quinta-feira, 26 de agosto de 2010

Trilha sonora

Minhas músicas prediletas*

1) Largo do Concerto para piano em fá menor BWV 1056 (Bach).

2) Feitio de oração (Noel Rosa e Vadico).
3) Saudade do Brasil (Tom Jobim).
4) Dear old Stockholm (Stan Getz e Chet Baker).

5) Clube da esquina nº 2 (Milton, Lô e Márcio Borges), sem letra.

6) God (John Lennon).
7) L'hymne a l’amour (Edith Piaf e Marguerite Monnot).
8) Lodi (John Fogerty), com CCR.
9) Flor, minha flor, com o Grupo Galpão.
10) Cordas de aço (Cartola).

11) Adagio do Concerto para clarineta e orquestra K 622 (Mozart).

12) Everytime we say goodbye (Cole Porter), com Ella Fitzgerald.
13) O morro não tem vez (Tom e Vinicius), com Stan Getz, Luiz Bonfá, Tom etc.
14) Por una cabeza (Carlos Gardel e Alfredo Le Pera).
15) Nosso romance (Jacob do Bandolim), com Paulo Moura.16) Sala de recepção (Cartola).
17) Watching the wheels, John Lennon.
18)
Moon river (Henry Mancini).
19) Corcovado (Tom e Vinicius), com Astrud e João Gilberto e Stan Getz.

20 The sound of silence, Simon and Garfunkel.

21) Primeiro movimento da Quinta Sinfonia de Beethoven.
22) Sinal fechado, Paulinho da Viola (do disco Toquinho e Paulinho da Viola ao vivo, ou do disco homônimo do Chico).
23) Old love, com Eric Clapton (acústico).
24) Rancho da goiabada, de Aldir Blanc e João Bosco, com Elis Regina.

25) Layla, Eric Clapton (acústico).

26) Pois é, pra quê, de Sidney Miller, com MPB4.

27) If I fell, The Beatles.

28) Bom tempo, de e com Chico Buarque.

29) It's too late (Carole King).
30) In my life, The Beatles.
31) Segundo movimento da Quinta Sinfonia de Beethoven
.

32) Sábado, com o Som Imaginário.
33) Antonico (Ismael Silva), com Gal Costa no disco Gal a todo vapor.
34) The Medley, faixas 9 a 17 do álbum Abbey Road, The Beatles.
35) Estrada do sol (Tom Jobim e Dolores Duran), com Elis Regina.
36) Que reste-t-il de nos amours, com o João.
37) Noites Cariocas (Jacob do Bandolim).
38) Oh my love, John Lennon.
39) Pela décima vez (Noel), com Cristina Buarque.
40) My sweet Lord, George Harrison.

41) Oh Darling!, The Beatles.
42) Take five (Paul Desmond), com The Dave Brubeck Quartet

43) My pledge of love (Joe Jeffrey), com Joe Jeffrey Group 
44) Ain't no sunshine (Bill Withers), com Bill Withers.
 

*Música predileta é aquela que me encantou quando a ouvi pela primeira vez e toda vez que a escuto paro para prestar atenção e a repito. Também incluí nesta lista músicas que tocam meu coração por algum motivo, músicas que eu canto, não necessariamente preciso ouvi-las.

A contradição da rotina e da liberdade

Gosto de ter tempo livre para fazer o que quiser, sem compromissos, horários, repetição. Mais que gosto: preciso. Isso é uma contradição evidente com o que escrevi antes, sobre o conforto da rotina. Sou naturalmente indisciplinado, rebelde ao pré-estabelecido, à ordem que vem de fora. Conciliar essas contradições é uma tarefa delicada, uma obra de arte de equilíbrio instável. Como fazer uma coisa e outra? Lembro-me de Thomas Mann dizendo que precisava de ordem externa e disciplina, porque seu mundo interno já era suficientemente indisciplinado e desordenado.

