segunda-feira, 2 de agosto de 2010

Jovem Guarda

A Jovem Guarda foi um "movimento" ridículo e artificial, mas havia talentos ali e expressava um desejo mundial da juventude, que chegou ao auge nos anos 60 e 70. Carlos Imperial, a Record e a CBS, para resumir em três nomes os interesses empresariais, perceberam um "mercado" e lhe ofereceram produtos. Da superfície para a raiz, as expressões do "mercado" eram: os Beatles, o rock’n’roll, a rebeldia juvenil, o baby boom do pós-guerra, os anos de ouro do capitalismo no pós-guerra.

Aqui como lá, havia jovens rebeldes, deixando o cabelo crescer, usando roupas coladas no corpo, falando gírias, transgredindo as normais sociais, namorando "livremente", ouvindo e dançando rock, compondo e tocando. Em vez de importar (discos, filmes, bandas, programas de tevê rádio), empresários, casas de espetáculos, emissoras e gravadoras passaram a investir também em produtos locais, programas locais, cantores e compositores locais, bandas locais. Foram todos na onda. Artificialmente, porque conduzido pelos empresários e porque os artistas se tornaram promotores de venda de produtos. (Acho que a primeira vez que ouvi falar em empresário foi assim, como o sujeito que tomava conta dos negócios dos artistas – e também artista, nessa época, era sinônimo de cantor popular.)

Todo mundo manipulando comercialmente anseios da juventude que estavam no ar. Assim é possível compreender a canção do Belchior "Como nossos pais", que diz: "quem me deu a ideia de uma nova consciência e juventude está em casa, guardado por Deus, contando o vil metal". Nesse sentido, os Beatles não são diferentes da Jovem Guarda, todos fazem parte desse grande negócio da "música jovem", ou mais, da juventude, porque a juventude se tornou mercado e lhe oferecer produtos se tornou um negócio.

Os Beatles foram influenciados por Elvis, que, por sua vez, foi usado pela indústria cultural da matriz, os EUA, a grande nação do século XX, a origem de Hollywood e do rock. Qual o mérito de Elvis? Ele tinha qualidades, assim como, aqui, Roberto Carlos também tinha. Com o tempo, a indústria vai passar a "fabricar" artistas, ou seja, vai pôr o produto à frente da matéria prima.

Inicialmente, o que ela fez foi pegar o que existia e tinha talento e investir nele, moldando-o e adaptando-o ao que considerava desejo do mercado. Com o tempo, achou que poderia pegar um qualquer e criar um tipo para ele, criar repertório, roupa, estilo etc. Na sequência, vieram os artistas descartáveis, de temporada, de moda: criava-se um produto para atender a um pretenso mercado, ele subia como foguete e na temporada seguinte (caía e) era substituído por outro produto.

E assim funciona hoje a indústria cultural. A diferença é de época: hoje não existe a efervescência dos anos 50-70, hoje os desejos da juventude são estimulados artificialmente, o movimento se inverteu, pois a indústria é mais forte, estabelecida e funciona como tal. A emoção e os desejos dos jovens são tratados como características permanentes, porque sempre há uma nova geração de jovens.

Na verdade, as gerações se sucedem rapidamente, não há mais a distância de gerações, mais de alguns anos, cinco no máximo, entre uma geração e outra, uma moda e outra. Ao mesmo tempo, ser jovem se tornou uma idade eterna: os jovens da década de 60 continuam jovens hoje, basta pensar na Rita Lee ou na volta dos Mutantes. Roberto Carlos, maior ícone brasileiro do período, não se apresenta hoje como velho que é, mas como jovem conservado numa bolha do tempo.

O maior representante dessa juventude eterna, Michael Jackson, viveu 50 anos como se sempre fosse teen (que é a palavra definidora da idade, para a qual não se tem correspondente em português, e que significa basicamente a idade antes de ser tornar adulto), envelheceu entre crianças, e morreu de forma tão misteriosa quanto patética. Num mundo que envelhece, em que a natalidade cai e a vida se torna mais longeva, ninguém quer ser velho mais.

As gerações do pós-guerra inauguraram isso e continuam vivas cantando, tocando, dançando, compondo e vestindo-se como jovens. Sem ideias a defender, como aquelas, desde a década de 70, quando a indústria da juventude preponderou sobre as aspirações desta, ser jovem tornou-se um conceito, que migrou para o culto do corpo, para a vida saudável, não uma vida naturalmente saudável, mas artificialmente saudável, garantida com cirurgias plásticas, malhação, suplementos alimentares, proteção dos raios solares, combate aos radicais livres e outras modas. Modas que vieram para ficar, assim como o rock que virou pop e as transformações no comportamento. A indústria da vida saudável e natural se juntou à indústria da juventude, criando a indústria da juventude eterna.

O absurdo disso é que o mundo em que vive a humanidade eternamente jovem é cada vez mais artificial, cada vez menos natural, cada vez mais velho, no sentido de que foi destruído e dele cada vez resta menos, um mundo de clima modificado, de polos degelados, de mares poluídos, de florestas desertificadas, de rios assoreados, de espécies extintas, de cidades gigantescas com problemas do mesmo tamanho. As pessoas se encontram virtualmente, vivem para o trabalho e para o consumo de produtos cada vez mais sofisticados e "inteligentes". Vivemos a vida eternamente jovem num mundo em que tudo é possível graças à tecnologia.

Havia talento em Roberto Carlos que encontrou expressão na artificial Jovem Guarda, assim como havia talento em John, Paul e George, assim como havia talento em Elvis, cuja rebeldia consistia em cantar e rebolar como negros. Elvis sucumbiu na indústria da "arte jovem", como tantos e tantos outros, sendo esse um clichê do modelo, só variável pelas idiossincrasias dos expoentes mais interessantes.

Em toda essa mixórdia jovem cultural capitalista, John Lennon foi o cara; morreu "jovem", assassinado, estupidamente, quando tinha deixado de ser um garotão e se dedicava à família, vivia tão comumente quanto era possível ao maior astro do rock de todos os tempos, um artista cujo talento se sobressaiu e sobrevive, que percebeu que "o sonho acabou" no fim dos anos 60, que assumiu posições políticas, enfim, tornou-se adulto. Seu assassinato, se não tramado pelo sistema, como era comum acontecer com líderes nos EUA no século XX (John Kennedy, Malcon X, Martin Luther King, Bob Kennedy), foi tramado pelo destino, e simbólico: John, que amadureceu, morreu, enquanto a indústria da juventude permanece viva.

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