quinta-feira, 30 de setembro de 2010

Representantes que não representam os eleitores

Quando a gente vê essa multidão de cavaletes com propaganda de candidatos em cima dos passeios, o que é que vem na cabeça?

Que são uma cambada de oportunistas que pedem o nosso voto porque precisam dele para se eleger, mas depois desaparecem e só se lembrarão de nós outra vez na próxima eleição. Eles não têm nada a ver com a gente, seus interesses são apenas pessoais, querem se eleger para obter benefícios para eles mesmos.

Que candidato eu conheço? Que candidato me conhece? Como é que ele pode me representar, se não sabe o que quero e o que penso? Como é que pode me representar se eu não sei quem ele é?

É assim a democracia representativa. Os candidatos pertencem a partidos, mas que são partidos? Numa eleição estão juntos, na outra são inimigos. Um político está num partido hoje, amanhã está em outro.

Se Serra e Dilma fossem candidatos avulsos, não faria a menor diferença: o candidato da direita e a candidata da esquerda.

O que decidimos é que presidente queremos, que governador queremos, que prefeito queremos.
No entanto, temos também de votar em senadores, deputados federais, deputados estaduais, vereadores.

Temos de escolher candidatos no mercado. Não o menor sentido. Esse é um tipo de democracia em que não há identidade entre o representado e o representante.

Muito mais razoável seria votar num partido. Cada partido em disputa forma a sua lista de candidatos, a gente vota no partido, a votação dá direito a número determinado de parlamentares, o partido indica seus representantes.

Que representantes serão esses não interessa, interessa que vão defender as propostas do partido, os mandatos pertencem ao partido, escolhido pelos eleitores.

Se o eleitor quer escolher o candidato, que entre no partido, participe da convenção e escolha a lista de candidatos; obterão os mandatos os mais votados, de acordo com o número de cadeiras obtidas na eleição.

Na campanha, em vez de se fazer propaganda de candidato, se faria propaganda das propostas do partido.

Para presidente, votaríamos no candidato do partido e no partido. Para governador, votaríamos no candidato do partido e no partido. Para prefeito, votaríamos no candidato do partido e no partido. Candidatos a prefeito, governador e presidente são os líderes do partido.

Como existem coligações, porém, o voto no partido é importante para distribuir o número de representantes dentro da coligação.

Este é um método muito mais razoável dentro desse sistema. Certamente é adotado em lugares em que a democracia representativa é mais evoluída.

Há outros sistemas. Comunidades, categorias profissionais, organizações diversas poderiam indicar seus candidatos. Em vez de políticos profissionais que compram votos no mercado, teríamos representantes legítimos de interesses coletivos específicos.

Numa cidade, isso é fácil de perceber. A população seria dividida pelo número de vereadores para se identificar quantos votos são necessários para se eleger um vereador. Assim, cada bairro, cada comunidade, cada região teriam direito a número determinado de representantes. A campanha seria feita ali, os eleitores conheceriam seus candidatos de perto e os candidatos conheceriam seus eleitores.

Enfim, não é por falta de métodos democráticos que a democracia representativa brasileira tem a péssima representação que tem.

Os eleitores não se lembram do candidato em que votaram e os candidatos só se lembram dos eleitores na época de eleição. Nesta, o que vale é o dinheiro disponível para a campanha – e de onde vem o dinheiro? De empresários e endinheirados, cujos interesses o parlamentar defenderá. Do eleitor, ele só quer o voto.

Forma-se um círculo vicioso que se completa com a falta de compromisso com os programas dos partidos, com negociatas para aprovar projetos, com o troca-troca de legendas. Tudo isso distante dos eleitores, que não acompanham o trabalho parlamentar do eleito.

Em outras palavras, esses parlamentares que elegeremos no próximo domingo não nos representam, não representam seus eleitores. Representam seus próprios interesses e os interesses daqueles que bancaram sua campanha.

quarta-feira, 29 de setembro de 2010

Dilma e Lula, as gerações 68 e 77

Há um fato histórico curioso na eleição da Dilma que ainda não foi explorado. Lula pertence à geração política dos anos 70, Dilma à geração dos anos 60.

A geração 68 começou defendendo o governo Jango contra o golpe, ou um pouco depois, lutando contra a ditadura, que ainda se instalava no país. Essa geração formada principalmente por jovens estudantes, liderou as grandes manifestações de massa de 1968 e, a partir do AI-%, que estabeleceu a ditadura completa e a liberdade de ação dos grupos extremistas de direita, passou à clandestinidade.

Na clandestinidade, a geração 68 se dividiu entre a luta armada urbana, a luta armada no campo, a luta de resistência junto aos trabalhadores e a capitulação.

Grande número desses jovens foram presos e torturados; uma parte foi exterminada pelos órgãos de repressão, outra parte sobreviveu. Muitos se exilaram e retornaram com a anistia de 1979. Alguns sobreviveram em liberdade e levaram vida clandestina, à frente de grupelhos de esquerda sem grande influência política, volta e meia golpeados pela ditadura, ainda assim. Outros, depois de presos, torturados e condenados por tribunal militar, cumpriram pena, deixaram a prisão e retomaram sua vida, seguindo caminhos diversos.

Estão nessa última condição muitos dos políticos que hoje têm mandato popular ou disputam estas eleições: Márcio Lacerda, Fernando Pimentel, Nilmário Miranda, Dilma Rousseff, para citar apenas mineiros. No final dos anos 60 e começo dos anos 70, todos eles eram muito jovens.
A geração 68 é muito diferente da geração dos anos 70, que começa também com mobilizações estudantis, em 1977, em todo o país, mas no ano seguinte é ultrapassada pelas greves no ABC paulista, nas quais se destaca a liderança de Lula.

Note-se: Lula veio depois, mas é mais velho do que Dilma. A geração 68 foi uma geração de garotos.

A geração de 68 foi uma geração cheia de confiança, pois nasceu sob a democracia populista e viveu a experiência do crescente movimento de massas entre 64 e 68; quando passou à luta clandestina, armada inclusive, julgava ser capaz de derrubar a ditadura e acreditava na revolução operária.

A diferença entre Dilma e Lula não é apenas de classe social. Lula, além de pertencer à classe operária, formou sua consciência política na luta sob a ditadura militar, nas dificuldades de quem está protegido pela clandestinidade, mas tem vida pública; a proteção de Lula era outra: sua relação íntima com as massas trabalhadoras, da qual fazia parte.

No entanto, ao contrário da geração 68, a geração de Lula fazia política com muito cuidado, valorizando conquistas, temente à repressão, capaz de se abater de repente sobre qualquer liderança, prendê-la, torturá-la, desaparecer com ela para sempre. Ao contrário da geração de 68, a geração política de Lula queria muito menos do que a revolução socialista, queria apenas a volta das liberdades democráticas – e alguns direitos sociais, algumas melhorias na vida cotidiana, como aumento de salário e emprego.

A geração 68 foi uma geração destemida que terminou derrotada. A geração 77 foi uma geração atemorizada que terminou vitoriosa.

A geração 68 tinha convicções ideológicas fortes, influenciadas pela URSS, pela China, pela Revolução Cubana, por Che Guevara, Mao, Trotski, Lênin. A geração 77 era pragmática e chegava atá a recusar a participação de socialistas. Não é à toa que o PT se chama Partido dos Trabalhadores, sem qualquer rótulo socialista ou revolucionário.

A geração 68, derrotada, voltou à política pelas mãos da geração 77, uma geração que não fazia política nem socialista nem revolucionária. A sigla PT representa esse prevalência da geração 77 sobre a geração 68. Esta, ainda machucada pelos anos de chumbo, viu com veneração o surgimento de um líder operário, que não era socialista nem revolucionário, mas era autêntico e vitorioso – Lula.

Nem todos os socialistas e revolucionários se curvaram a Lula, como se pode ver em siglas como Psol, PSTU e outras menores. Grande parte, porém, nos descaminhos de suas organizações, optou por aderir ao PT e à liderança carismática de um operário que, se não se contagiou pela revolução, tampouco se deixou seduzir pelo peleguismo.

Essa relação entre a geração 77 e a geração 68 é importante na fundação e no crescimento do PT. Pode-se dizer que durante três eleições presidenciais o líder Lula fez campanhas influenciado pela geração 68. Depois de perder três vezes, finalmente, em 2002, decidiu seguir na política burguesa o jeito de fazer política no sindicato; vitorioso duas vezes, firmou-se na Presidência da República como na presidência do Sindicato dos Metalúrgicos.

A eleição deste ano é uma curiosa sucessão da geração de 77 pela geração de 68.

Durante mais de três décadas, a geração 68 se contentou com papéis secundários, se contentou em assessorar a geração 77. Agora, Dilma recebe das mãos do maior expoente da geração 77 o poder de dar continuidade à sua administração.

Lula não escolheu Dilma por capricho, nem por capacho. Escolheu-a porque avaliou que ela é a mais capaz para governar, a mais capaz para conduzir as políticas públicas que ele implantou, mas também a mais capaz para gerenciar os inúmeros interesses que se expressam no governo.

Dilma certamente não é Lula, um fenômeno político ao mesmo tempo firme nos seus propósitos e conciliador, negociador.

Dilma é a geração 68 finalmente no poder, não pela revolução, como ela queria, mas pela eleição, como quis a geração 77.

Resta saber o que ficou dos ideais dos anos 60, se tudo é o pragmatismo dos anos 70.

PS: As gerações pré-64 ficaram para trás, seu último representante foi Leonel Brizola, seu último presidente Tancredo Neves, que morreu antes de tomar posse. As gerações da ditadura, que tentaram sobreviver com o PDS-PFL-DEM, estão sendo varridas para a lata de lixo da história, com sucessivas derrotas eleitorais; seu último remanescente bem-sucedido é o vestusto ex-presidente hoje senador José Sarney. Passada a vez das gerações de 77 e 68, que ainda devem atravessar a próxima década, o que virá? Não há mais políticos ligados às grandes batalhas entre direita e esquerda. Restarão os profissionais, os herdeiros, os técnicos. E os ambientalistas. Os ambientalistas são provavelmente os últimos remanescentes da linhagem de políticos ideológicos e idealistas.

Guerra declarada ao governo popular

A guerra está declarada, como na Venezuela, oito anos atrás. Voto em branco, voto nulo, voto em Marina, manipulação de pesquisas...

A velha mídia é o partido da direita golpista.

Como não podem falar eles mesmos, porque o efeito seria mínimo, os reacionários são ventríloquos de artistas, jornalistas e celebridades.

Como não podem falar que o país vai mal (não vai) e que são mais competentes (não foram), usam o velho discurso moralista que mobiliza a classe média.

"Quanta corrupção!" Corrupção no governo Getúlio Vargas, corrupção no governo JK, corrupção no governo Jango (até o derrubaram), corrupção no governo Lula.

Só não tem corrupção nos governos deles, porque a imprensa (eles mesmos) não mostra.

A nova liberdade de imprensa

Jornalistas não falam mal de empresas jornalísticas (em público: entre si, é hábito) porque dependem delas para sobreviver, precisam de emprego.

É um procedimento comum no capitalismo, as empresas fazem listas negras de trabalhadores indesejáveis. Era assim no começo do sindicalismo e nunca acabou completamente, porque tem uma base real: as empresas não querem empregados que questionem, que sublevem os colegas, que criem problemas, enfim. (Os novos modelos de adesão dos trabalhadores às empresas têm limites claros: não se pode questionar o poder, muito menos a propriedade.)