Imagino o mundo ideal como um mundo organizado como o que descrevi: casa, família, vizinhança, sociedade; horários, divisão de trabalho, todos fazendo sua parte, cooperando para a harmonia coletiva; a vida dividida em fases bem delimitadas, com ordens internas, hierarquia e evolução, plantando, cuidando e colhendo; o dia dividido em tarefas, a semana dividida em compromissos, o mês dividido em projetos, o ano dividido em estações e atividades afins.

Como essa organização pode combinar com a liberdade? Liberdade é como defino a condição que me dá alegria, por não me sentir amarrado a compromissos. É a liberdade criadora, para mim tão necessária quanto comer e dormir.

Antes de pensar nisso, quero dizer que a rotina que me conforta pressupõe legitimação, isto é, ela é transmitida com afeto e conhecimento, não é imposta com submissão e ignorância. As crianças devem ser educadas aprendendo por que fazem o que fazem. Como o conhecimento é construído em relações, a criança recebe um modelo, mas pode interferir nele, de forma que as coisas continuam evoluindo. É como se os educadores (pais, professores etc.) dissessem: "Não é assim para te oprimir, é assim porque consideramos que assim é melhor, o que você acha?" Esclareço que não se trata de uma educação democrática, na qual a criança decide em igualdade com o adulto, mas uma educação democratizante, na qual ela participa. O adulto tem responsabilidades diante da criança, tem que ser firme e impor limites. Nisso, as salesianas e o Clic! têm o que dizer: a amorevolezza, o afeto com compreensão e firmeza, são a argamassa da educação.

Na verdade, essa educação já responde à minha pergunta: faz parte dela o respeito às diferenças. Cada criança é única e, embora viva em relações e coletivamente, cada um age de um jeito. Há indivíduos, desde crianças, que se diferenciam mais, aos quais não cabem coisas que cabem à maioria, e ele deve ser respeitado, deve ter o direito de ser diferente. O que não significa que não tenha de assumir compromissos e responsabilidades comuns a todos e cujo cumprimento o beneficia.

Vista dessa forma a rotina social não é um estorvo, mas uma necessidade que desde pequeno se aprende a seguir com prazer, o prazer das relações afetivas e do dever cumprido. Cabe a cada um identificar o quanto precisa de tempo livre, o quanto precisa ficar solitário, o quanto é e precisa fazer diferente dos outros. Não é uma oposição ao grupo e à sociedade, uma vez que, no fim, tudo que se faz é, digamos assim, doado à coletividade – toda criação, todo conhecimento.

Nostalgia do que não vivi, fim da rotina que tive

Gosto de rotina: casa que funciona, família estável, horários, vizinhança, calendário anual. Posso dizer que tenho nostalgia do que não tive.

Na adolescência, coisas típicas de europeus e de ricos, que eu via em romances e filmes, me encantavam. Provavelmente porque faziam contraste com a desordem e o improviso da minha vida pessoal, da minha família, da minha classe social, do brasileiro. A sucessão das estações e das mudanças que elas implicavam, já previstas e programadas em novas rotinas. A temporada de verão na praia ou na montanha, os rituais com a neve, as épocas certas para as atividades agrícolas, os horários de refeições, a temporada teatral e musical, a própria rotina escolar, com papéis, matérias, horários, fases e objetivos bem estabelecidos. Tudo isso me parecia bom, pela segurança que passava. Na literatura e no exterior, porque no Brasil da ditadura militar, tudo era uma bagunça, falso e autoritário.

Quando viajamos para a praia pela primeira vez, numa viagem improvisada, fora de época (inverno), por período curto (quinze dias) em casa alugada, tentei me imaginar numa rotina européia. Evidentemente não funcionou, mesmo porque, naquela época, eu era um marginal na família e não me envolvia nos programas dos meus irmãos, primos e adultos.

À nossa maneira, porém, percebo hoje, tínhamos nossa rotina. Ela incluía a grande família, isto é, parentes do meu pai e parentes da minha mãe, vizinhos, amigos, a casa, as festas (especialmente Natal, Dia de Reis e aniversário do papai, nossa festa junina, com fogueira, comidas quentes e música). Durante muitos anos, a partir de 1972, as quinzenas na praia, em janeiro e julho, foram passeios que incluíram primos e tios, alguns vizinhos e amigos da nossa geração.

