quarta-feira, 8 de setembro de 2010

A mulher-macaca e o homem inútil

Tenho quatro filhas, a mais velha completa 27 anos hoje, a caçula tem seis, mas só agora entendi o que é ser pai. Entendi não olhando para mim, mas para outra pessoa; entendi não pensando no homem, mas na mulher; entendi lendo um artigo, mas não por causa do artigo e sim porque pensei na autora. Enfim, entendi o que é ser pai por acaso, no meio de uma leitura, com um pensamento vagabundo, que voou para fora do assunto comparando-me com as mães contemporâneas. De um só lance compreendi também o descaso da minha primogênita comigo, que me aflige.

Não sou o único pai que sofre por isso, sei de outro cuja relação com a filha é muito mais dramática. Por que o sofrimento? Eu mudei minha vida por causa dela, cuidei dela quando era pequena, fui sempre carinhoso e presente, até me separar da sua mãe, então, apesar do choque, continuei mantendo contato diário, tendo-a e à sua irmã na minha casa, duas vezes por semana e em muitos fins de semana. Só anos mais tarde é que ela se afastou de mim, cada vez mais. Primeira filha é sempre especial, ainda mais porque combinamos muito. Como entender esse afastamento? Eis o problema. Sofro, mas não tanto quanto meu amigo, uma vez que tenho mais duas filhas pequenas, com as quais moro e convivo intensamente, e a outra filha adulta é atenciosa. É, porém, um problema que me incomoda, uma perda, um sentimento de ingratidão misturado com culpa ("O que foi que eu fiz errado?" ou "Ela não perdoa a separação").

Acontece que a dedicação que dei às minhas filhas não é a essência de ser pai.

Para a mulher contemporânea, ser mãe é uma opção, uma das possibilidades da sua vida. A mulher de hoje se considera igual ao homem e almeja realizações legítimas: independência financeira, profissão, liberdade. São desejos que precedem o casamento e a maternidade, e os filhos se tornam parte de um plano maior que a mulher imagina para sua vida. Nesse plano, é comum que ela tenha apenas um filho e que ele venha cada vez mais tarde (no espaço de quatro gerações, a idade da maternidade passou de menos de vinte anos para em torno de vinte para em torno de trinta e para quase quarenta). Trata-se da "experiência da maternidade", que a maioria das mulheres quer viver, considera que a completa, assim como o marido, mas não é mais sua maior realização, é parte de um conjunto e precisa se ajustar a ele. Também é cada vez maior o número de mulheres que não querem ter filhos ou que, desejando-os, optam por adotar, porque não querem passar pela experiência biológica da gravidez. Outras se contentam com cachorros e outros animais de estimação.

A mulher avança, assim, para o mundo masculino, isto é, para o mundo que era reservado aos homens, o mundo do trabalho, o mundo da rua, o mundo de todas as atividades fora do lar – a Presidência da República. Como tal, ela precisa ser independente do marido, precisa ter renda própria e profissão, e tendo profissão descobre um mundo novo que quer descobrir, no qual quer progredir, e progredindo profissionalmente, melhora financeiramente, e melhorando financeiramente novas possibilidades (de consumo, porque vivemos num mundo consumista) surgem para ela.

É claro que estou falando da minha classe, da classe média, das mulheres com as quais convivo. Não será a mesma coisa para mulheres mais pobres, nem para mulheres ricas, mas o modelo atravessa as classes como um estereótipo, martelado pelos veículos de comunicação. O que varia, na verdade, são as possibilidades, limitadas pela origem de classe: raramente uma operária pode realizar os sonhos de consumo da mulher de classe média, da mesma forma que uma mulher rica se emancipa abrindo logo uma confecção, uma butique, uma loja de marca, um negócio inovador. No entanto, todas têm em comum o novo paradigma da mulher independente, com renda própria, controle da gravidez e exercício da liberdade sexual, que deseja ascender profissionalmente e consumir as maravilhas que o mundo contemporâneo oferece.

Nesse modelo, o filho entra como mais um desejo realizado, mais uma meta alcançada (quando vem no tempo previsto para ele) ou mais uma obrigação da qual ela tem de dar conta, entre tantas. Por isso mesmo, com tantas obrigações, a mulher reduz o número de filhos, que nas quatro gerações citadas caiu de: 1) número ilimitado; 2) quatro ou cinco; 3) dois ou três; 4) um ou dois. Sendo mais uma obrigação da qual a mãe precisa dar conta, o filho é acomodado em horários disponíveis, ingressa na correria cotidiana da mãe pela cidade (ou pelo mundo), é cuidado por outras pessoas e instituições.

