sexta-feira, 9 de julho de 2010

Manual de Português

Foi na adolescência que descobri que as coisas estão erradas. Um dia achei por acaso minha velha gramática do ginásio e a folheei. Eu estava no segundo grau, que então se chamava “científico”, mas eu não fazia o científico, fazia o curso técnico, equivalente. Peguei o velho manual de português para olhar os desenhos, assinaturas e escritos diversos deixados pelos colegas, amigos que tinham ficado para trás e dos quais agora me lembrava com saudade. Eu podia sentir de novo a algazarra quase infantil na qual rabiscamos nossos livros, no último dia de aula da segunda série. Em uma página havia até os nomes de todos os professores e, ao lado, os autógrafos de alguns deles. Na terceira capa, eu anotara o horário das aulas, todas as manhãs da semana. Dessa forma, me lembrei que em pleno sábado eu tinha cinco aulas: Geografia, Trabalhos Manuais, Português, Inglês e Educação Física.

Era um manual muito bom o do Celso Cunha, publicado antes da ditadura militar, como li no prefácio (“Duas plavras”), datado de novembro de 1961. Um livro pequeno, de quase quatrocentas páginas, destinado à primeira e segunda séries do ginásio, por isso ao final do ano não me importei em rabiscá-lo. Sua gramática, dividida em trinta e dois capítulos, começava sempre com o extrato do livro de um escritor brasileiro importante, em prosa, chamado de “Leitura” e seguido de uma poesia, chamada de “Recitação”. Depois vinham o “Vocabulário”, com palavras e expressões colhidas nos textos, a “Gramática” (o primeiro capítulo tratava “Da Oração”), “Exercícios” e, por fim, um tema para “Redação”. Tudo com exemplos retirados dos dois textos iniciais do capítulo.

Aquele livrinho me interessou como nunca antes. Folheei-o novamente e encontrei José Lins do Rego, Graciliano Ramos, Guimarães Rosa, Lima Barreto, Machado de Assis, Jorge Amado, Rubem Braga, Lima Barreto, Raquel de Queirós, Aluízio Azevedo, Monteiro Lobato, Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, Vinicius de Morais, Cecília Meireles, enfim, quase todos os grandes escritores brasileiros. Reli textos, descobri que me lembrava de vários deles, como a pérola “Plebiscito”, de Artur Azevedo. Deliciei-me com o ritmo e as imagens que evoca o “Meio-dia”, de Olavo Bilac, e com a gostosura de “Irene no céu”, que sabia de cor:

Irene preta
Irene boa
Irene sempre de bom humor.
Imagino Irene entrando no céu:
- Licença, meu branco!
E São Pedro bonachão:
- Entra, Irene. Você não precisa pedir licença.


Foi a constatação da qualidade daquele livro, que durante três anos (repeti a segunda série) tinha sido uma obrigação maçante, que me fez pensar em como o ensino estava errado, pois mesmo uma coisa capaz de provocar meu interesse não tinha sido aproveitada como deveria. Mais tarde confirmaria essa ideia lendo livrinhos didáticos de física, química e até de matemática. Em todos descobri interesses, exceto nos de história e geografia, matérias das quais sempre gostara.

“Eu não tinha maturidade para me interessar por isso quando estava no ginásio”, pensei. “Os professores não se preocupam se os alunos estão interessados ou não, querem apenas dar sua matéria.” No mesmo raciocínio, vi como é absurda a ideia de provas ao final do mês, do bimestre, do semestre, do ano... Provas avaliadas com notas, que dizem se o aluno tem os conhecimentos que o tornam apto a passar de ano ou não. Conhecimentos que podem ser decorados, em vez de compreendidos. Que podem ser copiados em cola, como faziam os alunos mais ousados.

O problema seria comigo ou com o ensino? Foi a primeira vez que formulei essa questão como ideia; como sentimento, eu já a tinha vivido muitas vezes, nas crises de asma, que me faziam sofrer, rezar e me revoltar, apartado do que faziam os outros meninos, lá fora. O problema estava em mim ou no mundo? Resolvi o assunto de uma forma talvez religiosa, formulando o seguinte conceito: uma escola que se descuida de um aluno que seja está errada. Se o ensino não me interessava, a escola deveria procurar me interessar por ele ou oferecer matérias capazes de me interessar.

De qualquer forma, a quantidade enorme de maus alunos, repetentes, bagunceiros, com notas baixas, que não estudavam e que colavam me indicava que eu não era o único errado. Além disso, muitos dos “bons alunos” sabiam a matéria decorada e eram incapazes de ir além da repetição do que estava no livro. Enfim, o ensino era uma espécie de encenação, um faz de conta, que ninguém levava a sério: os professores fingiam que ensinavam e os alunos fingiam que aprendiam.

Por que a escola tinha disciplina militar? Por que éramos obrigados a estudar coisas que não nos interessavam quando tudo que queríamos era brincar? Por que devíamos ficar sentados nas carteiras ouvindo o professor autoritário e copiando o que ele escrevia no quadro? Para que serviria todo aquele conhecimento? De que adiantava obrigar-nos àquilo, se não guardávamos quase nada do que estudávamos? De que adiantava decorar, se não compreendíamos a matéria? De que adiantava acertar as respostas na prova, se depois esquecíamos tudo? Por que todos têm que estudar as mesmas coisas? Por que não temos o direito de escolher o que queremos aprender? Por que temos de competir uns com os outros, para mostrar quem é o melhor aluno? Por que a escola não é um local agradável, de convivência entre iguais, no qual compartilhamos conhecimentos e nos ajudamos uns aos outros?

Estas perguntas que eu nunca me fizera em mais de oito anos de escola brotaram na minha mente naqueles dias. Tudo aquilo que até então me parecera “natural” perdeu o sentido a partir do momento em que comecei a pensar. Eu, que sempre respeitara e obedecera as autoridades, julgando que sabiam o que faziam e escolhiam o melhor para mim; eu, que não seguia os desobedientes e apenas ria, divertido, dos contestadores; eu, que temia a Deus e tinha horror ao inferno, passei a desconfiar dos professores, dos padres, do governo, dos meus pais. Eles não sabiam o que faziam ou erravam deliberadamente. Mentiam, enganavam e nos oprimiam. Os piores eram opressores, os melhores eram ingênuos, a maior parte, subserviente.

Tais descobertas tiveram um efeito multiplicador de raciocínios e compreensões, um fenômeno que os psicanalistas, soube mais tarde, chamam de insight, mas que eu ignorava. Não estava muito preocupado com nomes, diante de um universo todo novo que se abria para mim, a partir da constatação de que “as coisas estão erradas”. Absurdo era a ideia que me vinha constantemente à cabeça: “As coisas estão erradas e as pessoas não veem?”, perguntava-me. “Por que insistem em fazer as coisas erradas?” E não só na escola: agora, em todo lugar para onde olhava eu via coisas erradas, fora de lugar, sem sentido. Eu enxergava pela primeira uma sociedade contraditória, um mundo absurdo.

A descoberta do absurdo foi um impacto tão forte na minha vida que não tive coragem de conversar sobre ela com ninguém. A sensação que eu tinha é que só eu percebia o absurdo, portanto me considerariam louco, se tocasse no assunto. Havia ainda outra possibilidade: todos percebiam, mas fingiam não ver; nesse caso, desconversariam ou ririam de mim por só agora ter percebido o que todos sempre souberam.

Só compartilhei a descoberta do absurdo com o papel e a caneta, anotando as ideias que me ocorriam em inúmeros cadernos escolares e folhas soltas. Às vezes elas vinham em versos, às vezes se traduziam em desenhos. Aquilo me colocou num mundo particular, pois só podia me relacionar representando e supondo que os outros também representavam; nenhum de nós falava o que pensava, ninguém tratava do que realmente era importante, do que era real. Havia uma coisa que todos sabiam e não diziam; talvez também existissem muitos iludidos, como eu tinha sido até então, e ninguém queria ser responsável por despertá-los para a realidade absurda.

