunda série. Em uma página havia até os nomes de todos os professores e, ao lado, os autógrafos de alguns deles. Na terceira capa, eu anotara o horário das aulas, todas as manhãs da semana. Dessa forma, me lembrei que em pleno sábado eu tinha cinco aulas: Geografia, Trabalhos Manuais, Português, Inglês e Educação Física.

Era um manual muito bom o do Celso Cunha, publicado antes da ditadura militar, como li no prefácio (“Duas plavras”), datado de novembro de 1961. Um livro pequeno, de quase quatrocentas páginas, destinado à primeira e segunda séries do ginásio, por isso ao final do ano não me importei em rabiscá-lo. Sua gramática, dividida em trinta e dois capítulos, começava sempre com o extrato do livro de um escritor brasileiro importante, em prosa, chamado de “Leitura” e seguido de uma poesia, chamada de “Recitação”. Depois vinham o “Vocabulário”, com palavras e expressões colhidas nos textos, a “Gramática” (o primeiro capítulo tratava “Da Oração”), “Exercícios” e, por fim, um tema para “Redação”. Tudo com exemplos retirados dos dois textos iniciais do capítulo.

Aquele livrinho me interessou como nunca antes. Folheei-o novamente e encontrei José Lins do Rego, Graciliano Ramos, Guimarães Rosa, Lima Barreto, Machado de Assis, Jorge Amado, Rubem Braga, Lima Barreto, Raquel de Queirós, Aluízio Azevedo, Monteiro Lobato, Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, Vinicius de Morais, Cecília Meireles, enfim, quase todos os grandes escritores brasileiros. Reli textos, descobri que me lembrava de vários deles, como a pérola “Plebiscito”, de Artur Azevedo. Deliciei-me com o ritmo e as imagens que evoca o “Meio-dia”, de Olavo Bilac, e com a gostosura de “Irene no céu”, que sabia de cor:

Irene preta
Irene boa
Irene sempre de bom humor.
Imagino Irene entrando no céu:
- Licença, meu branco!
E São Pedro bonachão:
- Entra, Irene. Você não precisa pedir licença.


Foi a constatação da qualidade daquele livro, que durante três anos (repeti a segunda série) tinha sido uma obrigação maçante, que me fez pensar em como o ensino estava errado, pois mesmo uma coisa capaz de provocar meu interesse não tinha sido aproveitada como deveria. Mais tarde confirmaria essa ideia lendo livrinhos didáticos de física, química e até de matemática. Em todos descobri interesses, exceto nos de história e geografia, matérias das quais sempre gostara.

“Eu não tinha maturidade para me interessar por isso quando estava no ginásio”, pensei. “Os professores não se preocupam se os alunos estão interessados ou não, querem apenas dar sua matéria.” No mesmo raciocínio, vi como é absurda a ideia de provas ao final do mês, do bimestre, do semestre, do ano... Provas avaliadas com notas, que dizem se o aluno tem os conhecimentos que o tornam apto a passar de ano ou não. Conhecimentos que podem ser decorados, em vez de compreendidos. Que podem ser copiados em cola, como faziam os alunos mais ousados.

O problema seria comigo ou com o ensino? Foi a primeira vez que formulei essa questão como ideia; como sentimento, eu já a tinha vivido muitas vezes, nas crises de asma, que me faziam sofrer, rezar e me revoltar, apartado do que faziam os outros meninos, lá fora. O problema estava em mim ou no mundo? Resolvi o assunto de uma forma talvez religiosa, formulando o seguinte conceito: uma escola que se descuida de um aluno que seja está errada. Se o ensino não me interessava, a escola deveria procurar me interessar por ele ou oferecer matérias capazes de me interessar.

De qualquer forma, a quantidade enorme de maus alunos, repetentes, bagunceiros, com notas baixas, que não estudavam e que colavam me indicava que eu não era o único errado. Além disso, muitos dos “bons alunos” sabiam a matéria decorada e eram incapazes de ir além da repetição do que estava no livro. Enfim, o ensino era uma espécie de encenação, um faz de conta, que ninguém levava a sério: os professores fingiam que ensinavam e os alunos fingiam que aprendiam.

