terça-feira, 12 de outubro de 2010

Belo Horizonte: 113 anos de extinção gradativa dos espaços públicos

O antigo campo do América, na Avenida dos Andradas, acaba de virar shopping. Repete-se o que aconteceu há duas décadas com o antigo campo do Atlético, em Lourdes, que se transformou no Diamond Mall. Há mais tempo ainda, na década de 70, se não me engano, o América já havia perdido seu primeiro campo, o Alameda, que deu lugar ao supermercado Pão de Açúcar, depois Extra, em Santa Efigênia. Cidade dos espaços abertos, Belo Horizonte pode ter sua história resumida no processo de substituição de áras públicas por áreas privadas.

No dia 3 de outubro, a caminho da urna eleitoral, passei pelo campo do pequeno Inconfidência, clube modesto do bairro Concórdia. Cresci jogando futebol num campo semelhante, o do Pitangui, na Lagoinha. Fico pensando que futuro aguarda esses dois espaços públicos remanescentes da fundação da cidade. Não sei como surgiram, mas o certo é que isso aconteceu numa época em que o espaço não era escasso e cobiçado pela indústria da construção civil, como é hoje. O Pitangui ocupou área em torno de uma pedreira desativada. Acredito que outros campos de futebol, o principal lazer popular, tenham surgido de forma semelhante. O Inconfidência, hoje, está cercado de construções, como uma ilha. Construções horizontais, felizmente; a inexistência de edifícios no Concórdia é provavelmente a garantia de existência do clube.

O fato é que a expansão imobiliária se dá ocupando espaços vazios e substituindo construções horizontais por construções verticais. Atualmente, qualquer terreno vazio em Belo Horizonte corre risco de ser ocupado e qualquer casa corre o risco de ser derrubada para dar lugar a um arranha-céu. A ocupação espacial da capital mineira se aproxima de 100%, não escapam sequer os morros mais íngremes. Talvez chegaremos ao dia em que os últimos espaços vazios serão ruas e avenidas – lotadas de carros. (Os passeios já são ocupados por todo tipo de equipamento: lixeiras, postes, orelhões, caixas de correio, bancas de revista, mesas de bares, abrigos de ônibus, além de árvores, canteiros, carros, motos e lixo.)

Nos primeiros anos da sua existência, Belo Horizonte chamava atenção pelos grandes espaços. Uma cidade projetada, construída no nada, tinha de possuir muitos espaços vazios, mas o próprio projeto urbanístico previu avenidas e ruas largas, passeios amplos. O Parque Municipal, localizado bem no centro da cidade, era um espaço privilegiado, e a cidade tinha também muitas praças.

Passados 113 anos, Belo Horizonte viu desaparecerem, um a um, quase todos os seus espaços públicos. Com eles desapareceram as áreas verdes e o clima salubérrimo que fizeram a fama da "cidade jardim", os passarinhos, os pequenos animais. Só para lembrar, neste ano em que se comemora o centenário de nascimento do compositor Noel Rosa: o "Poeta da Vila" foi um dos muitos brasileiros – e até estrangeiros – que passaram temporadas em Belo Horizonte em busca de cura para a tuberculose e outras doenças.

Este sítio era, por natureza, um lugar especial, com altitude de 850 metros, temperaturas amenas, protegido pela Serra do Curral e cortado por inúmeros ribeirões e córregos. Por isso, e pela localização central no estado, foi escolhido para ser sede da nova capital de Minas Gerais, que a recém-nascida República decidiu construir.

A República foi proclamada em 1889, em 1891 os constituinte mineiros aprovaram a lei de mudança da capital, em 1893 a construção começou, em 1897 a Cidade de Minas – como foi inicialmente chamada – estava pronta para ser ocupada. Os republicanos queriam construir uma cidade moderna, totalmente diferente da colonial Ouro Preto, antiga capital do estado.