Mas tem o outro lado, o dos trabalhadores. Todos precisamos justificar a nossa vida, aceitar o cotidiano, estabelecer uma ordem na qual os dias se sucedam de forma mais harmônica e consigamos sucessos e progressos. Assim, é melhor confiar do que desconfiar, é melhor concordar do que contestar, é melhor acreditar do que duvidar, é melhor admirar do que odiar, é melhor obedecer do que enfrentar.

A gente precisa estabelecer boas relações no trabalho para tornar suportável uma rotina que frequentemente nos parece sem sentido, porque não participamos das decisões nem somos os donos da empresa nem nos apropriamos do resultado do nosso trabalho, mas apenas embolsamos um salário, no fim do mês.

No esforço para tornar melhor o que é ruim, para tornar tolerável o que é insuportável, para gostar do que não escolhemos, para tornar agradável o que não podemos mudar, adotamos a visão do chefe, a visão do patrão, a visão do sistema.

Na classe média, isso é mais frequente e compreensível: ela tem a ilusão da ascensão social, da passagem de trabalhador assalariado a proprietário, ou pelo menos a chefe, com salário capaz de comprar muitas das riquezas produzidas pelo sistema, de ascender na empresa ou de trocar um emprego por outro com vantagens, que é o que se chama "carreira".

Há efetivamente trabalhadores que mudam de classe, que não apenas chegam à classe média, mas se transformam em capitalistas. São raros, mas reforçam a ideia de que o sistema oferece oportunidades, que qualquer um pode ascender socialmente e que isso é uma questão de esforço pessoal.

Esforço que inclui competição: quem quer "vencer" na vida tem de superar seus iguais, transformados em rivais, pois não há lugar para todos no alto da pirâmide. Assim, os privilégios das classes ricas e poderosas se justificam como prêmio pela competência, pelo talento e pelo esforço. E justificam a desigualdade social.

Essa lógica ajuda a manter a adesão dos trabalhadores ao sistema, nos ajuda a levar nossa vidinha cotidiana sem revolta, com algum conforto, seguindo objetivos que vamos nos impondo. A competição entre indivíduos para ascender socialmente, para "chegar lá", é um dos combustíveis do sistema.

O capitalismo, um sistema tão desigual e tão antidemocrático, não prospera apenas pelo uso da força. Ele sobrevive porque de alguma forma aderimos a ele, porque nos adaptamos a ele, nos conformamos a ele, organizamos nossa vida de tal forma que é mais confortável seguir oprimidos e explorados do que nos revoltarmos. Para isso precisamos aceitar nossa condição, justificá-la, aceitar, enfim, que "as coisas são assim", que assim é certo e melhor.

O jornalista que na mesa de bar, com colegas, fala mal da empresa em que trabalha, do chefe ao qual obedece e do artigo que produz diariamente (o jornal, o noticiário), não faz o mesmo publicamente porque tem de sobreviver, precisa do emprego, não pode correr o risco de ser demitido e entrar numa lista negra dos patrões – afinal, "se você não gosta, por que é que quer trabalhar aqui?", é o argumento que poderá ouvir.

Mas ele também age assim porque acredita no mito do jornalismo, da liberdade de imprensa, da informação correta que advém da competição entre os veículos, na empresa jornalística como empreendimento privado. Há um argumento recorrente que diz: "esse modelo de imprensa é o pior, exceto todos os outros".

A internet mudou isso, muitos jornalistas estão criando coragem de criticar os patrões, de se distinguirem deles, de pensar com a própria cabeça. Afinal, na web, o jornalista não depende do patrão, qualquer um pode ter o seu jornal, nem é preciso ser profissional para isso.

A web cria um novo modelo de jornalismo, com características próprias. Uma dessas características é que o jornalista não precisa ter patrão, a propriedade do veículo noticioso (editora, jornal, revista, emissora) não é mais privilégio dos capitalistas. Nem se trata exatamente de uma propriedade, pois tudo aqui é virtual.

A web oferece oportunidade para o jornalista empreendedor, para grupos de jornalistas, para organizações da sociedade e até para o leigo.

Outra característica é a multiplicidade de veículos. A "competição" na web é tão vasta que o novo jornalismo precisa superar o enorme desafio de ser visto, ser visitado, ser lembrado, ser lido, enfim.

Na web, a liberdade de imprensa adquire novo sentido. Não se trata mais da liberdade de jornais, revistas e emissoras publicarem o que querem. O direito de resposta também perde o sentido, como contrapartida à liberdade de imprensa.

Na web, todos têm o direito de falar e de ser ouvidos. Se você discorda, pode se manifestar instantaneamente. Se foi atacado ou se sua informação foi distorcida, você pode responder, sem pedir autorização a juiz nem depender da boa vontade do proprietário.

A web criou a verdadeira liberdade de imprensa, que não se confunde com a "liberdade de empresa".

Na imprensa tradicional, se uma informação é falsa ou distorcida, ela só pode se corrigida: a) na próxima edição; b) pela própria publicação ou emissora; c) por ordem judicial.

Na web, a informação pode ser corrigida: a) imediatamente; b) pela própria vítima; c) por qualquer pessoa; d) em veículo próprio; e) em comentários ao texto; f) em novos textos publicados no mesmo endereço; g) em (inúmeras) outras páginas.

A multiplicidade e a velocidade da informação na web criam uma nova liberdade de imprensa.

A web cria também uma nova imprensa, uma imprensa que não é mais dos proprietários, mas dos cidadãos: todo mundo falando com todo mundo. Como isso se dá e se dará ainda está sendo resolvido, depende de soluções tecnológicas, que aparecem a cada dia, e da adesão dos indivíduos ao novo modelo.

É certo, porém, que esta é uma característica intrínseca do novo modelo de comunicação, assim como a propriedade, o trabalho profissional e o consumo passivo eram os papéis reservados ao capitalista, ao jornalista e a todo o restante da população, respectivamente, no modelo tradicional.

Esse modelo democrático de imprensa reserva um novo papel e novas funções para o jornalista. Sem medo de perder o emprego, sem necessidade de se submeter aos chefes e de justificar seu comportamento, o jornalista pode exercer de forma plena sua profissão, que nada mais é do que informar corretamente, perseguir a verdade, colocar a notícia a serviço da coletividade.

terça-feira, 28 de setembro de 2010

Marina é um passo à frente, Wagner é um passo atrás

Admiro Marina e penso que sua visão de desenvolvimento corresponde às necessidades do século XXI, ou é a mais próxima disso. Em relação ao ambiente, que é a questão central deste século, Marina (não o PV, que é um balaio de gatos e hienas) está à esquerda do PT, que está à esquerda de todo o resto. O que Marina tem de bom, no entanto, ficou escondido sob o que ela tem de ruim, ou o que têm de ruim seus apoiadores, como esse ator, cuja opinião política vale tanto quanto a de um gari – ao contrário do Boris Casoy, eu respeito os garis, mas nenhum programa de entrevista pergunta o que eles pensam.

O que importa o que pensa Wagner Moura? Nada. No entanto, como ator global – muito bom ator, diga-se – ele ganha o direito de fazer propaganda eleitoral. Devia, por isso, pensar mais no que diz, antes de esculachar um governo aprovado por 80% da população. Lula é muito mais comedido do que ele no uso da sua popularidade, o que lhe deveria ensinar alguma coisa.

Ator não deve se meter a falar do que não entende, ou do que entende como cidadão comum, e como cidadão comum ninguém perguntaria sua opinião. Ele entende de representar, mais que isso é fazer papel de porta-voz dos patrões que querem impedir a eleição de Dilma. Ou será que ele é um líder de classe? Será que se manifesta como porta-voz de trabalhadores do cinema e da televisão? Acredito que não.

Essa entrevista, ou este trecho de entrevista, expressa o lado reacionário da Marina, usada para tirar votos de Dilma e levar a eleição para o segundo turno, quando o partido da imprensa golpista (pig) ganharia tempo para inventar novos fatos que prejudiquem a eleição da candidata do PT.

A Marina que aparece em debates sobre temas importantes é uma líder política importante, essa que aparece nos debates nas tevês e no noticiário do pig não passa de instrumento da direita. Seu potencial de crescimento é pequeno, porém, porque só consegue atrair a classe média moralista, gente que forma sua opinião com base no que dizem celebridades.

O que resta aos reacionários é fazer barulho

O Estadão assumiu que faz campanha para Serra. Meses atrás, a presidente da Associação Nacional de Jornais declarou que a imprensa assumiu o papel de oposição ao governo Lula "porque a oposição está profundamente fragilizada". Em campanha para tentar impedir que o presidente Lula faça sua sucessora, a chamada grande imprensa publica calúnias e fabrica escândalos. Um jornal, revista ou emissora lança a mentira e os demais a amplificam, tentando dar-lhe aparência de verdade, já que todos falam a mesma coisa.

O que estamos vendo é a radicalização de um setor empresarial antiquado, monopolizado por algumas famílias e políticos, beneficiado por concessões que remontam ao regime militar e que se tornou porta-voz dos grupos mais reacionários do país. Um setor que vê seu poder diminuir com a expansão da internet e ameaçado por mudanças no sistema de comunicações. Um setor ainda que perdeu o acesso direto ao poder, no governo Lula, e que vê definhar sua expressão nos poderes legislativo e executivo, eleição após eleição.

O que tem essa gente ainda? De forma desproporcional à sua importância econômica e à sua representação política, eles têm nas mãos a maior rede de televisão do país, muitas emissoras de rádio, os maiores jornais e revistas, as maiores editoras. O que lhes resta é gritar e espernear. O que lhes resta é fazer barulho.

É bom lembrar o que aconteceu na Venezuela em 2002. Essa gente conseguiu derrubar o presidente Hugo Chávez – e lá eles contaram com apoio de alguns militares –, mas sua vitória durou pouco: o barulho que fizeram não correspondia à sua força de fato. Quando a população que apoiava o presidente eleito, amplamente majoritária, se deu conta do que tinha acontecido, reagiu, pôs para correr os golpistas e recebeu Chávez de volta de braços abertos. O governo que tinha se formado, sorridente e fanfarrão, caiu como um castelo de cartas.

Aqui, teriam quem a apoiá-los? Militares, não, que se saiba. A classe média moralista? Seria esse seu exército, mas ele não teve até agora coragem de sair à rua. Os cabos eleitorais da direita vêm de outras classes, mais pobres, que recebem uns trocados para balançar bandeiras nos sinais de trânsito. A classe média moralista se limita a inocular seu veneno preconceituoso na internet, mas me parece que, na nova comunicação, ela é minoritária.

Um país profundamente antidemocrático

Este é um país profundamente antidemocrático.

A antidemocracia está nos meios de comunicação. Tevês e rádios são concessões públicas controladas por algumas famílias e por políticos, os cidadãos e as organizações sociais não têm acesso a elas, não podem se expressar, não podem produzir informações e conteúdos. Os jornais e revistas são grandes empresas que se beneficiam de publicidade oficial, pertencem aos mesmos poucos grupos, que monopolizam a informação e publicam o que querem.

A antidemocracia está no transporte. O dinheiro público é investido em construção de estradas, viadutos, pontes, túneis, elevados, duplicações, recuperação e melhoramento de pistas para uso de carros particulares. O transporte coletivo não merece atenção, não recebe recursos, não tem qualidade e é caro. O sistema de ônibus urbano é absurdo de tão ineficiente. Metrôs não são construídos. Não há ferrovias para transporte de passageiros. Só o que interessa ao sistema é produzir e vender carros sofisticadíssimos e caríssimos para realçar a riqueza de alguns e a desigualdade social.