Por que a escola tinha disciplina militar? Por que éramos obrigados a estudar coisas que não nos interessavam quando tudo que queríamos era brincar? Por que devíamos ficar sentados nas carteiras ouvindo o professor autoritário e copiando o que ele escrevia no quadro? Para que serviria todo aquele conhecimento? De que adiantava obrigar-nos àquilo, se não guardávamos quase nada do que estudávamos? De que adiantava decorar, se não compreendíamos a matéria? De que adiantava acertar as respostas na prova, se depois esquecíamos tudo? Por que todos têm que estudar as mesmas coisas? Por que não temos o direito de escolher o que queremos aprender? Por que temos de competir uns com os outros, para mostrar quem é o melhor aluno? Por que a escola não é um local agradável, de convivência entre iguais, no qual compartilhamos conhecimentos e nos ajudamos uns aos outros?

Estas perguntas que eu nunca me fizera em mais de oito anos de escola brotaram na minha mente naqueles dias. Tudo aquilo que até então me parecera “natural” perdeu o sentido a partir do momento em que comecei a pensar. Eu, que sempre respeitara e obedecera as autoridades, julgando que sabiam o que faziam e escolhiam o melhor para mim; eu, que não seguia os desobedientes e apenas ria, divertido, dos contestadores; eu, que temia a Deus e tinha horror ao inferno, passei a desconfiar dos professores, dos padres, do governo, dos meus pais. Eles não sabiam o que faziam ou erravam deliberadamente. Mentiam, enganavam e nos oprimiam. Os piores eram opressores, os melhores eram ingênuos, a maior parte, subserviente.

Tais descobertas tiveram um efeito multiplicador de raciocínios e compreensões, um fenômeno que os psicanalistas, soube mais tarde, chamam de insight, mas que eu ignorava. Não estava muito preocupado com nomes, diante de um universo todo novo que se abria para mim, a partir da constatação de que “as coisas estão erradas”. Absurdo era a ideia que me vinha constantemente à cabeça: “As coisas estão erradas e as pessoas não veem?”, perguntava-me. “Por que insistem em fazer as coisas erradas?” E não só na escola: agora, em todo lugar para onde olhava eu via coisas erradas, fora de lugar, sem sentido. Eu enxergava pela primeira uma sociedade contraditória, um mundo absurdo.

A descoberta do absurdo foi um impacto tão forte na minha vida que não tive coragem de conversar sobre ela com ninguém. A sensação que eu tinha é que só eu percebia o absurdo, portanto me considerariam louco, se tocasse no assunto. Havia ainda outra possibilidade: todos percebiam, mas fingiam não ver; nesse caso, desconversariam ou ririam de mim por só agora ter percebido o que todos sempre souberam.

Só compartilhei a descoberta do absurdo com o papel e a caneta, anotando as ideias que me ocorriam em inúmeros cadernos escolares e folhas soltas. Às vezes elas vinham em versos, às vezes se traduziam em desenhos. Aquilo me colocou num mundo particular, pois só podia me relacionar representando e supondo que os outros também representavam; nenhum de nós falava o que pensava, ninguém tratava do que realmente era importante, do que era real. Havia uma coisa que todos sabiam e não diziam; talvez também existissem muitos iludidos, como eu tinha sido até então, e ninguém queria ser responsável por despertá-los para a realidade absurda.

Perceber o que nunca tinha percebido despertou na minha cabeça curiosidade por quase todos os assuntos e me levou aos livros: eu não queria apenas saber por que se estudava gramática, mas quem eram aqueles escritores copiados no velho manual de português. Se a existência da ditadura militar era um absurdo, eu queria compreender por que ela existia. Cada nova leitura me levava a inúmeras outras, logo eu estava elaborando um plano de estudo e uma lista de livros “fundamentais”. Não os segui rigorosamente, mas aproveitei bastante daquilo. Também havia artistas que eu devia conhecer, músicas que devia ouvir, quadros que devia ver.