Iniciativa louvável, talvez, o projeto da nova capital foi um equívoco urbanístico que se perpetuou em novos erros até chegar à cidade cada vez menos habitável dos dias atuais, e totalmente descaracterizada em relação ao projeto original, muito mais ainda da sua natureza cheia de qualidades. O engenheiro Aarão Reis desenhou a planta da cidade ignorando topografia e hidrografia. Belo Horizonte ganhou ladeiras e perdeu cursos d'água, transformados em canais de esgotos a céu aberto, mais tarde capeados.

O planejamento de linhas retas e grandes quarteirões ficou restrito à área urbana, compreendida pela Avenida do Contorno, ainda hoje a região mais civilizada da cidade. Todo o restante – zonas suburbana e rural – foi deixado à própria sorte, sem ruas, sem luz, sem água, sem esgoto, sem transporte. Não à toa: a zona urbana foi prevista para os ricos, a suburbana para os pobres.

Construída por um engenheiro, Belo Horizonte continuaria sendo a cidade das construtoras. Elas foram redesenhando o espaço urbano, sem planejamento, seguindo interesses privados, alheias aos interesses coletivos, tendo os políticos sempre a seu serviço, como acontece ainda hoje. Nem mesmo a região nobre da cidade ficou livre dessa distorção: o Parque Municipal perdeu cerca de dois terços da sua área original, o enorme quarteirão do zoológico foi entregue ao Minas Tênis Clube, para citar dois exemplos. Hoje, além de acanhado para uma metrópole, o parque é cercado; a antiga área verde do Minas foi ocupada por prédios.

O único melhoramento realmente importante recebido pela cidade desde sua construção foi a Pampulha. Construída por Juscelino Kubitschek, nos anos 1940, foi um marco da arquitetura moderna brasileira e reunia as condições para se tornar a área de lazer por excelência da capital. Como tudo em Belo Horizonte, porém, degenerou: a lagoa virou um grande esgoto e, assoreada, perdeu grande parte da sua área, além dos peixes. Seu entorno foi ocupado por particulares, a estreita avenida que a contorna é inadequada ao trânsito, praticamente nada foi feito desde JK, a não ser um parque sobre o lixo jogado na lagoa.

A partir dos anos 70, a capital mineira passou por uma grande expansão que acabou de descaracterizá-la e lhe deu a inóspita conformação atual. Novos bairros fizeram desaparecer a zona rural do município, enquanto favelas e vilas prosperavam na zona suburbana e os edifícios substituíam as casas na zona urbana.

O principal parque da cidade, o Mangabeiras, uma bela área de floresta junto à Serra do Curral, é o retrato do descaso com o espaço público pela administração municipal: mal cuidado, isolado da cidade, vem sendo cercado por ocupações irregulares e corre os mesmos riscos que vitimaram o Parque Municipal. O Mangabeiras não possui trilhas nem passeios, os visitantes o percorrem usando as estradinhas usadas pelo inadequado ônibus interno.

Pior do que o descaso e a omissão diante do gradativo desaparecimento dos espaços públicos, condição que torna a cidade cada vez pior para a convivência, é a política adotada pela atual administração, que privatiza as áreas públicas. Um exemplo é criação da "vila da Copa". Visando à hospedagem de atletas na Copa do Mundo de 2014, durante dois meses, a prefeitura promove a extinção da última área verde da cidade, a Mata do Isidoro, na zona norte do município. Mais grave ainda é a política de aluguel das praças públicas, como a Praça da Estação. Desde maio deste ano, ela só pode ser ocupada mediante pagamento de caro aluguel à prefeitura. Nessas ocasiões, como a "Arena Fifa-Coca-Cola", que funcionou durante a Copa do Mundo da África do Sul, a área fica cercada e a população não tem acesso a ela.

Quando as futuras gerações não suportarem mais permanecerem presas dentro de apartamentos e shoppings, precisarão derrubar cercas e implodir os arranha-céus erguidos pelas gerações antecessoras, para criar espaços públicos, parques, praças. Talvez corrijam os erros cometidos por Aarão Reis e os engenheiros que o sucederam, reabrindo cursos d'água, despoluindo-os, margenado-os com áreas verdes. Tomara que nessa época a Pampulha não tenha ainda secado, pássaros, peixes e pequenos animas não tenham sido extintos.

Nenhum comentário: