A casa era o centro de tudo, a referência, o porto. Todos chegavam, tocavam a campainha, batiam palmas: "Ô de casa!".
O porto, a porta, o portão. O portão ficava encostado, cadeado só na hora de dormir.
- Colocou o cadeado no portão? – perguntava meu pai ao último a entrar.
A gente voltava lá fora, no escuro silencioso das dez da noite, e trancava o portão.
Durante o dia a gente saía e entrava sem parar, de casa pra rua, pra casa dos outros, como é que ia ter cadeado? Mas ninguém entrava que não fosse da família ou amigo. Nem pulava o muro, baixinho. Se alguém abria o portão, bastava o barulho pra gente saber. As janelas ficavam abertas e nem tinham grade.
O entra e sai de crianças, os parentes visitando todos os dias. A casa era assim, lugar de gente, e a gente não era só a família, era a parentada, os amigos. E a parentada morava toda no bairro: uma tia na casa em frente, no fundo do corredor; outra, na rua que corta, logo abaixo; nesta, tinha também um tio, na esquina, dois quarteirões adiante, e lá no fim da rua, ou melhor, no começo, a caminho do centro da cidade, pertinho da Praça Vaz de Melo, o avô. Mais um tio, numa rua transversal, e outro, numa rua paralela, ambos do outro lado da avenida. Estávamos todos por perto, frequentávamos todas as casas, e todos íamos a pé – quando alguém casava, mudava pro bairro mesmo.
Nossa casa, porém, a casa do meu pai, era a casa acolhedora, a casa a que todos iam, exceto uma tia que nunca saía de casa. Nela é que minha tia, e depois o tio do meu pai, foram morar, quando vovô morreu e sua casa se desfez. A casa do vovô fora a casa da geração anterior, casa bonita, de dois pavimentos, com garagem nos fundos, à qual se chegava depois de atravessar um portão baixo e outro alto, mais adiante, ambos de madeira, e a trilha do carro tinha entre as rodas um longo canteiro de grama. Nos fundos, o quintal, a parreira, a ramagem de morangos, junto da torneira usada para regar as plantas. O quartinho, onde vovô guardava suas varas de pescar, suas munições, sua espingarda e seu revólver. Do lado, um banheirinho, com descarga de puxar, e um tanque muito alto, com espelho, baciinha e navalha, para vovô fazer a barba.
A nossa casa tinha sido do outro avô e por isso era o ponto de encontro das duas famílias – a da minha mãe e a do meu pai, o novo dono. A jabuticabeira, no fundo do quintal, soberana. O dia 6 de janeiro era o dia mais importante da casa, Dia de Reis, aniversário de casamento dos meus pais. À tarde todos chegavam para o truco, para se encontrarem. Mais tarde, quando vovô morreu, quando o tio do meu pai morreu também, e o truco ficou meio sem graça, o dia mais importante se tornou o 18 de junho, aniversário do papai, festa junina, com fogueira, música, canjica. Meus tios, já velhos, dispersos, não faltavam, às vezes era o único dia do ano em que nos víamos.
A dispersão. Meu tio da casa da esquina mudou para um bairro da zona sul, outro para a zona oeste. Meu avô morreu e a casa foi desfeita; minha tia que morava conosco morreu, mais tarde o tio do meu pai. Meus primos começaram a casar e foram morar em outros bairros. O bairro ainda era o nosso bairro e a casa era a casa que atraía familiares e amigos, aonde todos chegavam sem avisar, ainda que raramente. Como Ernesto, o primo mendigo da minha mãe, pois aquela era a única casa conhecida que continuava abrigando seus familiares, décadas depois. Suas visitas também escassearam – uma vez por semana, uma vez por mês, uma vez por ano...
Ernesto tinha história muito diferente das outras – tinha sido empreiteiro, ganhara dinheiro, mas tornou-se alcoólatra, parou de trabalhar, abandonou a família. Todos os parentes tinham histórias e a gente as conhecia. Quando a casa acabou, as histórias se dispersaram com as pessoas que ela reunia. Não há encontros sem casa. Meu pai era o espírito da casa e ela morreu com ele. Agora visito a casa todas as noites, em sonhos. Reencontro meu pai, parentes e amigos.
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