Na prática, mais que as fontes, o que eu realmente devorei naqueles anos foram enciclopédias, que me permitiam montar o quebra-cabeça de tudo que eu pensava – eu podia não ter lido Ulisses, um livro volumoso e difícil, mas, em compensação, lera com prazer O Retrato do Artista Quando Jovem, sabia quem era James Joyce, o que ele fizera, o que ele significava. Não ouvira toda a obra de Beethoven, à qual não tinha acesso, pois, se podia tomar livros emprestados na biblioteca pública, não tinha dinheiro para comprar muitos discos, mas passava tardes e tardes imerso no que parecia ser a obra prima do compositor alemão: a Quinta Sinfonia. Tum-tum-tum-tum! Fechado no meu quarto escuro, a cabeça pesada de ideias sombrias, o peito apertado de sentimentos novos, sentia a sinfonia vigorosa me confortar. Eu não a ouvia por obrigação intelectual, mas porque ela me dava prazer. Era capaz de repetir e repetir o segundo movimento; alguns instantes líricos do primeiro, na altura dos cinco minutos, tocavam meu coração profundamente.

Foi assim minha “formação”: eu procurava “situar” tudo, mas só consumia o que me conquistava; não tinha disciplina nem maturidade para fazer diferente, para superar livros difíceis. Assim foi que devorei A Montanha Mágica, mas nunca li José e seus Irmãos; consumi cada linha de A Náusea, mas não avancei no O Ser e o Nada; Crime e Castigo pareceu-me escrito para mim, mas Recordações da Casa dos Mortos foi um suplício que deixei de lado. Alguns livros me conquistavam pelo nome ou pela ideia, como A Idade da Razão e A Morte de Ivã Ilich, outros foram lidos com avidez contida, tal o prazer que me davam: O Primeiro Amor, O Vermelho e o Negro, Os Três Mosqueteiros...

Li Dores do Mundo, mas não O Mundo como Vontade e Representação; carreguei Nietzsche debaixo do braço e saboreei seus aforismos, mas Kant nunca saiu da prateleira. No Mito de Sísifo contentei-me com as primeiras frases, soberbas: “Só há um problema filosófico realmente sério: é o suicídio. Julgar se a vida merece ou não ser vivida é responder a uma questão fundamental da filosofia. O resto, se o mundo tem três dimensões, se o espírito tem nove ou doze categorias, vem depois. E se é verdade, tal como Nietzsche o quer, que um filósofo, para ser estimável, deve dar o exemplo, avalia-se a importância dessa resposta, visto que ela vai preceder o gesto definitivo.”

De Camus, o que me agradou do começo ao fim foi A Peste, na tradução de Graciliano Ramos. Este, aliás, foi um dos raros autores brasileiros cujas narrativas, nessa época, me apraziam tanto quanto Stendhal ou Alexandre Dumas. Apaixonei-me logo por Gauguin e Van Gogh, mas não consegui admirar os renascentistas; gostei de Tchaikovski, mas não de Stravinski. Ao mesmo tempo em que eu procurava responder perguntas e compreender o absurdo deste mundo do qual subitamente tomara consciência, transformava a arte no meu maior prazer, ao descobrir os grandes livros, as melhores músicas, os pintores impressionistas.

É claro que o velho manual de português, que até hoje conservo na minha biblioteca, não foi o único responsável por tudo isso. Eu cursava a escola técnica, como disse, e aquela experiência foi muito difícil para mim, foi, digamos assim, o terreno fértil no qual o manuseio do livrinho plantou a semente do absurdo. Mas essa é outra história.

sábado, 3 de julho de 2010

A casa do meu pai

A casa era o centro de tudo, a referência, o porto. Todos chegavam, tocavam a campainha, batiam palmas: "Ô de casa!".

O porto, a porta, o portão. O portão ficava encostado, cadeado só na hora de dormir.