Tudo isso se perdeu, de uma geração para outra: a casa e seu ambiente, o convívio com parentes e vizinhos, as festas, as viagens. Nossa família não tem mais uma casa; nos dispersamos em vários bairros e o velho bairro perdeu suas características hospitaleiras; os parentes não se visitam, os vizinhos não convivem; não damos festas nem viajamos em bando para a praia.

segunda-feira, 23 de agosto de 2010

Memória tátil

Em Marina e o portão, a memória auditiva. Num filme que vi, o amante diz à amada para guardar a memória tátil. Lembrei de Paixão joanina, letra que escrevi para música da Rita, há uns vinte anos. Era exatamente isso, a memória tátil da paixão:

Angústia, anorexia
Sudorese, hipotermia
Acordo de noite
Me desligo de dia

Esquecer não é fácil
Tenho a memória tátil
Do seu corpo suave
Sua carne macia

Olhares, cumplicidades
Carícias, intimidades
Evitei como pude
Quando vi, era tarde

Mas beijei sua boca
E isso é fatal
Perdi a razão
Nessa paixão vernal

Paixão joanina – sem arroubos
Paixão cometa – rastro fugaz
Questão de timing ou destino
E é bom que seja assim
É bom que seja, é bom

As pegadas, a margem, a integridade

Olho com curiosidade o que me interessa, o que gosto. O sucesso não significa nada, mas fazer o que te move. O dinheiro, o que a sociedade pede que você faça, o que os pais querem. Olha: no começo ele era subestimado, desprezado, incompreendido. A sociedade quer que todos sejam iguais, ela tem só um modelo para todos seguirem. Se alguns não resistissem, não haveria arte. Alguns ouvem um chamado diferente. Não é uma voz, não vem do céu nem de espíritos, é interior. Também não fala, se expressa em gostos, sentimentos, preferências. Me sinto bem assim, não quero isso. Sou falso assim, me sinto dividido assim. Sou eu, me sinto íntegro. Essa integridade, compreender, ouvir, aceitar esse apelo faz caminhar. Para onde? Não se sabe, é uma procura permanente, que vai deixando marcas pelo caminho. Marcas: criações, pegadas do andar, tentativas, experiências, obras sempre incompletas. Só quando se olha para trás é que se vê que aquilo que ainda não era foi alguma coisa. Apenas segurança para ser quem se é, é o preciso, é simples e difícil. Ser, fazer. O modelo de arte da sociedade não cria arte nem ciência, só negócios. O modelo que a sociedade tem é de negócio, e o aplica à arte. Ela não identifica a arte quando nasce. O primeiro disco foi um fracasso. O primeiro livro não conseguiu editora. O segundo, o terceiro, enquanto viveu. Histórias que ouvimos sempre. A sociedade só aceita a arte que é sucesso. Sucesso = dinheiro. As incompreendidas relações entre o caminho e a chegada, entre a água e a margem. A sociedade quer aquele que chega, aclama aquele que chega primeiro, comemora o que superou os outros. Nós também, porque fazemos parte dela. No entanto, não entramos na água para chegar à outra margem, não caminhamos para chegar ao fim do caminho. Nadamos porque precisamos de nadar, andamos porque gostamos do caminho. Não posso viver sem a água. A vida está no caminho, não na chegada.

quarta-feira, 18 de agosto de 2010

As fases da vida

A vida é feita de fases. Tem a fase de brincar e de formação – a infância. A infância se transforma aos poucos, na adolescência, uma fase de transição, que perde características da infância (brincar, obedecer, depender) e incorpora outras (independência, aventura, sexo). Depois vem a juventude, que é a manhã da vida adulta; é a época do plantio, das escolhas, das decisões. A vida adulta é a vida da estabilidade, da construção, do contínuo plantar, cuidar, colher e plantar novamente. Por último vem a velhice, a idade em que colhemos o que plantamos, a idade em que aprendemos a andar devagar, a idade em que reconhecemos nossos limites, a idade em que vivemos um dia de cada vez e agradecemos cada novo dia.

segunda-feira, 16 de agosto de 2010

O melhor já foi criado. Compartilhemos, pois

Uma das coisas boas da internet é que a gente não precisa escrever, basta compartilhar coisas que já foram escritas, artes que já foram criadas. Hoje em dia existe uma obsessão criativa, produtiva, todo mundo quer criar alguma coisa, e como os meios são fartos, há criações demais. Há excesso de tudo: de músicas novas, de filmes novos, de livros novos, de novos tudo. Mas nem sempre novos.