Embora tudo isso mude a aparência da maternidade e nos confunda, levando o homem a assumir funções da mulher, assim como ela assumiu funções antes masculinas, há nessa experiência uma característica intrínseca que torna a mãe diferente do pai. Começa na gravidez, segue na gestação, no parto, na amamentação, nos cuidados com o bebê. Esse vínculo com um ser que se formou dentro do seu próprio corpo é uma experiência que os homens desconhecem e que torna a relação mãe-filho única. Mulheres que adotam estabelecem provavelmente uma relação intermediária, não sei se mais próxima da feminina ou da masculina. Também há mulheres que parecem não estar à vontade na maternidade, que descuidam dos filhos.

O fato é que as mulheres contemporâneas, que deixaram o lar para viver na cidade, que conciliam a família com o trabalho, que assumem mil obrigações além das referentes à maternidade e que guiam sua vida pelo trabalho profissional, ficam parecidas com aquelas macacas que carregam os filhos nas costas enquanto pulam de galho em galho, e mesmo com indígenas, que adotam método similar, enquanto andam pela floresta. É a mulher que engravida, é a mulher que faz a gestação, é a mulher que dá à luz, que amamenta e que cuida do bebê. A mulher é responsável pelo filho, ainda que viva correndo de um lado para outro, enquanto segue "sua vida", e por isso estabelece com ele uma relação única. Nem sempre, o pai está presente na família, muitas vezes não está – muitas vezes as mães são solteiras, muitas vezes os casais se separam, e o filho fica com a mãe.

Se a família é assim, se com a mãe é que o filho estabelece uma relação especial, única, e se a mulher contemporânea é essa mulher-macaca, que pula de galho em galho, ganhando a vida, se realizando e carregando o filho com ela, onde é que entra o homem, onde é que entra o pai? Esta é uma questão importante para nós, homens contemporâneos. Estávamos acostumados a viver a vida na cidade, estávamos acostumados a viver uma vida que era privilégio nosso e que as mulheres agora vivem também, mas essa vida tinha um lar, um espaço privado bem definido, que fazia contraponto à rua. Nele, nós reinávamos, éramos autoridade, todos nos respeitavam, os filhos nos obedeciam e a mulher nos servia. Nosso papel era bem definido: cabia ao homem ganhar dinheiro e garantir o sustento da família, o futuro dos filhos. A segurança da mulher e o futuro do filho eram responsabilidades do pai; o exemplo moral também vinha dele.

Isso mudou, porque a mãe ocupou os mesmos espaços e também porque muitas vezes a família nem tem pai. O que é o pai agora? O que é o homem agora? Nós perdemos nosso reino, perdemos nossa rainha, perdemos nossos súditos. Muitos de nós – entre os quais me incluo – apoiaram o novo modelo feminino. Acho que também procuramos copiar seu comportamento em relação aos filhos, uma vez que perdemos o modelo anterior de autoridade exclusiva e provedor.

Ser pai não é ser mãe, porque nunca poderemos ser, embora a mulher esteja se tornando pai, ocupando o lugar do homem – pãe. Será possível à mulher ser pai, além de mãe? Talvez não, provavelmente não. Também não é possível ao homem ser mãe. Ou mai. Pra que é então que nós servimos? Pai é mãe reserva? Auxiliar de mãe? Aquele que entra em campo quando a mãe não pode atuar ou que fica do seu lado para ajudar, quando é preciso, sob ordem dela? Pai é provedor? Autoridade? Motorista? Faz-tudo doméstico? Torcedor de futebol? Referência masculina? Mas qual? O que é ser masculino sem ter mulher, sem ter esposa, sem ter filho, sem ser marido e pai?

Ser pai não é ser mãe. Entender isso já é alguma coisa, agora é só virar a moeda.

Mas talvez do outro lado da moeda não tenha nada. Talvez ser pai seja quase nada. Nossa importância é equivalente à nossa participação: alguns minutos, uma gota, a fecundação do óvulo. Depois a mulher dá conta do resto – prover, tarefa que ela assumiu também, pode ser improvisada com a maternidade. Ou o inverso. E nós? Não temos mais função, pelo menos função natural, como a mulher, que depois da cópula, fica nove meses gestando, dá à luz, amamenta, cuida, cria. O homem precisa criar sua história, o pai precisa se inventar.

