Pode-se dizer que a crônica tem em comum com a ficção o desfecho: um desfecho dá sorriso à crônica, faz suspirar, faz a fama do autor. Mas o desfecho da crônica não é propriamente um desfecho, melhor seria chamá-lo de fecho apenas.
O fecho da crônica não é, como na ficção, a explicação de tudo, sem o qual a história não faz sentido. É uma frase de efeito, uma conclusão, uma lição, uma moral... É, enfim, um arremate. Alguma coisa que se guarda para o fim, de forma a pôr um ponto final, a terminar em grande estilo, a dizer que acabou. Todo texto tem de dizer que acabou, até uma notícia; a crônica gosta de fazê-lo com ênfase.
Pode-se dizer que o fecho cumpre uma função além do próprio encerramento, a função de desviar o leitor da ideia que acompanha a leitura de toda crônica, a ideia da perda de tempo, do desnecessário. A crônica é o gênero literário do desnecessário, por excelência.
Já se disse que a arte é inútil, o que provocou grande discussão, na época em que ideias motivavam discussões – e muita produção intelectual, de forma a se provar a necessidade da arte. Como lazer, uma peça de teatro ou um filme (cinema é arte?) se justificam de tal forma, que ninguém se preocupa com o fato se foi necessário assistir à sessão ou não; o que se questiona muitas vezes é se o autor tem o direito de fazer o público pensar, além de diverti-lo.
A crônica, ao contrário, tem dificuldade de se justificar. Os próprios cronistas já se ocuparam disso mais de uma vez. Pode-se mesmo dizer que o caráter supérfluo da crônica é um tema recorrente dos maiores cronistas.
Há dificuldade inclusive de se definir a crônica. O que é a crônica? Este texto, por exemplo, é uma crônica? O que caracteriza uma crônica, além do tamanho curto e da linguagem leve? A crônica conta uma história? Sim e não – pode contar não uma, mas várias histórias, mas pode também não contar nenhuma. Crônica acabou sendo todo texto que não se encaixa em outros gêneros. Mas há crônicas e crônicas – este texto pode até ser uma crônica, mas só será uma boa crônica se for capaz de fazer o leitor pensar que valeu a pena lê-lo, como uma crônica de Carlos Drummomd de Andrade ou de Fernando Sabino e de tantos outros, a começar pelo mestre dos mestres, Rubem Braga.
Estes grandes cronistas eram mestres na arte de enganar o leitor, desviando seu pensamento final da inutilidade daquela leitura, posto que eles próprios tinham dúvida da utilidade do que tinham escrito, mas tinham certeza de que era preciso encerrar com um belo fecho – e às vezes, num mau dia, é preciso dizer, até eles falhavam. Eles sabiam que tinham escrito uma bela crônica quando eram capazes de iludir o leitor com um belo fecho.
Não há nada demais no verbo iludir – toda arte é ilusão, haverá quem diga que a própria vida é ilusão. A mais antiga das ilusões, o teatro, é um costume a que até hoje (e renovado no cinema) nos entregamos com prazer. Sabemos que tudo aquilo que acontece no palco é mentira, mas desejamos nos iludir.
Não há, portanto, nada de errado em o cronista iludir o leitor. O que distingue o bom cronista, a meu ver, são outras qualidades (além da condição sine qua non de qualquer arte literária, o saber usar as palavras). As outras qualidades que distinguem Braga, CDA e Sabino, para ficar nos nossos (o capixaba deu seus primeiros passos profissionais em Minas), são o tema, a fluidez do texto, as imagens marcantes que ele é capaz de criar. E o fecho.
Porque a crônica não passa de conversa fiada. O leitor sabe disso, mas quem de nós não pratica com gosto uma boa conversa fiada? A conversa fiada é necessária à vida, pode-se até dizer que é a forma de lazer social primitiva. Quem não se lembra de um amigo que é um grande contador de casos? Nem digo contador de histórias, me refiro àquelas pessoas com quem conversar à toa, jogar conversa fora, é um prazer.
Essas pessoas que cultivam a boa conversa fiada sabem encerrá-la, de forma a deixar no outro um prazer final, um sorriso nos lábios, uma lembrança, uma impressão de que aqueles momentos à toa valeram a pena. Fazem isso com uma frase, um gracejo, a repetição enfática de algo que já tinha sido dito. Um fecho. Como o fecho da crônica.