quarta-feira, 29 de setembro de 2010

A nova liberdade de imprensa

Jornalistas não falam mal de empresas jornalísticas (em público: entre si, é hábito) porque dependem delas para sobreviver, precisam de emprego.

É um procedimento comum no capitalismo, as empresas fazem listas negras de trabalhadores indesejáveis. Era assim no começo do sindicalismo e nunca acabou completamente, porque tem uma base real: as empresas não querem empregados que questionem, que sublevem os colegas, que criem problemas, enfim. (Os novos modelos de adesão dos trabalhadores às empresas têm limites claros: não se pode questionar o poder, muito menos a propriedade.)

Mas tem o outro lado, o dos trabalhadores. Todos precisamos justificar a nossa vida, aceitar o cotidiano, estabelecer uma ordem na qual os dias se sucedam de forma mais harmônica e consigamos sucessos e progressos. Assim, é melhor confiar do que desconfiar, é melhor concordar do que contestar, é melhor acreditar do que duvidar, é melhor admirar do que odiar, é melhor obedecer do que enfrentar.

A gente precisa estabelecer boas relações no trabalho para tornar suportável uma rotina que frequentemente nos parece sem sentido, porque não participamos das decisões nem somos os donos da empresa nem nos apropriamos do resultado do nosso trabalho, mas apenas embolsamos um salário, no fim do mês.

No esforço para tornar melhor o que é ruim, para tornar tolerável o que é insuportável, para gostar do que não escolhemos, para tornar agradável o que não podemos mudar, adotamos a visão do chefe, a visão do patrão, a visão do sistema.

Na classe média, isso é mais frequente e compreensível: ela tem a ilusão da ascensão social, da passagem de trabalhador assalariado a proprietário, ou pelo menos a chefe, com salário capaz de comprar muitas das riquezas produzidas pelo sistema, de ascender na empresa ou de trocar um emprego por outro com vantagens, que é o que se chama "carreira".

Há efetivamente trabalhadores que mudam de classe, que não apenas chegam à classe média, mas se transformam em capitalistas. São raros, mas reforçam a ideia de que o sistema oferece oportunidades, que qualquer um pode ascender socialmente e que isso é uma questão de esforço pessoal.

Esforço que inclui competição: quem quer "vencer" na vida tem de superar seus iguais, transformados em rivais, pois não há lugar para todos no alto da pirâmide. Assim, os privilégios das classes ricas e poderosas se justificam como prêmio pela competência, pelo talento e pelo esforço. E justificam a desigualdade social.

Essa lógica ajuda a manter a adesão dos trabalhadores ao sistema, nos ajuda a levar nossa vidinha cotidiana sem revolta, com algum conforto, seguindo objetivos que vamos nos impondo. A competição entre indivíduos para ascender socialmente, para "chegar lá", é um dos combustíveis do sistema.

O capitalismo, um sistema tão desigual e tão antidemocrático, não prospera apenas pelo uso da força. Ele sobrevive porque de alguma forma aderimos a ele, porque nos adaptamos a ele, nos conformamos a ele, organizamos nossa vida de tal forma que é mais confortável seguir oprimidos e explorados do que nos revoltarmos. Para isso precisamos aceitar nossa condição, justificá-la, aceitar, enfim, que "as coisas são assim", que assim é certo e melhor.

O jornalista que na mesa de bar, com colegas, fala mal da empresa em que trabalha, do chefe ao qual obedece e do artigo que produz diariamente (o jornal, o noticiário), não faz o mesmo publicamente porque tem de sobreviver, precisa do emprego, não pode correr o risco de ser demitido e entrar numa lista negra dos patrões – afinal, "se você não gosta, por que é que quer trabalhar aqui?", é o argumento que poderá ouvir.

Mas ele também age assim porque acredita no mito do jornalismo, da liberdade de imprensa, da informação correta que advém da competição entre os veículos, na empresa jornalística como empreendimento privado. Há um argumento recorrente que diz: "esse modelo de imprensa é o pior, exceto todos os outros".

A internet mudou isso, muitos jornalistas estão criando coragem de criticar os patrões, de se distinguirem deles, de pensar com a própria cabeça. Afinal, na web, o jornalista não depende do patrão, qualquer um pode ter o seu jornal, nem é preciso ser profissional para isso.

A web cria um novo modelo de jornalismo, com características próprias. Uma dessas características é que o jornalista não precisa ter patrão, a propriedade do veículo noticioso (editora, jornal, revista, emissora) não é mais privilégio dos capitalistas. Nem se trata exatamente de uma propriedade, pois tudo aqui é virtual.

A web oferece oportunidade para o jornalista empreendedor, para grupos de jornalistas, para organizações da sociedade e até para o leigo.

Outra característica é a multiplicidade de veículos. A "competição" na web é tão vasta que o novo jornalismo precisa superar o enorme desafio de ser visto, ser visitado, ser lembrado, ser lido, enfim.

Na web, a liberdade de imprensa adquire novo sentido. Não se trata mais da liberdade de jornais, revistas e emissoras publicarem o que querem. O direito de resposta também perde o sentido, como contrapartida à liberdade de imprensa.

Na web, todos têm o direito de falar e de ser ouvidos. Se você discorda, pode se manifestar instantaneamente. Se foi atacado ou se sua informação foi distorcida, você pode responder, sem pedir autorização a juiz nem depender da boa vontade do proprietário.

A web criou a verdadeira liberdade de imprensa, que não se confunde com a "liberdade de empresa".

Na imprensa tradicional, se uma informação é falsa ou distorcida, ela só pode se corrigida: a) na próxima edição; b) pela própria publicação ou emissora; c) por ordem judicial.

Na web, a informação pode ser corrigida: a) imediatamente; b) pela própria vítima; c) por qualquer pessoa; d) em veículo próprio; e) em comentários ao texto; f) em novos textos publicados no mesmo endereço; g) em (inúmeras) outras páginas.

A multiplicidade e a velocidade da informação na web criam uma nova liberdade de imprensa.

A web cria também uma nova imprensa, uma imprensa que não é mais dos proprietários, mas dos cidadãos: todo mundo falando com todo mundo. Como isso se dá e se dará ainda está sendo resolvido, depende de soluções tecnológicas, que aparecem a cada dia, e da adesão dos indivíduos ao novo modelo.

É certo, porém, que esta é uma característica intrínseca do novo modelo de comunicação, assim como a propriedade, o trabalho profissional e o consumo passivo eram os papéis reservados ao capitalista, ao jornalista e a todo o restante da população, respectivamente, no modelo tradicional.

Esse modelo democrático de imprensa reserva um novo papel e novas funções para o jornalista. Sem medo de perder o emprego, sem necessidade de se submeter aos chefes e de justificar seu comportamento, o jornalista pode exercer de forma plena sua profissão, que nada mais é do que informar corretamente, perseguir a verdade, colocar a notícia a serviço da coletividade.

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