Frequentemente penso que o melhor de tudo já foi feito. Frequentemente, quero apenas ler, ver, ouvir. Frequentemente descubro criações maravilhosas esquecidas numa estante de biblioteca, num sebo, numa locadora de vídeos, numa loja de discos. Enquanto isso consumimos porcarias "novas". Não é a arte que move essa produção de coisas novas, é a indústria, que precisa produzir sempre mais para ganhar dinheiro. Essa "arte" é lixo, essas criações "novas" já nascem para ser jogadas no lixo.

Gilberto Gil, um gênio da música brasileira, da música mundial, para ser preciso, passou quase uma década se dedicando à política, e nesse período fechou a porta da criação, como disse, porque as duas coisas não podiam conviver. Fez falta? Ele criou tanta coisa bonita antes, que nesse período a gente podia simplesmente ouvir novamente ou descobrir o que não tinha ouvido. No entanto, enquanto ele hibernava, a indústria da "música" nos impingiu dezenas, centenas, milhares de Gilbertos Gils de quinta categoria.

Na arte, como no resto da indústria, a humanidade – para ser claro: o capitalismo – produz hoje muito mais do que pode consumir, produz em excesso, produz coisa que vira lixo no momento seguinte e nem deveria ter sido consumida. O capitalismo produz população obesa, porque consome comida lixo em excesso, e insensível, porque consome arte lixo em excesso.

segunda-feira, 9 de agosto de 2010

Cidade ex-minha

Minha cidade foi destruída pela construção civil. Minha rua foi ocupada pelos carros. Não me reconheço mais aqui. Muita gente veio de fora, mas não foram eles que destruíram a cidade. Meus amigos de infância também vieram de fora e moravam em casas, como eu, brincavam na rua, como eu.

Quem destruiu a cidade foram os gananciosos da construção civil, que derrubaram as casas para erguer prédios-pombais, os gananciosos da indústria automobilística, que convencem as pessoas a comprar carros egoístas, em vez de se locomoverem em transporte coletivo. E os governos, eleitos pelos pobres, dirigidos pelos ricos.

"São os pobres que nos elegem, mas são os ricos que têm acesso ao palácio", já disse Luiz Inácio, com sua inusitada sinceridade. "Os que têm acesso ao orçamento são gananciosos, querem todo o dinheiro para eles, não fica nada para os pobres."

A cidade não cabe tanta gente, a cidade não cabe tanto carro. Vou-me embora, mas não deixo minha cidade – foi ela que me deixou faz tempo. Minha cidade não existe mais, só o nome é o mesmo, mas tudo em volta é diferente, e eu não me reconheço mais.

domingo, 8 de agosto de 2010

Dia dos Pais














Luxemburgo joga culpa no Galo

Estadão exclusivo: Luxemburgo põe culpa no Atlético. Andando na praia, de calção, o treinador dá entrevista ao editor de Esportes do jornal e joga a culpa da péssima situação do Galo no próprio clube. Comentário do leitor: Pronto! Ele arranjou o pretexto para o Kalil demiti-lo.

Calma, atleticanos! Foi só um sonho do Dia dos Pais.

sábado, 7 de agosto de 2010

A história toda


















A festa dos pobres e o lixo democrático
















Acabo de jogar no lixo uma embalagem plástica que envolvia uma revista distribuída gratuitamente e um saquinho de sopa, que veio com ela, como brinde. Este ato simples me incomoda. Para a minha geração, jogar as coisas no lixo, em vez de jogar no chão, é um hábito educado. Ainda hoje, me espanto ao ver pessoas que jogam lixo pela janela do carro, ponta de cigarro no chão, papel na rua. No entanto, a minha prática educada já não resolve o problema, por isso me incomoda tanto.

