No dia 3 de outubro, a caminho da urna eleitoral, passei pelo campo do pequeno Inconfidência, clube modesto do bairro Concórdia. Cresci jogando futebol num campo semelhante, o do Pitangui, na Lagoinha. Fico pensando que futuro aguarda esses dois espaços públicos remanescentes da fundação da cidade. Não sei como surgiram, mas o certo é que isso aconteceu numa época em que o espaço não era escasso e cobiçado pela indústria da construção civil, como é hoje. O Pitangui ocupou área em torno de uma pedreira desativada. Acredito que outros campos de futebol, o principal lazer popular, tenham surgido de forma semelhante. O Inconfidência, hoje, está cercado de construções, como uma ilha. Construções horizontais, felizmente; a inexistência de edifícios no Concórdia é provavelmente a garantia de existência do clube.
O fato é que a expansão imobiliária se dá ocupando espaços vazios e substituindo construções horizontais por construções verticais. Atualmente, qualquer terreno vazio em Belo Horizonte corre risco de ser ocupado e qualquer casa corre o risco de ser derrubada para dar lugar a um arranha-céu. A ocupação espacial da capital mineira se aproxima de 100%, não escapam sequer os morros mais íngremes. Talvez chegaremos ao dia em que os últimos espaços vazios serão ruas e avenidas – lotadas de carros. (Os passeios já são ocupados por todo tipo de equipamento: lixeiras, postes, orelhões, caixas de correio, bancas de revista, mesas de bares, abrigos de ônibus, além de árvores, canteiros, carros, motos e lixo.)
Nos primeiros anos da sua existência, Belo Horizonte chamava atenção pelos grandes espaços. Uma cidade projetada, construída no nada, tinha de possuir muitos espaços vazios, mas o próprio projeto urbanístico previu avenidas e ruas largas, passeios amplos. O Parque Municipal, localizado bem no centro da cidade, era um espaço privilegiado, e a cidade tinha também muitas praças.
Passados 113 anos, Belo Horizonte viu desaparecerem, um a um, quase todos os seus espaços públicos. Com eles desapareceram as áreas verdes e o clima salubérrimo que fizeram a fama da "cidade jardim", os passarinhos, os pequenos animais. Só para lembrar, neste ano em que se comemora o centenário de nascimento do compositor Noel Rosa: o "Poeta da Vila" foi um dos muitos brasileiros – e até estrangeiros – que passaram temporadas em Belo Horizonte em busca de cura para a tuberculose e outras doenças.
Este sítio era, por natureza, um lugar especial, com altitude de 850 metros, temperaturas amenas, protegido pela Serra do Curral e cortado por inúmeros ribeirões e córregos. Por isso, e pela localização central no estado, foi escolhido para ser sede da nova capital de Minas Gerais, que a recém-nascida República decidiu construir.
A República foi proclamada em 1889, em 1891 os constituinte mineiros aprovaram a lei de mudança da capital, em 1893 a construção começou, em 1897 a Cidade de Minas – como foi inicialmente chamada – estava pronta para ser ocupada. Os republicanos queriam construir uma cidade moderna, totalmente diferente da colonial Ouro Preto, antiga capital do estado.
Iniciativa louvável, talvez, o projeto da nova capital foi um equívoco urbanístico que se perpetuou em novos erros até chegar à cidade cada vez menos habitável dos dias atuais, e totalmente descaracterizada em relação ao projeto original, muito mais ainda da sua natureza cheia de qualidades. O engenheiro Aarão Reis desenhou a planta da cidade ignorando topografia e hidrografia. Belo Horizonte ganhou ladeiras e perdeu cursos d'água, transformados em canais de esgotos a céu aberto, mais tarde capeados.
O planejamento de linhas retas e grandes quarteirões ficou restrito à área urbana, compreendida pela Avenida do Contorno, ainda hoje a região mais civilizada da cidade. Todo o restante – zonas suburbana e rural – foi deixado à própria sorte, sem ruas, sem luz, sem água, sem esgoto, sem transporte. Não à toa: a zona urbana foi prevista para os ricos, a suburbana para os pobres.
Construída por um engenheiro, Belo Horizonte continuaria sendo a cidade das construtoras. Elas foram redesenhando o espaço urbano, sem planejamento, seguindo interesses privados, alheias aos interesses coletivos, tendo os políticos sempre a seu serviço, como acontece ainda hoje. Nem mesmo a região nobre da cidade ficou livre dessa distorção: o Parque Municipal perdeu cerca de dois terços da sua área original, o enorme quarteirão do zoológico foi entregue ao Minas Tênis Clube, para citar dois exemplos. Hoje, além de acanhado para uma metrópole, o parque é cercado; a antiga área verde do Minas foi ocupada por prédios.
O único melhoramento realmente importante recebido pela cidade desde sua construção foi a Pampulha. Construída por Juscelino Kubitschek, nos anos 1940, foi um marco da arquitetura moderna brasileira e reunia as condições para se tornar a área de lazer por excelência da capital. Como tudo em Belo Horizonte, porém, degenerou: a lagoa virou um grande esgoto e, assoreada, perdeu grande parte da sua área, além dos peixes. Seu entorno foi ocupado por particulares, a estreita avenida que a contorna é inadequada ao trânsito, praticamente nada foi feito desde JK, a não ser um parque sobre o lixo jogado na lagoa.
A partir dos anos 70, a capital mineira passou por uma grande expansão que acabou de descaracterizá-la e lhe deu a inóspita conformação atual. Novos bairros fizeram desaparecer a zona rural do município, enquanto favelas e vilas prosperavam na zona suburbana e os edifícios substituíam as casas na zona urbana.
O principal parque da cidade, o Mangabeiras, uma bela área de floresta junto à Serra do Curral, é o retrato do descaso com o espaço público pela administração municipal: mal cuidado, isolado da cidade, vem sendo cercado por ocupações irregulares e corre os mesmos riscos que vitimaram o Parque Municipal. O Mangabeiras não possui trilhas nem passeios, os visitantes o percorrem usando as estradinhas usadas pelo inadequado ônibus interno.
Pior do que o descaso e a omissão diante do gradativo desaparecimento dos espaços públicos, condição que torna a cidade cada vez pior para a convivência, é a política adotada pela atual administração, que privatiza as áreas públicas. Um exemplo é criação da "vila da Copa". Visando à hospedagem de atletas na Copa do Mundo de 2014, durante dois meses, a prefeitura promove a extinção da última área verde da cidade, a Mata do Isidoro, na zona norte do município. Mais grave ainda é a política de aluguel das praças públicas, como a Praça da Estação. Desde maio deste ano, ela só pode ser ocupada mediante pagamento de caro aluguel à prefeitura. Nessas ocasiões, como a "Arena Fifa-Coca-Cola", que funcionou durante a Copa do Mundo da África do Sul, a área fica cercada e a população não tem acesso a ela.
Quando as futuras gerações não suportarem mais permanecerem presas dentro de apartamentos e shoppings, precisarão derrubar cercas e implodir os arranha-céus erguidos pelas gerações antecessoras, para criar espaços públicos, parques, praças. Talvez corrijam os erros cometidos por Aarão Reis e os engenheiros que o sucederam, reabrindo cursos d'água, despoluindo-os, margenado-os com áreas verdes. Tomara que nessa época a Pampulha não tenha ainda secado, pássaros, peixes e pequenos animas não tenham sido extintos.
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