A legislação impõe obrigações do pai, estabecele direitos e deveres, numa tentativa de se ajustar aos novos tempos, mas, como sempre, fica no que é consenso, na média, na superfície. Cada vez mais as famílias brasileiras têm como chefe a mãe; programas sociais de renda fazem depósitos em nome da mulher porque descobriram que ela é mais confiável e mais estável no lar. O homem vai se tornando coadjuvante nessa história, se agarrando à vida na rua, na qual tem não uma, mas muitas mulheres ao seu redor, e na hierarquia empresarial, em geral para servi-lo, ainda. Foge da paternidade e do casamento, que não oferece mais as vantagens de antanho.

O que torna a paternidade mais complexa é que o homem que engravida uma mulher costuma se apaixonar por ela – antes. E estando apaixonado costuma tratar a gravidez de forma subjetiva. É diferente para a mulher: para a mulher a gravidez é objetiva, faz parte do seu corpo, ela só se desfaz dela pelo aborto, por uma ação objetiva. Para o homem, o aborto é um assunto subjetivo, da relação com a mulher e com a imagem que faz de si mesmo, da sua vida, do seu futuro. Estar apaixonado, portanto, é uma condição subjetiva, que leva o homem a desejar o filho, a continuar do lado da mulher e apoiá-la. Por isso abortos significam rupturas, indicam que o homem não quer se prender à mulher (também ela a ele, mas para a mulher é diferente: ela pode ter o filho e dispensar o pai). A paixão liga o homem à mulher e, indiretamente, ao filho.

Cheguei ao ponto, acho que foi isso que entendi, quando disse que tinha entendido o que é ser pai: o pai só está ligado ao filho indiretamente, pela mãe. Entre o pai e o filho existe sempre a mãe. Entre a mãe e o filho também existe o pai, mas essa intermediação é breve, dura alguns minutos, na concepção. A intermediação da mãe é para sempre.

Quando o filho nasce, aquele amor pela mãe passa ao filho e se torna maior se o pai assume, como é comum hoje, funções antes maternas, como fazer dormir, trocar fralda, alimentar, brincar. Ao assumir funções maternas, o pai se torna um pouco mãe e cria novos vínculos com o filho, vínculos que não são tipicamente paternos, masculinos, e que o confundem com a mãe.

Na relação tradicional, a relação com o filho vai até esse começo, no qual o homem está do lado da mulher e a apoia, o que inclui ser seu provedor e do filho. A continuação dessa relação depende da continuidade da relação com a mãe. Sabe-se que a paixão é efêmera – o mesmo sentimento e o mesmo comportamento que o pai teve com aquela mãe pode ter em seguida com outra. Uma paixão, um filho...

A continuação da relação não é mais consequência subjetiva. O casamento é um vínculo permanente, não apenas um compromisso do casal, mas também um compromisso social. O lar aparece como um ganho para o homem, como o caracterizei anteriormente, é o seu reino: autoridade, conforto, companhia. Quando a mulher não é mais a rainha do lar, o reino se perde, a autoridade é dividida, o conforto diminui, a companhia não é garantida. E novas responsabilidades e tarefas aparecerem, tarefas e responsabilidades antes limitadas à mãe.

Nas novas relações, o homem perdeu seu reino e não ganhou nada.

Preciso acrescentar outra condição subjetiva. Quando o casamento termina, é aquela relação entre o homem e a mulher, entre pai e mãe, que está sendo encerrada. A relação com o filho, não. Por ser de natureza diferente, o afeto entre pai e filho permanece; sofre ao longo dos anos outros tipos de altos e baixos, mas continua. Um filho não é substituído, ainda que o homem case de novo e tenha outro filho, ao contrário da relação com a mãe, que é superada por nova paixão, novo amor. Esse vínculo com o filho é mais forte do que foi o vínculo com a mãe, embora num determinado momento, de paixão, este último seja a relação mais profunda que um homem estabelece na vida. A ligação criada desde a gestação e dos primeiros dias de vida do filho é para sempre.

Isso também o homem contemporâneo perde, na nova relação amorosa, intrinsecamente provisória, inclusive por lei. Perde o filho, pois este não apenas fica com a mãe, mas tem uma ligação com a mãe que o pai não tem, nunca teve, não pode ter, pois é uma ligação biológica. O pai está ligado ao filho, mas o filho está ligado à mãe.

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