Não basta mais jogar o lixo na lixeira, como se tudo estivesse resolvido. Para onde vai o lixo? Cada vez produzimos mais lixo, lixos assim, inúteis, desnecessários, irresponsáveis, como uma embalagem plástica e uma sopa artificial. É tanto lixo que os passeios ficam lotados de lixeiras e sacos pretos o dia inteiro. Parecem bobagens, mas não são. Somado, dia após dia, o lixo produzido por milhões de consumidores nas grandes cidades forma um entulho gigantesco.

Dois fenômenos agravam o problema: 1) a população cresce; 2) povos e classes sociais pobres consomem artigos antes só acessíveis às classes ricas e médias.

Esta ascensão dos mais pobres é saudada como desenvolvimento. Faz sentido, é um avanço democrático abrir o portão da festa para os pobres, mas o lixo também aumenta, democraticamente. O que acontece com o mundo, enquanto os chineses se tornam americanos? O que acontece com o Brasil, enquanto a classe D vira C? É fácil perceber que os recursos naturais serão extintos muito mais rapidamente e produziremos quantidades astronômicas de lixo.

O desejo de consumir mais, assim como ignorar para onde vai o lixo que produzimos, é incompatível com a ascensão dos pobres, com sua participação na festa. Em outras épocas, ficávamos com as sobras dos ricos, agora que nos deixaram entrar, a comida não dá para todos. Depois da farra, os ricos curtiam a ressaca, enquanto os pobres eram convocados para limpar a bagunça. E agora, quem vai arrumar a casa?

As novas gerações, que nem participaram da festa, que nascerão no meio do lixo e da escassez, vão receber a conta. A festa dos pobres nunca será de luxo e desperdício como é a festa dos ricos.

segunda-feira, 2 de agosto de 2010

Jovem Guarda

A Jovem Guarda foi um "movimento" ridículo e artificial, mas havia talentos ali e expressava um desejo mundial da juventude, que chegou ao auge nos anos 60 e 70. Carlos Imperial, a Record e a CBS, para resumir em três nomes os interesses empresariais, perceberam um "mercado" e lhe ofereceram produtos. Da superfície para a raiz, as expressões do "mercado" eram: os Beatles, o rock’n’roll, a rebeldia juvenil, o baby boom do pós-guerra, os anos de ouro do capitalismo no pós-guerra.

Aqui como lá, havia jovens rebeldes, deixando o cabelo crescer, usando roupas coladas no corpo, falando gírias, transgredindo as normais sociais, namorando "livremente", ouvindo e dançando rock, compondo e tocando. Em vez de importar (discos, filmes, bandas, programas de tevê rádio), empresários, casas de espetáculos, emissoras e gravadoras passaram a investir também em produtos locais, programas locais, cantores e compositores locais, bandas locais. Foram todos na onda. Artificialmente, porque conduzido pelos empresários e porque os artistas se tornaram promotores de venda de produtos. (Acho que a primeira vez que ouvi falar em empresário foi assim, como o sujeito que tomava conta dos negócios dos artistas – e também artista, nessa época, era sinônimo de cantor popular.)

Todo mundo manipulando comercialmente anseios da juventude que estavam no ar. Assim é possível compreender a canção do Belchior "Como nossos pais", que diz: "quem me deu a ideia de uma nova consciência e juventude está em casa, guardado por Deus, contando o vil metal". Nesse sentido, os Beatles não são diferentes da Jovem Guarda, todos fazem parte desse grande negócio da "música jovem", ou mais, da juventude, porque a juventude se tornou mercado e lhe oferecer produtos se tornou um negócio.

Os Beatles foram influenciados por Elvis, que, por sua vez, foi usado pela indústria cultural da matriz, os EUA, a grande nação do século XX, a origem de Hollywood e do rock. Qual o mérito de Elvis? Ele tinha qualidades, assim como, aqui, Roberto Carlos também tinha. Com o tempo, a indústria vai passar a "fabricar" artistas, ou seja, vai pôr o produto à frente da matéria prima.