A antidemocracia está na terra. Os latifúndios de grandes empresas que se dedicam à monocultura e à criação extensiva de exportação monopolizam o campo. Eles expulsam os pequenos, as famílias, os pobres que produzem para a subsistência e de forma diversificada. Derrubam matas, contaminam rios, secam nascentes, destroem biomais, extinguem espécies animais e vegetais.

A antidemocracia está na saúde. Os melhores tratamentos, os equipamentos mais modernos, os medicamentos de última geração, as melhores instalações hospitalares e profissionais mais competentes estão à disposição daqueles que podem pagar. Os planos de saúde predominam, pagamos a empresas privadas por serviços que deveriam ser prestados pelo Estado, que para isso cobra impostos. Os hospitais públicos são lotados, mal equipados, pagam mal aos seus funcionários, têm filas que levam à morte. Para o pobre é difícil uma consulta, um tratamento, a compra de um remédio.

A antidemocracia está na educação. A escola fundamental pública de péssima qualidade atende o pobre. As instalações são péssimas, tem aluno demais, os professores ganham mal, a violência é uma ameaça permanente. Quando ele termina o segundo grau, não passa no vestibular da universidade pública, boa e gratuita, tem que estudar na universidade particular, cara e ruim. O rico estuda em escola fundamental particular, que é boa, e passa no vestiular da universidade pública.

A antidemocracia está no serviço público. O cidadão não tem acesso à justiça, o legislativo faz leis para beneficiar lobbies, o atendimento nas repartições é moroso para quem não paga propina. Pagamos impostos e não temos serviços, o dinheiro dos impostos é direcionado para pagamento de empreiteiras e compra de materiais de grande empresas, com caixa dois para os políticos.

A antidemocracia está na democracia representativa. De quatro em quatro anos elegemos vereadores, deputados, senadores, prefeitos, governadores, presidente. É o único momento em que eles dependem de nós, o único momento em que nos procuram. Prometem, falam conosco, nos tratam bem. Depois de eleitos, somem. Vão cuidar da sua vida, de trabalhar para os lobbies, de desviarem recursos públicos para seus bolsos, ainda que sejam recursos lícitos, mas muito maiores do que qualquer eleitor ganha. Além dessa diferença financeira, a distância entre o político e o cidadão é que este não detém mais nenhum poder, a não ser o do voto periódico. Não é chamado a participar do governo, a opinar, a dizer o que quer, o que pensa, o que considera mais importante; não dá ideias, não decide as políticas que deveriam ser feitas para ele. Na democracia representativa, o cidadão não conta.

As construções e os direitos da coletividade

Se o governo governasse para a população, as obras de construção civil não seriam como são. Qualquer um que observe um momento define como elas devem funcionar:

1) não podem ocupar o passeio;

2) caminhões não podem ocupar a rua;

3) descarga de material e caminhões betoneira têm que operar dentro do terreno da obra;

4) o barulho deve ser restrito a horários mínimos, como das 10h ao meio-dia e das 14h às 16h.

É muito fácil fazer, basta ter vontade política, basta inverter a lógica dominante hoje, em que o interesse particular e o interesse do rico prevalecem sobre o interesse coletivo.

A mudança de mentalidade e o mundo dos nossos descendentes

O que está em questão no século XXI é a visão que o homem tem de si mesmo.

O capitalismo criou o homem que submete a natureza para produzir riquezas. Com todas as desigualdades, com todas as injustiças, com todas as destruições, com todos os sofrimentos que causou, ele foi eficiente nisso.

O problema é que o planeta está ficando exaurido, as condições de vida na Terra estão se deteriorando de forma tão rápida quanto crescem riquezas e população humana.

O homem está redescobrindo o que civilizações pré-capitalistas já sabiam: somos parte da natureza e se a destruímos, destruímos também a nós mesmos.

Não se trata de submeter a natureza, mas de viver em harmonia com ela.

A questão é que essa mudança de mentalidade vai beneficiar as gerações futuras. As gerações de hoje ainda são ricas, na verdade, são mais ricas do que quaisquer gerações anteriores. São também egoístas e imediatistas como jamais a humanidade foi.

Seremos capazes de renunciar ao nosso estilo de vida? Seremos capazes de mudar nossa mentalidade? Seremos capazes de cuidar do mundo para nossos filhos, netos, bisnetos?

A classe média se julga a medida do mundo

A indignação é o sentimento da classe média. Pobres estão muito ocupados em sobreviver, não têm tempo para se indignar. Ricos estão ocupados em corromper e manter o poder, têm tempo, mas encontram formas mais prazerosas de ocupá-lo do que se indignando. Uns e outros sabem como o sistema funciona. Só a classe média, confusa entre a imagem dos ricos, que querem ser, e a sensibilidade ao destino dos pobres, que querem ajudar, encontra tempo e condições para se indignar.

A indignação moralista da classe média é a própria expressão da contradição da sua classe. Uma classe que idealiza um mundo, mas vive em outro. Uma classe que tem folga no orçamento para comprar parte do que os ricos compram. Uma classe que vive em lugares menos deteriorados do que os pobres e sonham viver onde vivem os ricos. Uma classe que estuda, que escolhe profissão, que aprende a criticar e tem pretensões intelectuais. Uma classe que lê jornais, revistas e livros, que seleciona conteúdos na tevê.

A classe média acha que é a medida do mundo. Só ela tem essa pretensão: os ricos sabem que eles fazem o mundo, os pobres sabem que estão à margem do sistema. Só a classe média julga que pode moldar o mundo de acordo com suas ideias. E como o mundo se recusa a ser como ela quer, reage indignada.

Porque se informa e se indigna é que a classe média é presa fácil dos ricos e dos seus veículos de comunicação. Tudo que ela quer é que os de cima, os ricos, os bacanas, lhe deem um bom exemplo. Quando eles a convocam para a luta, a classe média está sempre pronta para transformar o mundo por um ideal.

A classe média acha que sabe das coisas, acha que os pobres são ingênuos e ignorantes, que estão sendo enganados por políticos inescrupulosos. Ela não percebe que ela é que é manipulada pelos ricos e seus veículos de comunicação. Movida por ideais e cruzadas, ela não compreende que os pobres são movidos pela sobrevivência e pelo coração.

Cordialidade e respeito

O que me impressiona cada vez mais neste mundo são as pessoas. O egoísmo, a estupidez, a ignorância, a mesquinharia, a cegueira para a realidade, a incapacidade de discutir ideias sem ofender, o desrespeito.

Em toda parte é isso. A gente chega num pronto socorro – moderno, particular. Constata que a administração está se esforçando para melhorá-lo: somos identificados ao entrar, um funcionário faz triagem e classifica a urgência do caso, mais urgentes são atendidos primeiro, fazemos a ficha por ordem de chegada, o preenchimento da ficha é padronizado, somos encaminhados para o consultório adequado, o médico nos atende por ordem de chegada e urgência, pede exames de rotina, se for o caso de medicação no local, ficamos num leito na enfermaria, os exames também são feitos por ordem de pedido e urgência, assim que ficam prontos são encaminhados para o médico, que faz o diagnóstico e receita. Todos (ou quase todos) nos tratam com simpatia.

No entanto, as pessoas lotam os prontos socorros. É isso que tumultua: gente que não precisa de atendimento de urgência e que não sabe se comportar; as pessoas acorrem ao pronto socorro porque sabem que lá serão atendidas, ainda que demore, mas uma consulta marcada pode demorar dias ou semanas.

Dá para ver pacientes que têm problemas crônicos e abusaram, porque já conhecem o hospital, talvez o médico e recorrem a eles, quando precisam.

Há outros tumultos provocados pelas pessoas: um acompanhante fica no corredor, atrapalhando o movimento e ainda faz cara ruim, se o enfermeiro esbarra nele; outro não dá lugar para um paciente sentar; uma paciente fica conversando e não ouve o médico chamá-la; outra reclama da atendente, mas não tem razão, é que não prestou atenção nas orientações; outro chega com muletas, amparado, alguém cede lugar para ele, ele atende um celular que chama com música sertaneja de mau gosto na maior altura e conversa mais alto ainda, esbarrando o cotovelo na criança que está do seu lado...

E por aí vai. As pessoas estão muito mal educadas, muito desrespeitosas, só veem seu umbigo. Raras são como uma velhinha que mudou de lugar para que eu sentasse do lado da minha filha.
É óbvio que o sistema de saúde precisa ser reformado, é claro que um bom pronto socorro tem que ser público e acessível a todos, sem necessidade de plano de saúde; precisa ser organizado e funcionar bem e rápido; precisa ter médicos, enfermeiros e funcionários suficientes para atender a demanda. Mas as pessoas também precisam mudar, melhorar.

A saúde privada, que dá lucro, é parte do sistema capitalista; essas pessoas egoístas e desrespeitosas também são parte do sistema, foram formadas por ele, funcionam de acordo com sua lógica individualista e competitiva. É preciso formar – e isso vem da infância – seres humanos melhores: cordiais, cooperativos, respeitosos.

segunda-feira, 27 de setembro de 2010

O jornalismo sensacionalista e leviano da velha mídia

Notícia sobre chuva no Mato Grosso do Sul. É impressionante como a velha mídia é repetitiva, superficial e sensacionalista. O que eu me pergunto é para que são as notícias.

Uma notícia assim é: 1) informação; 2) informação é relato, descrição – sendo tevê, imagens – e prestação de serviço; 3) é preciso entender a notícia: por que acontecem as inundações? O clima mudou? Se mudou, por quê? Pela natureza ou pela ação do homem?

De qualquer forma, se acontecem catástrofes, há indícios de que a ação humana é responsável por: 1) construir em áreas de risco; 2) assorear rios; 3) desmatar; 4) hipermeabilizar o solo.

Há providências que devem ser tomadas para socorro (defesa civil treinada e equipada) e prevenção: o jornalismo deve ir às causas dos acontecimentos e ter como objetivo o bem comum, precisa mostrar o que tem de ser feito, investigar e denunciar por que não é feito, quem é responsável. Se o objetivo é aumentar audiência para vender mais ou fazer oposição política, a informação é distorcida.

Enfim, jornalismo pode ser muito melhor do que faz a tevê. Por que ela faz assim? Não é falta de experiência nem de competência profissional. É linha editorial superficial e sensacionalista, irresponsável e leviana.

A direita, o golpe e a oposição pós-Lula

Na reta final da eleição presidencial que pode tornar a candidata do PT, Dilma Rousseff, a mulher mais poderosa do mundo, é hora de se começar a discutir o significado não do governo, mas da oposição que se forma no Brasil. O editorial do Estadão lembra as vésperas do golpe de 1964 e o golpe que derrubou o presidente da Venezuela Hugo Chávez, por algumas horas, em 2002.

A história ensina que não se deve menosprezar a direita golpista. Sem ter líderes de massa e muito menos massas populares (exceto, em parte, no fascismo e no nazismo), ela mobiliza camadas médias da sociedade. Seu discurso é a indignação moralista, seu instrumento são os veículos de comunicação cujo controle detém.

O presidente João Goulart foi deposto em 64 por um golpe militar com participação de políticos civis, entre eles o governador mineiro Magalhãe Pinto. O pré-golpe foi marcado por campanha na imprensa e mobilizações da classe média pela igreja. O golpe contra Chávez foi desferido por um batalhão palaciano apoiado por intensa campanha de emissoras de televisão, rádio e jornais de direita.