- Colocou o cadeado no portão? – perguntava meu pai ao último a entrar.

A gente voltava lá fora, no escuro silencioso das dez da noite, e trancava o portão.

Durante o dia a gente saía e entrava sem parar, de casa pra rua, pra casa dos outros, como é que ia ter cadeado? Mas ninguém entrava que não fosse da família ou amigo. Nem pulava o muro, baixinho. Se alguém abria o portão, bastava o barulho pra gente saber. As janelas ficavam abertas e nem tinham grade.

O entra e sai de crianças, os parentes visitando todos os dias. A casa era assim, lugar de gente, e a gente não era só a família, era a parentada, os amigos. E a parentada morava toda no bairro: uma tia na casa em frente, no fundo do corredor; outra, na rua que corta, logo abaixo; nesta, tinha também um tio, na esquina, dois quarteirões adiante, e lá no fim da rua, ou melhor, no começo, a caminho do centro da cidade, pertinho da Praça Vaz de Melo, o avô. Mais um tio, numa rua transversal, e outro, numa rua paralela, ambos do outro lado da avenida. Estávamos todos por perto, frequentávamos todas as casas, e todos íamos a pé – quando alguém casava, mudava pro bairro mesmo.

Nossa casa, porém, a casa do meu pai, era a casa acolhedora, a casa a que todos iam, exceto uma tia que nunca saía de casa. Nela é que minha tia, e depois o tio do meu pai, foram morar, quando vovô morreu e sua casa se desfez. A casa do vovô fora a casa da geração anterior, casa bonita, de dois pavimentos, com garagem nos fundos, à qual se chegava depois de atravessar um portão baixo e outro alto, mais adiante, ambos de madeira, e a trilha do carro tinha entre as rodas um longo canteiro de grama. Nos fundos, o quintal, a parreira, a ramagem de morangos, junto da torneira usada para regar as plantas. O quartinho, onde vovô guardava suas varas de pescar, suas munições, sua espingarda e seu revólver. Do lado, um banheirinho, com descarga de puxar, e um tanque muito alto, com espelho, baciinha e navalha, para vovô fazer a barba.

A nossa casa tinha sido do outro avô e por isso era o ponto de encontro das duas famílias – a da minha mãe e a do meu pai, o novo dono. A jabuticabeira, no fundo do quintal, soberana. O dia 6 de janeiro era o dia mais importante da casa, Dia de Reis, aniversário de casamento dos meus pais. À tarde todos chegavam para o truco, para se encontrarem. Mais tarde, quando vovô morreu, quando o tio do meu pai morreu também, e o truco ficou meio sem graça, o dia mais importante se tornou o 18 de junho, aniversário do papai, festa junina, com fogueira, música, canjica. Meus tios, já velhos, dispersos, não faltavam, às vezes era o único dia do ano em que nos víamos.

A dispersão. Meu tio da casa da esquina mudou para um bairro da zona sul, outro para a zona oeste. Meu avô morreu e a casa foi desfeita; minha tia que morava conosco morreu, mais tarde o tio do meu pai. Meus primos começaram a casar e foram morar em outros bairros. O bairro ainda era o nosso bairro e a casa era a casa que atraía familiares e amigos, aonde todos chegavam sem avisar, ainda que raramente. Como Ernesto, o primo mendigo da minha mãe, pois aquela era a única casa conhecida que continuava abrigando seus familiares, décadas depois. Suas visitas também escassearam – uma vez por semana, uma vez por mês, uma vez por ano...

Ernesto tinha história muito diferente das outras – tinha sido empreiteiro, ganhara dinheiro, mas tornou-se alcoólatra, parou de trabalhar, abandonou a família. Todos os parentes tinham histórias e a gente as conhecia. Quando a casa acabou, as histórias se dispersaram com as pessoas que ela reunia. Não há encontros sem casa. Meu pai era o espírito da casa e ela morreu com ele. Agora visito a casa todas as noites, em sonhos. Reencontro meu pai, parentes e amigos.