Inicialmente, o que ela fez foi pegar o que existia e tinha talento e investir nele, moldando-o e adaptando-o ao que considerava desejo do mercado. Com o tempo, achou que poderia pegar um qualquer e criar um tipo para ele, criar repertório, roupa, estilo etc. Na sequência, vieram os artistas descartáveis, de temporada, de moda: criava-se um produto para atender a um pretenso mercado, ele subia como foguete e na temporada seguinte (caía e) era substituído por outro produto.

E assim funciona hoje a indústria cultural. A diferença é de época: hoje não existe a efervescência dos anos 50-70, hoje os desejos da juventude são estimulados artificialmente, o movimento se inverteu, pois a indústria é mais forte, estabelecida e funciona como tal. A emoção e os desejos dos jovens são tratados como características permanentes, porque sempre há uma nova geração de jovens.

Na verdade, as gerações se sucedem rapidamente, não há mais a distância de gerações, mais de alguns anos, cinco no máximo, entre uma geração e outra, uma moda e outra. Ao mesmo tempo, ser jovem se tornou uma idade eterna: os jovens da década de 60 continuam jovens hoje, basta pensar na Rita Lee ou na volta dos Mutantes. Roberto Carlos, maior ícone brasileiro do período, não se apresenta hoje como velho que é, mas como jovem conservado numa bolha do tempo.

O maior representante dessa juventude eterna, Michael Jackson, viveu 50 anos como se sempre fosse teen (que é a palavra definidora da idade, para a qual não se tem correspondente em português, e que significa basicamente a idade antes de ser tornar adulto), envelheceu entre crianças, e morreu de forma tão misteriosa quanto patética. Num mundo que envelhece, em que a natalidade cai e a vida se torna mais longeva, ninguém quer ser velho mais.

As gerações do pós-guerra inauguraram isso e continuam vivas cantando, tocando, dançando, compondo e vestindo-se como jovens. Sem ideias a defender, como aquelas, desde a década de 70, quando a indústria da juventude preponderou sobre as aspirações desta, ser jovem tornou-se um conceito, que migrou para o culto do corpo, para a vida saudável, não uma vida naturalmente saudável, mas artificialmente saudável, garantida com cirurgias plásticas, malhação, suplementos alimentares, proteção dos raios solares, combate aos radicais livres e outras modas. Modas que vieram para ficar, assim como o rock que virou pop e as transformações no comportamento. A indústria da vida saudável e natural se juntou à indústria da juventude, criando a indústria da juventude eterna.

O absurdo disso é que o mundo em que vive a humanidade eternamente jovem é cada vez mais artificial, cada vez menos natural, cada vez mais velho, no sentido de que foi destruído e dele cada vez resta menos, um mundo de clima modificado, de polos degelados, de mares poluídos, de florestas desertificadas, de rios assoreados, de espécies extintas, de cidades gigantescas com problemas do mesmo tamanho. As pessoas se encontram virtualmente, vivem para o trabalho e para o consumo de produtos cada vez mais sofisticados e "inteligentes". Vivemos a vida eternamente jovem num mundo em que tudo é possível graças à tecnologia.

Havia talento em Roberto Carlos que encontrou expressão na artificial Jovem Guarda, assim como havia talento em John, Paul e George, assim como havia talento em Elvis, cuja rebeldia consistia em cantar e rebolar como negros. Elvis sucumbiu na indústria da "arte jovem", como tantos e tantos outros, sendo esse um clichê do modelo, só variável pelas idiossincrasias dos expoentes mais interessantes.

Em toda essa mixórdia jovem cultural capitalista, John Lennon foi o cara; morreu "jovem", assassinado, estupidamente, quando tinha deixado de ser um garotão e se dedicava à família, vivia tão comumente quanto era possível ao maior astro do rock de todos os tempos, um artista cujo talento se sobressaiu e sobrevive, que percebeu que "o sonho acabou" no fim dos anos 60, que assumiu posições políticas, enfim, tornou-se adulto. Seu assassinato, se não tramado pelo sistema, como era comum acontecer com líderes nos EUA no século XX (John Kennedy, Malcon X, Martin Luther King, Bob Kennedy), foi tramado pelo destino, e simbólico: John, que amadureceu, morreu, enquanto a indústria da juventude permanece viva.