O que exaspera a direita é seu afastamento do poder. Não nos enganemos: o governo Lula não foi ruim para os capitalistas. Banqueiros enriqueceram ainda mais, a economia cresceu gerando lucros paras as empresas. A diferença em relação a governos anteriores é que Lula fez também pelos pobres, distribuiu renda. Diferença maior é que afastou do poder as velhas hierarquias acostumadas a aparelhar o Estado, por isso elas gritam. Essa gente se alimenta do poder, fora dele definha e morre; eles estão lutando contra a morte.

A eleição de Dilma Rousseff significa que essa gente continuará fora do poder por mais quatro anos. Na próxima eleição, talvez esteja tão fraca que não consiga sequer lançar candidato, por isso luta com todas as forças moribundas, hoje.

Articula-se também uma nova oposição, mais moderada, que convive com a direita do petismo e até surfa no lulismo. Uma oposição mais civilizada, que não compartilha os interesses da mídia golpista ou até compete com ela.

O clima que a direita tenta criar para o golpe é uma farsa: sem militares, sem crise econômica, sem massa de manobra – a classe média fascistóide é pequena e incapaz de influenciar os mais pobres.

O poder de fogo da velha mídia, porém, ainda é considerável, o poder de repetir mentiras até se tornarem verdades.

Hoje, as condições objetivas lhes são desfavoráveis, para que não mudem, Dilma terá de manter a economia funcionando bem e crescendo. É certo que verá a campanha difamatória crescer, quanto mais bem-sucedida for.

À esquerda, espera-se que cresça uma oposição ambientalista, liderada por Marina Silva. Os problemas ambientais são cada vez maiores e a economia não pode mais andar separada da conservação e da recuperação ambiental.

O mais importante para o país será prosseguir na construção de uma ordem democrática que suporte governos populares e resista a novas tentativas de golpe como o de 64.

Eu viajei de trem

E vi os absurdos do transporte ferroviário no Brasil

Seria um escândalo, se esta palavra não estivesse tão desgastada. Viajar de trem no Brasil é constatar uma sucessão de absurdos. A viagem é deliciosa, barata, segura. Não tem engarrafamento, chega-se direto no centro da cidade. Tinha tudo para ser ótima, no entanto...

Para começar, por que a estação ferroviária não tem trens saindo para todo lado, como na rodoviária e nos aeroportos? Não, Belo Horizonte tem um único trem diário, que sai para Cariacica (deveria ser Vitória, já que a própria estrada se chama Vitória a Minas), às 7h30.

A volta é outro absurdo: o trem chega com atraso de 50 minutos!

No caminho, estações desativadas. Descemos numa estação no meio do nada; a EFVM fechou a estação na cidade e abriu outra perto do rodovia.

Obviamente não fez isso para beneficiar os passageiros. Estes, às dezenas, têm de se valer de táxi, ou seja, o dinheiro economizado no trem é gasto no táxi; o ônibus que vai da cidade à estação não espera o trem chegar para levar quem desembarca.

A estação é acanhada, sem plataforma, o embarque e o desembarque são feitos na própria linha, funcionários põem escadinhas para que possamos subir e descer. E mais: não vende passagens! Quem não compra na cidade, no horário determinado, tem que comprar dentro do trem, se tiver. E a passagem só é vendida em um vagão.

A (não) Vale (nada) faz questão de demonstrar que não tem o menor interesse na linha e que não tem a menor consideração pelos passageiros. Só mantém o trem porque foi obrigada, na privatização.

A linha deve dar lucro, é só calcular: 11 vagões levando mais de 74 passageiros cada um, são mais de 800 pessoas em cada viagem, fora os que descem e sobem no caminho. A viagem final custa R$ 75 na classe executiva, R$ 50, na classe econômica. São três vagões na executiva (222 x R$ 75 = R$ 16.650) e oito na economica (592 x R$ 50 = R$ 29.600), perfazendo R$ 46.250.
Nada comparado, porém, com o que a multinacional ganha fazendo crateras no solo mineiro e exportando minério pagando impostos mínimos.

Se a empresa não é de transporte de passageiros nem se interessa por isso, por que então está no ramo? Coisa do governo FHC.

O trem está caindo aos pedaços, dá a impressão de que poltronas não recebem manutenção há décadas.

Para completar, quando se chega a BH, não há táxis no ponto da estação, muito menos linha de ônibus.

Enfim, é tudo feito para que o brasileiro não queira viajar de trem. No entanto, as pessoas, principalmente as mais pobres, teimam em usar esse transporte, gostam dele e, o que não se deve desconsiderar, economizam usando-o.

E o Brasil, que é um país continental, que construiu as primeiras ferrovias no reinado de Pedro II, desativou quase todas, os governos neoliberais sucatearam e privatizaram as linhas que restavam, e elas ficaram apenas para transporte de carga.

Mesmo agora, quando o governo Lula constrói e inaugura ferrovias como a Norte-Sul, a ênfase é dada no "escoamento da produção".

Para o capital e seus governos, gente não tem importância.

O jornalismo oficial na ex-grande imprensa e a realidade na web

Desde que eu era estudante de jornalismo, jornalistas pregam que a cobertura da chamada grande imprensa precisa trocar os palácios pelas ruas, os discursos oficiais pela retratação da realidade social. Num livrinho do fim dos anos 70, "O que é jornalismo", Clóvis Rossi, então um jornalista progressista, mostra como esse vício da cobertura oficial deforma o jornalismo. Essa mudança está acontecendo aqui, na web, com a produção de conteúdos por organizações sociais e pessoas comuns. Enquanto isso, a ex-grande imprensa continua repetindo o discurso oficial, seja para apoiá-lo, como a imprensa mineira ao governo Aécio Anastasia, seja para combatê-lo, como Globo, Folha, Veja & cia. ao governo Lula.

quinta-feira, 23 de setembro de 2010

Lula e a educação

Os números estão no Blog do Planalto e são impressionantes. O Brasil tem hoje 284 escolas técnicas em funcionamento, das quais 141 – praticamente a metade – foram inauguradas no governo Lula. Até o final deste ano, o governo promete entregar mais 99, o que elevará o total a 383, das quais 240 – ou seja, 60% delas – feitas pelo presidente atual. Além disso, mais 50 estarão prontas em 2011.

Antes de Lula, o presidente que inaugurou mais escolas técnicas foi Nilo Peçanha, também o primeiro; ele entregou 21, em 1909 e 1910. Nos governos seguintes foram pingando escolas técnicas país afora. Itamar Franco se destaca: inaugurou 27. Getúlio, Dutra, Sarney e FHC inauguraram mais de 10 cada um. Nenhum deles se compara nem de longe, nem de muito longe, ao presidente operário, semianalfabeto.

Precisaria de mais informações para compreender melhor esse fenômeno das escolas técnicas no governo Lula. Serão escolas como o Cefet-MG? Ou escolas do tipo Senai? Como funcionam? São independentes ou ligadas ao Sistema da Confederação Nacional da Indústria? Qual a qualidade das suas instalações e dos seus professores? A exposição do governo relaciona 29 escolas técnicas ligadas a universidades federais, criadas por todos os governos, três delas seriam na UFMG; no entanto, pelo que eu sei, na UFMG só existe o Coltec. A exposição, infelizmente, não lista as escolas por nome, só por localização.

De qualquer forma, é um fenômeno. Como o governo Lula não é um governo picareta, que faz obras no atacado para beneficiar empreiteiras, superafaturar orçamentos e distribuir comissões para políticos corruptos, como é comum no Brasil e de praxe em Minas, imagino que seja realmente uma revolução no ensino técnico brasileiro, cujos resultados veremos nos próximos anos.

Imagino também a origem desse fenômeno: Lula estudou numa escola do Senai e não se cansa de citar o fato, com gratidão. Foi a oportunidade que mudou sua vida, dali saiu torneiro mecânico, foi trabalhar em fábrica, acabou no sindicato, onde começou a carreira política que o levou à Presiência da República. Lula quer dar à juventude brasileira a mesma oportunidade que ele teve.

É assim que Lula vê a educação, como uma boa escola técnica que oferece ao adolescente uma profissão, uma qualificação para o mercado de trabalho, uma vida segura. É uma visão capitalista avançada, como tudo no governo Lula: seu impacto é porque os capitalistas brasileiros são incapazes de fazer o que é melhor para o capitalismo, foi preciso um operário presidente para mostrar a eles. Lula é o melhor presidente capitalista que o Brasil já teve.

O governo Lula é o melhor governo na educação, mas seu foco está errado. A prioridade no Brasil é a educação fundamental. O capitalismo precisa de técnicos, mas os brasileiros precisam de escolas públicas de qualidade em tempo integral, ocupando espaços privilegiados nas cidades, com os melhores (e bem pagos) educadores, os melhores equipamentos, alimentação, médico, esportes, artes, ofícios.

Da mesma forma que temos de cuidar do ambiente para que nossos filhos e netos ainda tenham água, ar, árvores, natureza, precisamos preparar as gerações do futuro para que cuidem do mundo como nós e as gerações anteriores não cuidamos. E olha que a educação que tivemos era melhor do que a educação que a escola pública atual dá às crianças. Nós tínhamos família estruturada, casa, irmãos, colegas para brincar, vizinhança; a família cada vez mais comum hoje não tem pai, tem só um filho ou dois, mora em apartamento, a mãe trabalha fora, a criança é educada pela tevê, pela internet, pela babá, pela avó, se alimenta mal, não sai na rua...

Não vale o argumento de que o ensino fundamental é responsabilidade dos municípios. Como o próprio Lula diz, quando ele quis fazer alguma coisa convocou estados e municípios e fez. Falta um plano nacional de educação pública de qualidade para os próximos vinte anos, começando pelo ensino fundamental, por uma nova escola adequada aos novos tempos. Dilma também não pensa nisso. Só Marina tem visão de longo prazo e global.

domingo, 19 de setembro de 2010

O socialismo e a autodestruição humana

Seria temerário extinguir o capitalismo. Nada, porém, é mais urgente. O capitalismo é o sistema no qual a humanidade vive há séculos, no qual criamos todas as maravilhas que fazem parte da nossa vida hoje. No entanto, é ele que coloca em risco nossa vida neste planeta, o futuro dos nossos filhos e netos, a rica natureza que se criou na Terra durante bilhões de anos.

Extinguir o capitalismo não é um projeto político que se possa implantar. Marx e os socialistas, homens do século XIX, pensaram no fim do capitalismo como uma espécie de evolução natural da história. O capitalismo seria uma etapa, que evoluiu do feudalismo e que também seria substituída pelo socialismo. A ideia de luta de classes é essencial nessa teoria: os capitalistas lideraram a destruição do feudalismo e a criação do mundo contemporâneo, os trabalhadores liderariam a destruição do capitalismo e a construção da sociedade do futuro.

A história é conflito, pensavam Marx e os marxistas. Novas classes revolucionárias entram em conflito com classes dominantes antigas e as derrubam do poder, para realizar seus próprios interesses e ideias. Os interesses e as ideias do proletariado industrial são socialistas: igualdade social, democracia, liberdade, tudo aquilo que a burguesia prometeu e não foi capaz de realizar, nas suas revoluções. As promessas burguesas são incompatíveis com a sociedade de classes e só os trabalhadores podem implantá-las, ao criar sua própria ordem, a ordem socialista.

