Há um fato histórico curioso na eleição da Dilma que ainda não foi explorado. Lula pertence à geração política dos anos 70, Dilma à geração dos anos 60.
A geração 68 começou defendendo o governo Jango contra o golpe, ou um pouco depois, lutando contra a ditadura, que ainda se instalava no país. Essa geração formada principalmente por jovens estudantes, liderou as grandes manifestações de massa de 1968 e, a partir do AI-%, que estabeleceu a ditadura completa e a liberdade de ação dos grupos extremistas de direita, passou à clandestinidade.
Na clandestinidade, a geração 68 se dividiu entre a luta armada urbana, a luta armada no campo, a luta de resistência junto aos trabalhadores e a capitulação.
Grande número desses jovens foram presos e torturados; uma parte foi exterminada pelos órgãos de repressão, outra parte sobreviveu. Muitos se exilaram e retornaram com a anistia de 1979. Alguns sobreviveram em liberdade e levaram vida clandestina, à frente de grupelhos de esquerda sem grande influência política, volta e meia golpeados pela ditadura, ainda assim. Outros, depois de presos, torturados e condenados por tribunal militar, cumpriram pena, deixaram a prisão e retomaram sua vida, seguindo caminhos diversos.
Estão nessa última condição muitos dos políticos que hoje têm mandato popular ou disputam estas eleições: Márcio Lacerda, Fernando Pimentel, Nilmário Miranda, Dilma Rousseff, para citar apenas mineiros. No final dos anos 60 e começo dos anos 70, todos eles eram muito jovens.
A geração 68 é muito diferente da geração dos anos 70, que começa também com mobilizações estudantis, em 1977, em todo o país, mas no ano seguinte é ultrapassada pelas greves no ABC paulista, nas quais se destaca a liderança de Lula.
Note-se: Lula veio depois, mas é mais velho do que Dilma. A geração 68 foi uma geração de garotos.
A geração de 68 foi uma geração cheia de confiança, pois nasceu sob a democracia populista e viveu a experiência do crescente movimento de massas entre 64 e 68; quando passou à luta clandestina, armada inclusive, julgava ser capaz de derrubar a ditadura e acreditava na revolução operária.
A diferença entre Dilma e Lula não é apenas de classe social. Lula, além de pertencer à classe operária, formou sua consciência política na luta sob a ditadura militar, nas dificuldades de quem está protegido pela clandestinidade, mas tem vida pública; a proteção de Lula era outra: sua relação íntima com as massas trabalhadoras, da qual fazia parte.
No entanto, ao contrário da geração 68, a geração de Lula fazia política com muito cuidado, valorizando conquistas, temente à repressão, capaz de se abater de repente sobre qualquer liderança, prendê-la, torturá-la, desaparecer com ela para sempre. Ao contrário da geração de 68, a geração política de Lula queria muito menos do que a revolução socialista, queria apenas a volta das liberdades democráticas – e alguns direitos sociais, algumas melhorias na vida cotidiana, como aumento de salário e emprego.
A geração 68 foi uma geração destemida que terminou derrotada. A geração 77 foi uma geração atemorizada que terminou vitoriosa.
A geração 68 tinha convicções ideológicas fortes, influenciadas pela URSS, pela China, pela Revolução Cubana, por Che Guevara, Mao, Trotski, Lênin. A geração 77 era pragmática e chegava atá a recusar a participação de socialistas. Não é à toa que o PT se chama Partido dos Trabalhadores, sem qualquer rótulo socialista ou revolucionário.
A geração 68, derrotada, voltou à política pelas mãos da geração 77, uma geração que não fazia política nem socialista nem revolucionária. A sigla PT representa esse prevalência da geração 77 sobre a geração 68. Esta, ainda machucada pelos anos de chumbo, viu com veneração o surgimento de um líder operário, que não era socialista nem revolucionário, mas era autêntico e vitorioso – Lula.
Nem todos os socialistas e revolucionários se curvaram a Lula, como se pode ver em siglas como Psol, PSTU e outras menores. Grande parte, porém, nos descaminhos de suas organizações, optou por aderir ao PT e à liderança carismática de um operário que, se não se contagiou pela revolução, tampouco se deixou seduzir pelo peleguismo.
Essa relação entre a geração 77 e a geração 68 é importante na fundação e no crescimento do PT. Pode-se dizer que durante três eleições presidenciais o líder Lula fez campanhas influenciado pela geração 68. Depois de perder três vezes, finalmente, em 2002, decidiu seguir na política burguesa o jeito de fazer política no sindicato; vitorioso duas vezes, firmou-se na Presidência da República como na presidência do Sindicato dos Metalúrgicos.
A eleição deste ano é uma curiosa sucessão da geração de 77 pela geração de 68.
Durante mais de três décadas, a geração 68 se contentou com papéis secundários, se contentou em assessorar a geração 77. Agora, Dilma recebe das mãos do maior expoente da geração 77 o poder de dar continuidade à sua administração.
Lula não escolheu Dilma por capricho, nem por capacho. Escolheu-a porque avaliou que ela é a mais capaz para governar, a mais capaz para conduzir as políticas públicas que ele implantou, mas também a mais capaz para gerenciar os inúmeros interesses que se expressam no governo.
Dilma certamente não é Lula, um fenômeno político ao mesmo tempo firme nos seus propósitos e conciliador, negociador.
Dilma é a geração 68 finalmente no poder, não pela revolução, como ela queria, mas pela eleição, como quis a geração 77.
Resta saber o que ficou dos ideais dos anos 60, se tudo é o pragmatismo dos anos 70.
PS: As gerações pré-64 ficaram para trás, seu último representante foi Leonel Brizola, seu último presidente Tancredo Neves, que morreu antes de tomar posse. As gerações da ditadura, que tentaram sobreviver com o PDS-PFL-DEM, estão sendo varridas para a lata de lixo da história, com sucessivas derrotas eleitorais; seu último remanescente bem-sucedido é o vestusto ex-presidente hoje senador José Sarney. Passada a vez das gerações de 77 e 68, que ainda devem atravessar a próxima década, o que virá? Não há mais políticos ligados às grandes batalhas entre direita e esquerda. Restarão os profissionais, os herdeiros, os técnicos. E os ambientalistas. Os ambientalistas são provavelmente os últimos remanescentes da linhagem de políticos ideológicos e idealistas.
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