Greve

No capitalismo, a propriedade dos meios de produção é privada e a apropriação da riqueza produzida, também. No entanto, a riqueza é produzida coletivamente, por todos que trabalham. Isso não aparece: não é dito nos discursos, não é visto socialmente. No dia-a-dia, é o dono (ou seu preposto) quem fala pela empresa, é o dono (ou seu preposto) quem decide, é o dono (ou seu preposto) quem dá as ordens. É o dono até quem decide vender ou fechar a empresa. A empresa é identificada com seu dono.

A greve é uma forma de os trabalhadores (coletivamente) mostrarem que sem eles, sem seu trabalho, não há riqueza, não há lucro, não há empresa. Na greve, os trabalhadores (unidos, é preciso que estejam unidos) mostram que apenas a propriedade nominal é do capitalista, a propriedade efetiva, aquela que produz as riquezas, é também dos trabalhadores, é de todos aqueles que são necessários para que a empresa funcione.

Há muito os trabalhadores aprenderam isso, há quase dois séculos, e esta é a origem dos sindicatos: a instituição que lembra os trabalhadores que eles são parte da empresa na qual trabalham, do segmento econômico no qual trabalham; os sindicatos são a instituição que mantém a memória dos trabalhadores e forja sua ideologia.

Nessa ideologia, a compreensão de que cada trabalhador depende dos outros, que a união faz a força, e a formação de um sentimento de solidariedade, são fundamentais. Por isso Marx supunha que os operários traziam em si o germe do socialismo, de uma sociedade coletivista.

Velocidade da história

Leio com prazer Mário Lago – Boemia e Política, de Mônica Velloso, não tanto por ele, um sujeito extraordinário, mas não um gênio, como Noel Rosa (centenário de nascimento este ano) e Nelson Rodrigues, mas porque o livro mostra o cenário no qual o artista viveu. As primeiras décadas do século XX foram ricas em transformações sociais e elas estão contadas no livro.

Coisas como o surgimento do rádio como veículo de comunicação de massas. Um decreto do presidente Getúlio Vargas autorizou publicidade nas rádios, e o rádio explodiu. O Brasil muda com a Revolução de 30, todos sabemos disso, mas uma coisa é listar fatos sociais, como fazem os livros de história didáticos, e outra é vê-los acontecendo na vida de alguém, como faz Mônica Velloso.

Mais do que nunca precisamos conhecer a história, mais do que isso: senti-la, porque o mundo muda numa velocidade alucinante e acelerada, e perdemos a referência do passado. O Rio de Janeiro, capital da República, era outra cidade antes do rádio, o Brasil era outro antes da Revolução de 30.

A internet é um fenômeno semelhante, que transforma tudo e torna tudo que existia antes ultrapassado. A televisão vem depois do rádio e antes da internet, cada veículo provoca uma revolução nos costumes. Na minha memória, a televisão é nebulosa, porque o fenômeno da Globo ocorre nos anos da ditadura militar, e isso mancha sua ascensão.

Essa overdose de informações do mundo contemporâneo é um processo caótico e extremamente estressante. Ligamo-nos a tudo que acontece em todo o mundo e ao mesmo somos incapazes de de agir minimamente na nossa cidade, no nosso bairro, na nossa rua, no condomínio onde moramos.

Tudo muda

Uma das lições da história é que tudo está por fazer. Cada lugar e cada época têm seu caminho. Conhecer e compreender o passado é importante, mas isto não significa que ele vai se repetir. Nem como farsa, muitas vezes. O mundo é construído. O Brasil não repete a Rússia, os Estados Unidos são diferentes da Europa, o capitalismo do século XXI tem condições que não tinha no século XIX. “Tudo muda o tempo todo no mundo.”