O fato é que essa evolução não aconteceu. Apesar das inúmeras revoluções do século XX, no século XXI ainda vivemos no sistema capitalista. E ele ameaça a sobrevivência da humanidade.

Essa constatação costuma ter duas contestações: a primeira é que o socialismo não deu certo, a segunda é que o capitalismo do século XXI é diferente do capitalismo do século XIX. São duas argumentações reacionárias que não condizem com os fatos e servem apenas para justificar a persistência nesse rumo de catástrofe no qual nos encontramos.

Não se pode dizer que o socialismo não deu certo porque ele nunca existiu. Qualquer pessoa minimamente informada sabe que a Revolução Russa estava longe de ser o que Marx propunha como revolução. A revolução socialista viria dos países mais desenvolvidos, como a Inglaterra. Esses países é que teriam grandes contingentes de proletários industriais capazes de fazer a revolução. O que aconteceu na Rússia foi uma revolução num país agrário, pré-capitalista; sua classe operária era pequena, sua indústria era fraca. O partido comunista organizado por Lênin era a força política mais lúcida e mais capaz; colocou-se à frente da revolução e liderou as massas revoltosas.

Daí a construir uma sociedade socialista ia uma grande distância, que não foi percorrida. Certamente, a morte de Lênin, um gênio político, e a ascensão de Stalin, um medíocre ditador, colaborou para isso. De qualquer forma, a tarefa de organizar uma sociedade socialista num país atrasado, sem passar pelo capitalismo, era um projeto que não foi previsto por Marx e nem mesmo por Lênin, até a última hora. O único pensador marxista que cogitou disso foi Leon Trotski, que dividiu com Lênin o comando da revolução, mas, como se sabe, Trotski foi derrotado, preso, exilado e morto por Stalin.

Não se pode, portanto, pôr na conta do "socialismo científico", que era como Marx chamava às suas ideias, em contraposição ao "socialismo utópico", o fracasso da revolução. Seria possível dizer isso caso o socialismo fosse implantado na Inglaterra, se espalhasse pela Europa, chegasse aos Estados Unidos e por fim aos países mais atrasados, como um novo sistema econômico, social e político que se dissemina, como aconteceu com o capitalismo. Se depois disso tudo saísse errado, aí sim se poderia dizer que a humanidade é incompatível com o reino da igualdade, da fraternidade e da liberdade.

De qualquer forma, a revolução socialista não aconteceu nos países capitalistas mais desenvolvidos. Pode-se alegar que a classe operária foi traída por suas lideranças, que os capitalistas recorreram às guerras e ao totalitarismo para derrotar a revolução, que os trabalhadores optaram pelo reformismo, conciliando capitalismo e conquistas sociais, e que estas foram possíveis nos países mais avançados à custa do aumento da exploração e da opressão nos países periféricos. Tudo isso é verdade. É verdade até mesmo que foi a Rússia "socialista" que derrotou o nazismo e impediu que o totalitarismo dominasse a Europa. O fato, porém, é o capitalismo sobreviveu e continua sendo o sistema no qual vivemos.

O capitalismo do século XXI é diferente do capitalismo do século XIX? Os avanços tecnológicos dão essa impressão, a disseminação da democracia representativa liberal também. A questão é saber se mudaram suas características essenciais: a propriedade privada dos meios de produção concentrada nas mãos de uns poucos, a exploração do trabalho assalariado, a dominação de classe, ainda que sob a roupagem de governos eleitos. Está claro que nada disso mudou. Hoje, a dominação burguesa se dá de forma sofisticada, por meio de mecanismos ideológicos que vendem chances de ascensão social e mil maravilhas de consumo para todos. No entanto, a desigualdade social e as violências cotidianas contra os pobres nunca foram tão grandes.

O que há de novo no capitalismo é que ele desenvolveu de tal forma as forças produtivas que estão levando a humanidade à catástrofe. Há uma evidente contradição entre a quantidade de riquezas que o sistema produz e a sua distribuição. Há uma evidente contradição entre o que o ser humano é capaz de fazer hoje e a incapacidade de decidir o que é melhor para todos e para o futuro. O desenvolvimento econômico descontrolado do capitalismo é responsável pelas catástrofes climáticas atuais e pelas ameaças que pairam sobre as próximas gerações.

A caracterização dessa ideia como "catastrofismo", o argumento de que isso não vai acontecer, que a humanidade (o capitalismo) saberá resolver mais este problema, faz parte da ideologia capitalista contemporânea, cuja essência sempre foi a dominação e a exploração das massas por meia dúzia de proprietários. A única verdade que existe nela é luta dos capitalistas para não perderem seus privilégios. Eles preferem morrer a ver o capitalismo acabar. Afinal, para eles – e só para eles – as duas coisas são uma só.

O dilema da humanidade consiste, portanto, nessa tragédia: os capitalistas nos conduzem para a autodestruição e os trabalhadores não foram capazes de criar o socialismo. Parodiando o Chapolin Colorado, quem poderá nos salvar?

O fato é que precisamos criar uma nova sociedade capaz de conciliar riqueza econômica, qualidade de vida, conservação do ambiente, igualdade, liberdade, fraternidade. A desigualdade social é uma opressão que não tem mais razão de existir, a conciliação entre produção de riquezas e conservação (e recuperação) da natureza é questão de sobrevivência para as próximas gerações. O que as gerações atuais estão fazendo é consumir tudo que existe para consumir e deixar lixo para nossos descendentes. É um comportamento moralmente condenável e naturalmente suicida.

quinta-feira, 16 de setembro de 2010

'Seus olhos embotados de cimento e lágrima'

Marreta, o sindicato dos peões, faz campanha com carro de som na zona sul. Convida os trabalhadores da construção civil para uma "grande assembleia". "Traga suas reivindicações para fazer parte da nossa pauta salarial. A construção civil nunca esteve tão aquecida, faltam operários para trabalhar", diz a gravação. Só na minha rua tem dois espigões sendo erguidos, com mais de dez andares cada um. Num fim de tarde contei vinte operários saindo de uma obra. Eles formam um exército uniformizado, enquanto estão batendo laje, cada vez mais alto. Às 17h somem. Depois reaparecem, um a um, à paisana; atravessam o portão da obra e se misturam às pessoas na rua. Às 7h do dia seguinte estão de volta. A gente sabe pela pontualidade do barulho das máquinas. É só olhar e ver aquele pequeno exército de formigas uniformizadas andando pra cá e pra lá no canteiro de obras. Trabalham muito, merecem ganhar bem.

terça-feira, 14 de setembro de 2010

Sobre teses, reportagens e textos longos

Minha passagem pela Veja foi rápida, mas marcante. Menos pela revista do que pela posição que ocupei e pelo trabalho que fiz. Como chefe da sucursal, distanciado da rotina da revista, ocupado em produzir uma revista local, a Veja Minas Gerais, que chamávamos de Vejinha, eu coordenei uma grande equipe de repórteres e fotógrafos frilas que durante alguns meses tocaram freneticamente dezenas de pautas, entrevistando, fotografando, viajando, escrevendo. Tinha gente nova e talentosa, como a Cláudia e o André, e gente experiente de primeira linha, como o Zé, a Roselena e o Eugênio. Da minha parte, me exercitei pensando boas pautas – uma das minhas atividades prediletas no jornalismo, que consiste em estar permanentemente atento à realidade e perceber novidades que podem gerar matérias interessantes – e costurando textos às vezes escritos por vários repórteres, em vários momentos diferentes.

Aquela experiência na Veja me deu a dimensão do poder fantástico de uma redação. Eu tinha poder (ilusório, como veria depois) para contratar os melhores profissionais da cidade para produzir as matérias que eu queria e exercitei isso apaixonadamente, diariamente, exceto aos sábados e domingos. Chegava à revista às dez da manhã e raramente saía antes da meia-noite. Mas valia a pena, pois me dedicava ao que queria, orientava repórteres, falava ao telefone, conhecia pessoas (um interlocutor frequente foi Gerson Sabino, irmão do escritor Fernando, grande conhecedor de todos os esportes, viajante incansável pelo mundo afora, dono de memória prodigiosa e excelente prosa), conversava, lia, escrevia. A única coisa que eu não fazia era dar satisfações a São Paulo.

Durante algumas semanas isso funcionou bem, depois começaram as visitas de chefetes da sede, em seguida a derrubada de matérias e a imposição de pautas. Quando fui demitido, por telefone, numa segunda-feira, eu já sabia que as coisas iam mal. Na semana anterior, o subchefão, mal educado e truculento, tinha me tirado da minha rotina usual, combinada pessoalmente entre nós dois, quando fui contratado para o cargo e ele fora só doçura e simpatia; me mandou pegar estrada para fazer uma matéria em Ipatinga para a Vejona.

Se cometi um erro na Veja foi não ter enfrentado o subchefão, não ter bancado até o fim o trabalho feito pelos frilas que contratei para a referida matéria. Arrependo-me de não lhe ter dito "não", de não ter dito que eu não fora contratado para fazer aquilo, que não tinha o menor interesse em trabalhar na Vejona e que se a proposta anterior não valia mais, ele devia me demitir. Teria saído de cabeça erguida, o que não aconteceu na semana seguinte. Saí da Veja querido pelos colegas com quem trabalhei, orgulhoso do que conseguimos fazer e enriquecido pelo que aprendi naquelas 14 semanas de trabalho intenso.

O que aprendi na Veja foi escrever textos longos. O exercício fascinante da pauta (ainda hoje fico pensando em como as publicações podem ser melhores, se tiverem pautas inteligentes e criativas) foi na verdade um aprimoramento do que eu aprendera e praticara no JB durante mais de cinco anos e sonhava fazer num jornal local. Foi por isso que recusei convite para ir trabalhar na Veja em São Paulo, mas aceitei ser chefe da sucursal de Belo Horizonte e impulsionar a Vejinha. Por isso também, mais tarde, aceitaria ser editor de Cidades de um novo jornal que se formava aqui, O Tempo. Esse desejo de fazer jornalismo local de qualidade, de aproveitar em benefício da cidade o que eu aprendera no JB, era a minha motivação para a profissão nos anos 90. A qualidade do jornalismo começa na pauta e continua na apuração de informações por bons repórteres. Isso eu já sabia – na Veja aprendi a costurar reportagens.

Aprendi também, dolorosamente, que aquela proposta feita com doçura pelo já falecido subchefão, em São Paulo, e a independência que eu exercitava eram uma fantasia. Entre o que eu considerava boas pautas e o que a Vejinha pretendia fazer havia uma grande distância. Minha opção foi por me encastelar e fazer o que eu queria, até (praticamente) o fim. Como disse, eu não dava satisfações à sede, passava o tempo envolvido com minha equipe, fontes, fotos e textos. Sem me preocupar com a exposição do meu nome, que nunca apareceu no expediente da Vejinha (só aparecia na Vejona), eu costurava os textos dos repórteres e pensava pautas continuamente, aproveitando cada acontecimento. Uma vez fui visitado por uma moça linda, das mais bonitas que conheci na minha vida, que divulgava uma festa. Para prolongar aquela companhia agradabilíssima aos meus olhos e ouvidos carentes, estendi a conversa, transformei-a numa entrevista.

