Cá pra nós, essa linguinha portuguesa é osso! A gente aprendeu por obrigação, sem questionar, os mais bestas achando que é bonito escrever bem, e achando que escrever bem é escrever diferente do que falamos. Apesar dos modernistas, há quase noventa anos. Na internet, a bugrada ignorante escreve como fala, e assim é compreendida. Kkkk! Todo mundo sabe que isso é uma risada, embora não usemos a letra k (agora ela foi reabilitada, no acordo controvertido); não faria o menor sentido se a moçada resolvesse escrever cacacaca, ainda que nosso contraditório idioma use o c para fazer esse som...
Acompanho minhas filhas pequenas aprendendo a escrever e é difícil explicar para eles por que se usa o s aqui, o c ali, a cedilha acolá... Ah! A cedilha! Quer letra mais supérflua que o c com cedilha? E ainda vem com proibição: não pode começar palavra! Por mim, c tinha som de c; quando o som é de z, a gente usava z mesmo, e k quando o som fosse k.
O português tem um exagero de sons duplicados e até triplicados: c, k, q. Meu nome, por exemplo. Seria muito mais lógico que fosse Karlos – ou Qarlos. C é c, não é k nem q. E pra que o q, se existe o k – ou o inverso (inverco, inverço). O que não faz sentido é uma letra que se chama c, e não q, ser usada para escrever Carlos. Eu até acho bonito, graficamente, mas o som deveria ser Sarlos, Çarlos, e não Karlos, ou Qarlos. Não há absolutamente diferença entre o q e o k, para que então as duas letras? Só para complicar e tornar metidos aqueles que sabem quando se usa uma ou outra. A língua tem uma burocracia, cheia meandros, só acessíveis ao iniciados.
Os exemplos não têm fim. Minha filha não entende por que Isabel se escreve com s e não com z. Seu aprendizado da língua escrita já começa pela exceção. Falando nisso, por que aprendizado e não aprendisado? Pois é... E não é só criança que a língua confunde, gente rica e grandes empresas se atrapalham, a diferença (diferensa?) é que sem constrangimento nem humildade. Quem escolheu, por exemplo, Geosolo para nome da sua firma, pronuncia-o Geossolo – ou Geoçolo (poderia ser simplesmente Geocolo, se o c trabalhasse – trabalhace – um pouco mais), embora devesse pronunciar Geozolo.
Caso semelhante acontece com o estrangeirismo site, que introduziu no Brasil o i com som de ai. Em Portugal, que trata sua língua com rigor, a palavra virou sítio, mas nós, brasileiros, cuja relação com o português é bem diferente, falamos saite e escrevemos site (com raras e ilustres exceções, como Millôr Fernandes). Sem itálico nem nada.
Já internet, uma palavra que termina em t mudo, está grafada rigorosamente certa, como me ensinou minha filha. T mudo? Como assim, se a gente pronuncia ele (êle)? Pois é... E pra que enfiar uma vogal depois, quando a consoante já faz sozinha o som, como o t? Ou será que a letra t deveria ser pronunciada ti? Afinal, a gente fala muito mais ti do que tê. O fato é que, na internet, cujos endereços ignoram a cedilha e transformam comunicação em comunicacao, a meninada não está nem um pouco preocupada com isso; a turma escreve rápido do jeito que acha que é, do jeito que se faz entender. Se a gente usasse o c com som de c, escreveria capato, em vez de sapato, e karrapato, em vez de carrapato.
Aliás, karapato – para que dois erres? O r é uma letra singular, pois para escrevê-la por extenso – erre – é preciso dobrá-la: uma sozinha não faz o som que indica, se estiver entre duas vogais. São as exceções, o português adora exceção (olha que palavrinha: para que x antes do c, se o som é o do c apenas? E para completar um c com cedilha! Uma criança em idade de alfabetização escreve ececão – se já aprendeu a sutileza do til; podemos dizer que ela está errada?).
Semelhante ao r, mas diferente, é o caso dos dois esses. Embora a gente aprenda junto e até confunda o uso dos dois erres (ou rs) e dos dois esses (ss). Usamos os dois esses quando um som daria som de z – mas há grande distância entre o r e o s, tanto que Isabel e Izabel dão na mesma, é questão de gostos, de épocas – ou de opinães, como quer o Rosa, inventor da língua. Para o r entre vogais, porém, não há substituto.
Aí, a língua portuguesa, tão zelosa (e esta palavrinha? O mesmo som, ora com z, ora com s – não é pra confundir?) em duplicar, sofre o defeito da escassez (falando em escassez, por que esse som final não pode ser sempre assim, com z? Por que, vira e mexe aparece um ês? Só pode ser pra confundir o freguês!). Erre, que não pode ser dobrado no começo da palavra, é erre, como o nome da letra diz, não é ere. São dois sons distintos, defeituosamente escritos com a dobra de uma letra. Falta-nos a letra ere... Quanto ao s, por que não restringir seu uso ao de letra que faz plural, em vez de pô-la a competir com o c?
E o trema, que caiu? Agora, linguiça é lingiça mesmo – ou seria, se o g soubesse que som ele faz, se de g ou de gue. Novamente, a língua não oferece letra adequada e resolve sua trapalhada com um jeitinho. Que a queda do trema só fez confundir, pois gua é sempre gua, mas gui pode ser gui ou gi – considerando que estamos falando de g e não de j. Este pega sons do g, mas não o substitui, mais uma vez, só veio para complicar. Janela deveria ser ganela, assim como Carlos deveria ser Karlos. O j, que quer tanto fazer parte do alfabeto, poderia ter entrado para fazer os sons do gua, gue, gui, go, gu...
E o ch? Pra começar, são duas letras, mas a gente as chama no singular. As crianças adora usar o x, e com razão: por que duas letras para fazer o som que uma sozinha faz? O português aliviou o x para dar-lhe a tarefa que o z faz, o z, que já é ajudado pelo s. Assim, temos som de z com x e com s, além do próprio z. A existência (ezistência) de tal regra faz parte da mixórdia (michórdia) na língua. Coisa de português.
O ch não é a única letra dupla, tem também o lh e o nh (além dos dois eres e dos dois eses). O espanhol, língua irmã do português, resolveu o nh de forma mais simples, com um til sobre o n, mas no som do lh não foi muito diferente: dobrou o l. Há certa coerência, porém, que não eziste no português: se o h não tem som, como é que pode modificar o som de outra letra?
O fato é que o português resolveu mal (ou mau? As crianças não conseguem entender o l no fim das palavras: se o som é de u, por que usar l? Vai entender...) seus problemas, por pedantismo ou burrice mesmo. A própria palavra português é um erro: gu-ês ou guês? Ou güês? Ou guez? Por que não gês? Ou gez? São tantas possibilidades, que ele resolveu aqui de um jeito (geito?) e ali de outro.
Minha filha definiu com precisão infantil a condição ambígua (!) do g: “A letra g não quer ir, ela fica chorando, 'quero minha mamãe'. Aí o j fala: 'deixa que eu vou'. E vai”.
Está errado escrever geito? O editor de texto rejeita (regeita) e troca por conta própria, pois conhece a braveza (bravesa) do revisor, mas lê-se diferente, se escrevemos com g ou com j? Não está erado, assim como basta um r para se ler coretamente ambas as palavras “erradas” desta frase (fraze). O que nos falta é um r com som de z, digamos assim. Quem sabe a moçada (mocada) não a inventa na internet?
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