Perceber o que nunca tinha percebido despertou na minha cabeça curiosidade por quase todos os assuntos e me levou aos livros: eu não queria apenas saber por que se estudava gramática, mas quem eram aqueles escritores copiados no velho manual de português. Se a existência da ditadura militar era um absurdo, eu queria compreender por que ela existia. Cada nova leitura me levava a inúmeras outras, logo eu estava elaborando um plano de estudo e uma lista de livros “fundamentais”. Não os segui rigorosamente, mas aproveitei bastante daquilo. Também havia artistas que eu devia conhecer, músicas que devia ouvir, quadros que devia ver.

Na prática, mais que as fontes, o que eu realmente devorei naqueles anos foram enciclopédias, que me permitiam montar o quebra-cabeça de tudo que eu pensava – eu podia não ter lido Ulisses, um livro volumoso e difícil, mas, em compensação, lera com prazer O Retrato do Artista Quando Jovem, sabia quem era James Joyce, o que ele fizera, o que ele significava. Não ouvira toda a obra de Beethoven, à qual não tinha acesso, pois, se podia tomar livros emprestados na biblioteca pública, não tinha dinheiro para comprar muitos discos, mas passava tardes e tardes imerso no que parecia ser a obra prima do compositor alemão: a Quinta Sinfonia. Tum-tum-tum-tum! Fechado no meu quarto escuro, a cabeça pesada de ideias sombrias, o peito apertado de sentimentos novos, sentia a sinfonia vigorosa me confortar. Eu não a ouvia por obrigação intelectual, mas porque ela me dava prazer. Era capaz de repetir e repetir o segundo movimento; alguns instantes líricos do primeiro, na altura dos cinco minutos, tocavam meu coração profundamente.

Foi assim minha “formação”: eu procurava “situar” tudo, mas só consumia o que me conquistava; não tinha disciplina nem maturidade para fazer diferente, para superar livros difíceis. Assim foi que devorei A Montanha Mágica, mas nunca li José e seus Irmãos; consumi cada linha de A Náusea, mas não avancei no O Ser e o Nada; Crime e Castigo pareceu-me escrito para mim, mas Recordações da Casa dos Mortos foi um suplício que deixei de lado. Alguns livros me conquistavam pelo nome ou pela ideia, como A Idade da Razão e A Morte de Ivã Ilich, outros foram lidos com avidez contida, tal o prazer que me davam: O Primeiro Amor, O Vermelho e o Negro, Os Três Mosqueteiros...

Li Dores do Mundo, mas não O Mundo como Vontade e Representação; carreguei Nietzsche debaixo do braço e saboreei seus aforismos, mas Kant nunca saiu da prateleira. No Mito de Sísifo contentei-me com as primeiras frases, soberbas: “Só há um problema filosófico realmente sério: é o suicídio. Julgar se a vida merece ou não ser vivida é responder a uma questão fundamental da filosofia. O resto, se o mundo tem três dimensões, se o espírito tem nove ou doze categorias, vem depois. E se é verdade, tal como Nietzsche o quer, que um filósofo, para ser estimável, deve dar o exemplo, avalia-se a importância dessa resposta, visto que ela vai preceder o gesto definitivo.”

De Camus, o que me agradou do começo ao fim foi A Peste, na tradução de Graciliano Ramos. Este, aliás, foi um dos raros autores brasileiros cujas narrativas, nessa época, me apraziam tanto quanto Stendhal ou Alexandre Dumas. Apaixonei-me logo por Gauguin e Van Gogh, mas não consegui admirar os renascentistas; gostei de Tchaikovski, mas não de Stravinski. Ao mesmo tempo em que eu procurava responder perguntas e compreender o absurdo deste mundo do qual subitamente tomara consciência, transformava a arte no meu maior prazer, ao descobrir os grandes livros, as melhores músicas, os pintores impressionistas.

É claro que o velho manual de português, que até hoje conservo na minha biblioteca, não foi o único responsável por tudo isso. Eu cursava a escola técnica, como disse, e aquela experiência foi muito difícil para mim, foi, digamos assim, o terreno fértil no qual o manuseio do livrinho plantou a semente do absurdo. Mas essa é outra história.

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