Aquele foi meu melhor momento na Veja, combinou um dos meus maiores prazeres, a companhia de mulheres bonitas, com o conhecimento de um fenômeno que começava em Belo Horizonte, o das festas shows com artistas famosos em lugares inesperados, como sítios, e que atraíam multidões de jovens. Dele nasceu uma pauta rara, que bateu plenamente com a pauta de São Paulo: o que era matéria para mim, pois revelava realidades inexploradas da cidade, servia também à revista, pois falava de gente da elite e possibilitava belas fotos, essência da Vejinha. Pauta que precisou ser produzida (uma equipe compareceu a uma festa, num sábado à noite, num sítio na Pampulha, cuja estrela foi a cantora Fernanda Abreu), mas se confirmou plenamente.

Se eu ficasse só nesse tipo de pauta (matérias de comportamento, novidade na época, são os tiros mais certos no jornalismo de revista), provavelmente teria dado certo, mas eu queria fazer jornalismo de verdade, sem restrições. Tinha a experiência no JB, o faro para boas matérias, desenvolvido também naquela memorável redação, tinha bons profissionais, recursos sem limites e uma cidade carente de jornalismo de qualidade. Eu não punha limites ao meu trabalho e ignorava os sinais de São Paulo. Sinais fortes como um manual de redação informal, que já circulava entre os frilas, quando cheguei, e que eu li, mas não copiei, coisa de que me arrependo. Esse manual orientava os repórteres, didaticamente e com exemplos, sobre textos e imagens que cabiam na revista. Não cabiam, por exemplo, gente pobre nem gente feia. "Não é o nosso público", explicava o manual.

Por conta dessa experiência (muitos frilas estavam lá há muito tempo, tinha passado por três ou quatro chefes da sucursal), repórteres costumavam argumentar que minha pauta ia cair, mas eu mantinha minha autoconfiança. Meu sucesso inicial criou ambiente de entusiasmo na redação, durante algum tempo. Eu era um bom chefe: ouvia, dava apoio e condições de trabalho, orientava, elogiava, cobrava, corrigia e melhorava o trabalho de cada um. Formamos uma boa equipe. O único problema é que eu fazia uma revista e a Veja queria outra. Enquanto chefes me davam sinais cifrados (nunca fui bom em sinais cifrados, que parecem fazer parte do jogo do poder, sempre me guiei pelo que os chefes diziam explicitamente, sem usar outros expedientes; uma vez ignorei a "sugestão" do subchefão de "aproveitar" o filho de um deputado que não era jornalista para fazer sei lá o quê: "aqui fazemos jornalismo, o cara não entende nada do assunto", pensei, e esqueci a insinuação), eu trabalhava, seguindo o estilo que aprendera com o mestre Zé de Castro.

E o trabalho que mais me consumia, e cada vez mais, era costurar os textos dos repórteres. Foi o que aprendi na Veja. No jornalismo diário, aquilo praticamente não existia: cada repórter escrevia sua matéria, em geral curta, e o editor publicava ou não, no máximo cortava ou pedia para acrescentar ou esclarecer alguma informação. Na revista, estilo que Veja inaugurara no Brasil e que a Vejinha usava, o repórter apurava exaustivamente (detalhes das personagens, do ambiente e da situação eram necessários para "reconstituir" a história que se contava) e escrevia relatórios. Cabia ao redator ou editor dar forma àquilo, costurando as informações e acrescentando o que faltava. Era comum pedir ao repórter para "completar" a matéria – uma, duas, três vezes. Cada nova apuração praticamente gerava uma nova matéria.

Esse costume provocava terror nos frilas, pois podia acontecer a qualquer hora, inclusive de noite, e o repórter tinha de voltar à fonte; matérias que não precisavam ser "completadas" – como a única que eu fiz, antes de ser contratado como chefe (única vez também em que meu nome apareceu na Vejinha) – eram raríssimas, indicavam que o repórter era muito bom e provocavam profundo alívio. Também para o redator esse trabalho é terrível, pois parece não ter fim (sempre tem um chefe acima que questiona e pede mais) e gera uma quantidade tal de informações, que é muito fácil o produto final conter erros. Ou criar uma peça de ficção, que o repórter, autor original da informação, não reconhece, mas cujas consequência, em caso de erros, sofre, uma vez que é o seu nome que aparece assinando a matéria. Quando entrei na Veja, já conhecia uma piada corrente, que diz que o repórter da revista aprende a identificar, no texto final, as vírgulas que ele escreveu.

Na prática, a pauta da Veja é um conjunto de "teses", formuladas pelos editores na reunião de pauta, teses brilhantes, mas distantes da realidade. Se confirmadas, formam uma bela edição, repleta de conteúdos interessantes. No entanto, entre a pauta e o texto final tem a apuração, e o repórter normalmente não encontra a realidade indicada. A realidade sempre é diferente da pauta. Sempre é melhor também, na minha opinião, porque é a realidade, e jornalismo é mostrar a realidade. O bom repórter sempre melhora a pauta, sempre descobre novidades imprevistas, sempre surpreende o editor.

Acontece que Veja é feita por editores, não por repórteres. Além disso, não está preocupada em mostrar a realidade, mas apenas parte dela, para uma parte do público. Essa lógica cria uma prática que pode ser resumida assim: os editores inventam matérias sensacionais e o repórter sai a campo para colher informações que confirmem e deem veracidade à ideia original. Esta pode ser ligeiramente adaptada, mas é fundamental que se confirme. Obviamente, não se trata de jornalismo, mas de ficção. Com essa fórmula se escreve qualquer matéria, bastando a definição inicial, como naquela famosa piada de redação: Editor: "Escreva um editorial sobre Jesus Cristo". Redator: "A favor ou contra?"

No caso das Vejinhas (em cada grande capital tinha uma), havia um aborrecimento adicional: toda boa matéria feita por uma sucursal devia ser repetida pelas demais, adaptada às condições locais, isto é, com novas personagens, histórias e fotografias, sem contestar a pauta. Era um tipo de jornalismo em escala industrial. Essa prática gerava matérias ridículas e revistas artificiais, que nunca "pegaram" – a Veja Minas Gerais não demorou a ser extinta, assim como outras, restando hoje apenas as edições locais de São Paulo e Rio, se não me engano, exatamente as cidades que menos precisavam de jornalismo independente.

Analisando a Vejinha, hoje, penso que realmente não podia dar certo. Ela vinha encartada na Veja, como uma espécie de suplemento estadual. Tinha em torno de 32 páginas, mas somente as primeiras, umas 12, continham matérias. Para ser exato, três matérias, seguindo uma fórmula padrão: uma matéria de uma página, uma matéria de duas páginas e a matéria de capa, com quatro a seis páginas. O resto da revista era ocupada com programação cultural em Belo Horizonte e nas maiores cidades do interior, praticamente uma revista à parte, com pessoal e logística próprios. Na última página, o expediente só incluía pessoal de São Paulo, do editor executivo aos diagramadores, nenhum nome belo-horizontino, nem o meu.

Estes detalhes demonstravam como a Veja Minas Gerais era um produto paulista. Quando aceitei o convite e mergulhei no trabalho, eu me fiei em palavras e ignorei a realidade. Se desviasse meu olhar do meu desejo de fazer bom jornalismo em Belo Horizonte para analisar o que era efetivamente a Vejinha e como funcionava, se me desse o trabalho, mais maduro e menos idealista, de observar em torno, ler as edições antigas e "trucar" São Paulo, certamente minha experiência teria sido diferente, provavelmente mais breve ainda. Feita em BH, a revista era toda decidida em Sampa, sem qualquer autonomia, sequer a da pauta. No entanto, ninguém melhor para saber o que interessa aos belo-horizontinos do que repórteres da cidade.

A camisa-de-força do modelo da Vejinha a tornava artificial, incapaz de "pegar" em Belo Horizonte, exceto como indicador de programação – mas isso também não é jornalismo. Por isso, quando folheio hoje aquelas revistas, identifico apenas meia dúzia de boas reportagens, em todo o período, em geral materinhas leves. E não foi por falta de pauta, um calhamaço semanal, do qual São Paulo aprovava quase nada. Mesmo as melhores são textos desfigurados e contêm erros grosseiros como o nome do repórter ou do entrevistado. Bem poucas são as matérias, como a das festas, que ficaram no tom certo, que saíram com informações corretas e que dão prazer de ler. Uma destas me é especialmente cara: o emocionante reencontro que promovemos entre o craque Toninho Cerezo e o treinador que o lançou, Telê Santana, no sítio deste, em Lagoa Santa.

Bodes expiatórios favoritos da imprensa para a eliminação do Brasil na Copa do Mundo de 1982, estes dois símbolos da história do Atlético viviam, nove anos depois, o que parecia ser o auge do sucesso, como campeões nacionais, Telê dirigindo o São Paulo, Cerezo jogando pelo Sampdoria, da Itália. Na verdade, eles iriam, juntos, ainda mais longe, ao conquistar o título de campeões do mundo pelo São Paulo. Título da matéria: "Volta por cima". Parece incrível, mas nenhum jornal local teve a ideia dessa pauta óbvia, que rendeu uma reportagem histórica. Pensada para capa e apurada com prazer pelo experiente Manuel Muñiz, em ritmo de bate-papo, a matéria acabou saindo com inusitadas três páginas, na mesma edição que publicou reportagem do Zé de Castro sobre as barragens da Cemig e um box, feito por mim e não assinado por SP, sobre sua fantasia de comprar o Estado de Minas. Foi nossa melhor revista.

O exercício de costurar textos e escrever uma grande reportagem é, porém, uma experiência extraordinária, quando o conteúdo é bom e não se tem a função de distorcê-lo. Fiz isso semana após semana em inúmeras matérias, algumas vezes com sucesso, como na matéria das festas e em outra, sobre as barragens da Cemig construídas pelo ex-governador Newton Cardoso. O aprendizado me serviu para o resto da minha vida profissional e é o que agradeço à Veja, da qual, apesar dos pesares guardo boas lembranças. Não tenho do que me queixar, apenas lamento que a editora Abril, com a estrutura e a experiência que tem, não se dedique a produzir bom jornalismo. É realmente uma coisa frustrante e mais um exemplo de como o capitalismo, com seus interesses mesquinhos, tolhe o progresso da humanidade. A qualidade da imprensa burguesa está muito aquém do que o avanço dos meios de produção possibilita.

Todas essas lembranças foram provocadas pela leitura de uma dissertação de mestrado cujos mecanismos implícitos eu percebi e que se assemelham ao jornalismo da Veja. Também o mestrando tece um texto, costura informações, preenche vazios com informações pescadas aqui e ali, ad hoc, para confirmar sua hipótese de trabalho.

No fim das contas, tudo é ficção, um bom redator pode transformar em texto verossímel informações desconexas e contraditórias. O que vale nesse trabalho, na verdade, é a integridade pessoal, é saber até onde podemos ir para contar nossa história, até onde falsificamos a realidade, até onde a retratamos honestamente, ainda que limitados por nossas incapacidades e idiossincrasias. Para isso, é preciso ter humildade e sabedoria e reconhecer que a realidade é sempre melhor do que as nossas ideias.

segunda-feira, 13 de setembro de 2010

Uma razão para levantar da cama

Tem dia que eu acordo como cachorro que caiu do caminhão de mudança. Onde estou? O que vou fazer? A vida não pega no automático, não tenho vontade de levantar da cama, apenas coisas primárias são capazes de me mover: fazer xixi, fome, sede... E pensar. Minha consciência fica mais clara e ampla.

Não é novo, como (quase) tudo na minha vida, começou aos 17 anos. Aos 19 tomei um rumo errado, comecei a fazer coisas que não queria. Cometi um erro atrás do outro, porque não soube escolher meu caminho, não olhei para mim. Só comecei a interromper isso, bruscamente, aos 41 anos. Cometi novos erros, mas comecei a fazer o principal: me conhecer.

A vida é muito simples, a gente tem de ser o que a gente é. Para ser o que se é, a gente tem de se conhecer. São duas ou três coisas essenciais, coisas que nos movem, coisas que fazem parte da nossa personalidade, idiossincrasias. Se a gente identifica como a gente é, o que é importante pra nós, o que nos dá alegria, no que nos tira da cama de manhã cedo, a vida fica muito mais fácil.

A vida não tem nenhum paraíso nos esperando amanhã, não nos reserva nenhuma fortuna inesperada. A vida é um dia depois do outro, mas os dias podem ser bons, se a gente faz o que tem de fazer, o que quer fazer. Os dias se emendam, as semanas se emendas, os anos se emendam, e o simples passar do tempo, que nos envelhece, gera frutos, e liga hoje a ontem, como ligará hoje a amanhã.

E assim a vida passa, assim percorremos o tempo que nos foi dado nesta terra. Nós, que chegamos a este mundo sem saber nada, que nos tornamos gente porque somos recebidos com afeto e cuidado pelos nossos e que mais tarde temos de descobrir nossas razões para levantar da cama de manhã, mergulhamos de novo no mistério.

sábado, 11 de setembro de 2010

Visita a um museu, alienação, conhecimento e educação democrática

Vejo na tevê matéria sobre o Museu do Ouro de Sabará e me pergunto que sentido tem a exposição daqueles objetos. É uma sensação que eu tinha quando era criança e a família ou a escola me levava a tais passeios. É uma sensação que o estudante tem frequentemente diante da matéria estudada. É a sensação, que hipertrofiada, mudou minha vida a partir dos 17 anos. A sensação de estranhamento, de olhar e não ver, de estar alheio ao ambiente, de não ser tocado por ele, de o mundo ao meu redor não ter sentido. Não pretendo ir tão longe agora, mas penso que isso vale para muitas coisas e também que tem soluções simples. A chave é expressar, ser ouvido por quem tem sensibilidade e conhecimento e, assim, superar aquele sentimento, que, guardado, inflama e se torna crônico, a ponto de se tornar a própria identidade pessoal. Foi o que aconteceu comigo – de tanto estranhar o mundo ao meu redor e não compartilhar tal sentimento, me tornei estranho eu mesmo.

Negar um museu é negar as gerações anteriores, que preservaram objetos da sua época e mais antigos, para que nós e as próximas gerações os pudéssemos conhecer. O mundo muda, contemporaneamente muda em velocidade alucinante. Os equipamentos com os quais trabalhei no jornalismo há menos de trinta anos já não são usados. O mais impressionante de tudo é que as tecnologias têm efeitos sobre nós, o que significa que nós também mudamos.

O cuidado de preservar objetos que entram em desuso e se tornam lixo tecnológico é, ao mesmo tempo, uma tentativa de eternizar a vida de quem o toma e um carinho com quem vem depois. Quem criou museu e preservou objetos antigos pensou em nós, que viemos depois, e na humanidade; seu objetivo foi mostrar que o presente evoluiu do passado, materializar informações que serão transmitidas em palavras, livros e, cada vez mais, pelo meio virtual da informática.

É assim, portanto, que o visitante deve encarar o museu pela primeira vez, como um cuidado de quem viveu antes dele com as gerações de hoje. Aqueles objetos expostos foram preservados porque, sem ter mais utilidade, seriam destruídos. Isto aponta um novo significado: a utilidade. O que muda o mundo é a utilidade, uma coisa que não tem mais serventia, uma tecnologia que foi superada por outra é abandonada e se torna lixo – de certa forma, a matéria do museu é o lixo.

A velocidade das mudanças no mundo contemporâneo, portanto, oferece matéria-prima abundante para museus. Será que existe essa preocupação? Será que os museus existentes estão guardando os objetos que se tornam obsoletos todos os dias? Onde existe um aparelho de telefoto, um telex ou mesmo uma lauda de redação de jornal, tão comuns até a década de 1980?

Seja como for, aqueles objetos expostos em museus e que não dizem nada a crianças e adolescentes, a não ser o abismo existente entre eles e os adultos, entre seu interesse e a educação, entre o presente e o passado, precisam ser compreendidos, em primeiro lugar como acervo de tralhas que entraram em desuso e que foram guardados para nos ajudar a conhecer o passado e compreender o presente. Aí entra a questão fundamental da educação: eu só conheço se quiser conhecer.

O conhecimento é ativo, não é passivo. Não se pode depositar conhecimento na inteligência de ninguém, muito menos de uma criança, que ainda está aprendendo a pensar. O que se consegue, eventualmente, é a memorização, mas a memorização é útil para alguns conhecimentos, não para todos. Além disso, o interesse varia de indivíduo para indivíduo, de forma que um assunto pode interessar a um e não interessar a outro. Como é que aqueles objetos expostos no museu podem ter significado, se o visitante não sabe nada do ciclo do ouro, de história do Brasil, de metalurgia e mineração, nem se interessou por isso?

A visita pedagógica a um museu deve ter como objetivo a formulação de perguntas. Como, aliás, em qualquer outra área de conhecimento. O conhecimento começa com perguntas, sem pergunta não há interesse, sem interesse não há conhecimento nem motivo para isso. Nenhum aluno deve ser obrigado a aprender o que não lhe interessa. A educação obrigatória é uma violência contra a criança, os currículos escolares são uma tortura institucionalizada.

O que não significa que não deva ser feita. Quero dizer que, como todo pai sabe, nem tudo se ensina de forma democrática. A relação entre pai e filho, entre educador e criança, muitas vezes é autoritária e precisa ser autoritária, porque são regras que precisam ser aprendidas para o bom funcionamento social e para sua própria formação. A criança não tem maturidade para decidir e impor-lhe esse peso é uma violência ainda maior.

O conhecimento, porém, é outra coisa, precisa ser estimulado, precisa ser prazeroso. O que o educador deve fazer é mostrar o mundo às crianças e adolescentes e motivá-los a fazer perguntas. A partir das perguntas, da busca de respostas, do diálogo, da consulta a livros e da observação de objetos é que eles alcançarão o conhecimento. Note-se: alcançarão o conhecimento. O conhecimento não é dado, não é recebido, passivamente, é apreendido, ativamente. E porque o conhecimento é ativo que a internet é um avanço em relação a outros meios audiovisuais.

Assim é que a visita a um museu deve ser um passeio, sem nenhuma obrigação de conhecimento. Há um conhecimento empírico, que se obtém com a prática, com a experiência, dia após dia, e há o conhecimento teórico. O que a escola fundamental propicia para as crianças é o conhecimento teórico, e faz isso na idade menos propícia para ele. É por isso que o modelo de escola prevalente na sociedade capitalista é tão ineficiente. Ineficiente, do ponto de vista do conhecimento; na verdade, a escola cumpre bem a função de adestrar os jovens para a submissão intelectual e comportamental exigida pela dominação de classe. Que interesse têm os donos do poder e das propriedades em ensinar as crianças a pensar e questionar a ordem que mantém sua riqueza e sua autoridade?

Por isso a disciplina de uma escola é ridícula, e ridícula porque autoritária. Ela continua tratando crianças de dez anos e adolescentes como se fossem bebês, continua impondo aos jovens uma ordem que eles mesmos podem criar.

Como assim? Eu não disse que o autoritarismo é necessário? É verdade, mas o autoritarismo da educação deve vir junto com afeto e compreensão. É o que os salesianos chamam de amorevolezza. O educador precisa ter autoridade e a criança precisa da autoridade do adulto; o educador que abre mão da sua autoridade está abrindo mão da educação, porque a criança precisa desse "pulso forte", que lhe dá segurança e lhe serve de exemplo. Isso, no entanto, vai diminuindo e mudando, à medida que a criança cresce. As regras que valem para os cinco anos são ridículas aos dez: se a criança não aprendeu o que tinha de aprender, tem alguma coisa errada, e foi na educação que recebeu quando era mais jovem.

Se a criança não tem maturidade para carregar o peso das decisões, isto não significa que não deva ser estimulada a isso. A criança aprende o que pratica e copia os exemplos que tem. Se é estimulada a pensar e decidir coletivamente, ela aprenderá a convivência democrática; se o adulto lhe dá tudo pronto e decide por ela, sem que ela tenha que pensar, ela aprende a obedecer e seguir a autoridade que "pensa" por ela.

Este é o conceito de autonomia, que faz parte da educação contemporânea. O educando não é um eterno incapaz nem tampouco deve ser adestrado para que se comporte como a ordem social exige. O objetivo da educação é formar seres humanos autônomos. O que significa isso? Significa que o aprendizado adquirido é o que possibilita às crianças e aos jovens, posteriormente aos adultos, serem capazes de pensar e agir por conta própria, sem necessidade de ordens superiores nem obediência inconteste. É, portanto, o contrário da educação burguesa.

Para formar indivíduos autônomos, a educação precisa ser significativa, isto é, o que se aprende precisa ter significado para quem aprende. Mesmo quando a regra é imposta, deve vir acompanhada de explicação e precisa ser demonstrada com exemplo. Isto quer dizer que o que vale para um vale para todos e, principalmente, que quem ensina pratica o que ensina. O melhor ensino é o exemplo, todos os educadores sabem disso.

Não é fácil, mesmo porque essa educação é feita e experimentada por quem foi educado de forma autoritária. Ela provoca alguma tensão, exige envolvimento e reflexão permanente, exige qualidades pessoais do educador, é mal compreendida por quem está acostumado com o autoritarismo, precisa ser "construída" em problemas que surgem na prática, dia após dia.

Não são, porém, essas dificuldades que impedem que ela seja praticada de forma predominante. Os resultados da educação para autonomia são muito compensadores, quem a emprega não volta à educação tradicional. Se ela não é praticada amplamente é porque a autonomia é adequada a uma sociedade democrática e igualitária, não a uma sociedade cuja existência depende da desigualdade e do autoritarismo.

quarta-feira, 8 de setembro de 2010

A mulher-macaca e o homem inútil

Tenho quatro filhas, a mais velha completa 27 anos hoje, a caçula tem seis, mas só agora entendi o que é ser pai. Entendi não olhando para mim, mas para outra pessoa; entendi não pensando no homem, mas na mulher; entendi lendo um artigo, mas não por causa do artigo e sim porque pensei na autora. Enfim, entendi o que é ser pai por acaso, no meio de uma leitura, com um pensamento vagabundo, que voou para fora do assunto comparando-me com as mães contemporâneas. De um só lance compreendi também o descaso da minha primogênita comigo, que me aflige.

Não sou o único pai que sofre por isso, sei de outro cuja relação com a filha é muito mais dramática. Por que o sofrimento? Eu mudei minha vida por causa dela, cuidei dela quando era pequena, fui sempre carinhoso e presente, até me separar da sua mãe, então, apesar do choque, continuei mantendo contato diário, tendo-a e à sua irmã na minha casa, duas vezes por semana e em muitos fins de semana. Só anos mais tarde é que ela se afastou de mim, cada vez mais. Primeira filha é sempre especial, ainda mais porque combinamos muito. Como entender esse afastamento? Eis o problema. Sofro, mas não tanto quanto meu amigo, uma vez que tenho mais duas filhas pequenas, com as quais moro e convivo intensamente, e a outra filha adulta é atenciosa. É, porém, um problema que me incomoda, uma perda, um sentimento de ingratidão misturado com culpa ("O que foi que eu fiz errado?" ou "Ela não perdoa a separação").

Acontece que a dedicação que dei às minhas filhas não é a essência de ser pai.

Para a mulher contemporânea, ser mãe é uma opção, uma das possibilidades da sua vida. A mulher de hoje se considera igual ao homem e almeja realizações legítimas: independência financeira, profissão, liberdade. São desejos que precedem o casamento e a maternidade, e os filhos se tornam parte de um plano maior que a mulher imagina para sua vida. Nesse plano, é comum que ela tenha apenas um filho e que ele venha cada vez mais tarde (no espaço de quatro gerações, a idade da maternidade passou de menos de vinte anos para em torno de vinte para em torno de trinta e para quase quarenta). Trata-se da "experiência da maternidade", que a maioria das mulheres quer viver, considera que a completa, assim como o marido, mas não é mais sua maior realização, é parte de um conjunto e precisa se ajustar a ele. Também é cada vez maior o número de mulheres que não querem ter filhos ou que, desejando-os, optam por adotar, porque não querem passar pela experiência biológica da gravidez. Outras se contentam com cachorros e outros animais de estimação.

A mulher avança, assim, para o mundo masculino, isto é, para o mundo que era reservado aos homens, o mundo do trabalho, o mundo da rua, o mundo de todas as atividades fora do lar – a Presidência da República. Como tal, ela precisa ser independente do marido, precisa ter renda própria e profissão, e tendo profissão descobre um mundo novo que quer descobrir, no qual quer progredir, e progredindo profissionalmente, melhora financeiramente, e melhorando financeiramente novas possibilidades (de consumo, porque vivemos num mundo consumista) surgem para ela.

É claro que estou falando da minha classe, da classe média, das mulheres com as quais convivo. Não será a mesma coisa para mulheres mais pobres, nem para mulheres ricas, mas o modelo atravessa as classes como um estereótipo, martelado pelos veículos de comunicação. O que varia, na verdade, são as possibilidades, limitadas pela origem de classe: raramente uma operária pode realizar os sonhos de consumo da mulher de classe média, da mesma forma que uma mulher rica se emancipa abrindo logo uma confecção, uma butique, uma loja de marca, um negócio inovador. No entanto, todas têm em comum o novo paradigma da mulher independente, com renda própria, controle da gravidez e exercício da liberdade sexual, que deseja ascender profissionalmente e consumir as maravilhas que o mundo contemporâneo oferece.

Nesse modelo, o filho entra como mais um desejo realizado, mais uma meta alcançada (quando vem no tempo previsto para ele) ou mais uma obrigação da qual ela tem de dar conta, entre tantas. Por isso mesmo, com tantas obrigações, a mulher reduz o número de filhos, que nas quatro gerações citadas caiu de: 1) número ilimitado; 2) quatro ou cinco; 3) dois ou três; 4) um ou dois. Sendo mais uma obrigação da qual a mãe precisa dar conta, o filho é acomodado em horários disponíveis, ingressa na correria cotidiana da mãe pela cidade (ou pelo mundo), é cuidado por outras pessoas e instituições.

Embora tudo isso mude a aparência da maternidade e nos confunda, levando o homem a assumir funções da mulher, assim como ela assumiu funções antes masculinas, há nessa experiência uma característica intrínseca que torna a mãe diferente do pai. Começa na gravidez, segue na gestação, no parto, na amamentação, nos cuidados com o bebê. Esse vínculo com um ser que se formou dentro do seu próprio corpo é uma experiência que os homens desconhecem e que torna a relação mãe-filho única. Mulheres que adotam estabelecem provavelmente uma relação intermediária, não sei se mais próxima da feminina ou da masculina. Também há mulheres que parecem não estar à vontade na maternidade, que descuidam dos filhos.

O fato é que as mulheres contemporâneas, que deixaram o lar para viver na cidade, que conciliam a família com o trabalho, que assumem mil obrigações além das referentes à maternidade e que guiam sua vida pelo trabalho profissional, ficam parecidas com aquelas macacas que carregam os filhos nas costas enquanto pulam de galho em galho, e mesmo com indígenas, que adotam método similar, enquanto andam pela floresta. É a mulher que engravida, é a mulher que faz a gestação, é a mulher que dá à luz, que amamenta e que cuida do bebê. A mulher é responsável pelo filho, ainda que viva correndo de um lado para outro, enquanto segue "sua vida", e por isso estabelece com ele uma relação única. Nem sempre, o pai está presente na família, muitas vezes não está – muitas vezes as mães são solteiras, muitas vezes os casais se separam, e o filho fica com a mãe.

Se a família é assim, se com a mãe é que o filho estabelece uma relação especial, única, e se a mulher contemporânea é essa mulher-macaca, que pula de galho em galho, ganhando a vida, se realizando e carregando o filho com ela, onde é que entra o homem, onde é que entra o pai? Esta é uma questão importante para nós, homens contemporâneos. Estávamos acostumados a viver a vida na cidade, estávamos acostumados a viver uma vida que era privilégio nosso e que as mulheres agora vivem também, mas essa vida tinha um lar, um espaço privado bem definido, que fazia contraponto à rua. Nele, nós reinávamos, éramos autoridade, todos nos respeitavam, os filhos nos obedeciam e a mulher nos servia. Nosso papel era bem definido: cabia ao homem ganhar dinheiro e garantir o sustento da família, o futuro dos filhos. A segurança da mulher e o futuro do filho eram responsabilidades do pai; o exemplo moral também vinha dele.

Isso mudou, porque a mãe ocupou os mesmos espaços e também porque muitas vezes a família nem tem pai. O que é o pai agora? O que é o homem agora? Nós perdemos nosso reino, perdemos nossa rainha, perdemos nossos súditos. Muitos de nós – entre os quais me incluo – apoiaram o novo modelo feminino. Acho que também procuramos copiar seu comportamento em relação aos filhos, uma vez que perdemos o modelo anterior de autoridade exclusiva e provedor.

Ser pai não é ser mãe, porque nunca poderemos ser, embora a mulher esteja se tornando pai, ocupando o lugar do homem – pãe. Será possível à mulher ser pai, além de mãe? Talvez não, provavelmente não. Também não é possível ao homem ser mãe. Ou mai. Pra que é então que nós servimos? Pai é mãe reserva? Auxiliar de mãe? Aquele que entra em campo quando a mãe não pode atuar ou que fica do seu lado para ajudar, quando é preciso, sob ordem dela? Pai é provedor? Autoridade? Motorista? Faz-tudo doméstico? Torcedor de futebol? Referência masculina? Mas qual? O que é ser masculino sem ter mulher, sem ter esposa, sem ter filho, sem ser marido e pai?

Ser pai não é ser mãe. Entender isso já é alguma coisa, agora é só virar a moeda.

Mas talvez do outro lado da moeda não tenha nada. Talvez ser pai seja quase nada. Nossa importância é equivalente à nossa participação: alguns minutos, uma gota, a fecundação do óvulo. Depois a mulher dá conta do resto – prover, tarefa que ela assumiu também, pode ser improvisada com a maternidade. Ou o inverso. E nós? Não temos mais função, pelo menos função natural, como a mulher, que depois da cópula, fica nove meses gestando, dá à luz, amamenta, cuida, cria. O homem precisa criar sua história, o pai precisa se inventar.

A legislação impõe obrigações do pai, estabecele direitos e deveres, numa tentativa de se ajustar aos novos tempos, mas, como sempre, fica no que é consenso, na média, na superfície. Cada vez mais as famílias brasileiras têm como chefe a mãe; programas sociais de renda fazem depósitos em nome da mulher porque descobriram que ela é mais confiável e mais estável no lar. O homem vai se tornando coadjuvante nessa história, se agarrando à vida na rua, na qual tem não uma, mas muitas mulheres ao seu redor, e na hierarquia empresarial, em geral para servi-lo, ainda. Foge da paternidade e do casamento, que não oferece mais as vantagens de antanho.

O que torna a paternidade mais complexa é que o homem que engravida uma mulher costuma se apaixonar por ela – antes. E estando apaixonado costuma tratar a gravidez de forma subjetiva. É diferente para a mulher: para a mulher a gravidez é objetiva, faz parte do seu corpo, ela só se desfaz dela pelo aborto, por uma ação objetiva. Para o homem, o aborto é um assunto subjetivo, da relação com a mulher e com a imagem que faz de si mesmo, da sua vida, do seu futuro. Estar apaixonado, portanto, é uma condição subjetiva, que leva o homem a desejar o filho, a continuar do lado da mulher e apoiá-la. Por isso abortos significam rupturas, indicam que o homem não quer se prender à mulher (também ela a ele, mas para a mulher é diferente: ela pode ter o filho e dispensar o pai). A paixão liga o homem à mulher e, indiretamente, ao filho.

Cheguei ao ponto, acho que foi isso que entendi, quando disse que tinha entendido o que é ser pai: o pai só está ligado ao filho indiretamente, pela mãe. Entre o pai e o filho existe sempre a mãe. Entre a mãe e o filho também existe o pai, mas essa intermediação é breve, dura alguns minutos, na concepção. A intermediação da mãe é para sempre.

Quando o filho nasce, aquele amor pela mãe passa ao filho e se torna maior se o pai assume, como é comum hoje, funções antes maternas, como fazer dormir, trocar fralda, alimentar, brincar. Ao assumir funções maternas, o pai se torna um pouco mãe e cria novos vínculos com o filho, vínculos que não são tipicamente paternos, masculinos, e que o confundem com a mãe.

Na relação tradicional, a relação com o filho vai até esse começo, no qual o homem está do lado da mulher e a apoia, o que inclui ser seu provedor e do filho. A continuação dessa relação depende da continuidade da relação com a mãe. Sabe-se que a paixão é efêmera – o mesmo sentimento e o mesmo comportamento que o pai teve com aquela mãe pode ter em seguida com outra. Uma paixão, um filho...

A continuação da relação não é mais consequência subjetiva. O casamento é um vínculo permanente, não apenas um compromisso do casal, mas também um compromisso social. O lar aparece como um ganho para o homem, como o caracterizei anteriormente, é o seu reino: autoridade, conforto, companhia. Quando a mulher não é mais a rainha do lar, o reino se perde, a autoridade é dividida, o conforto diminui, a companhia não é garantida. E novas responsabilidades e tarefas aparecerem, tarefas e responsabilidades antes limitadas à mãe.

Nas novas relações, o homem perdeu seu reino e não ganhou nada.

Preciso acrescentar outra condição subjetiva. Quando o casamento termina, é aquela relação entre o homem e a mulher, entre pai e mãe, que está sendo encerrada. A relação com o filho, não. Por ser de natureza diferente, o afeto entre pai e filho permanece; sofre ao longo dos anos outros tipos de altos e baixos, mas continua. Um filho não é substituído, ainda que o homem case de novo e tenha outro filho, ao contrário da relação com a mãe, que é superada por nova paixão, novo amor. Esse vínculo com o filho é mais forte do que foi o vínculo com a mãe, embora num determinado momento, de paixão, este último seja a relação mais profunda que um homem estabelece na vida. A ligação criada desde a gestação e dos primeiros dias de vida do filho é para sempre.

Isso também o homem contemporâneo perde, na nova relação amorosa, intrinsecamente provisória, inclusive por lei. Perde o filho, pois este não apenas fica com a mãe, mas tem uma ligação com a mãe que o pai não tem, nunca teve, não pode ter, pois é uma ligação biológica. O pai está ligado ao filho, mas o filho está ligado à mãe.