segunda-feira, 4 de outubro de 2010

O dia seguinte: segundo turno, a sabedoria de Lula e a sabedoria popular

O fato de Dilma não ter sido eleita no primeiro turno cria uma situação desagradável, por vários motiviso. Nas últimas semanas as pesquisas indicavam que seria e até o último dia isso era provável. Esse prolongamento da campanha será um esforço que parecia descartado. O segundo turno foi provocado pelas calúnias da "grande imprensa", que assumiu o papel de partido político, com características fascistóides. Isto significa que essa velha mídia ainda tem influência importante na população.

Um candidato que parecia morto ressurge das cinzas e segundo turno é uma nova eleição, muitas vezes os resultados são revertidos. Mesmo perdendo, Serra e os tucanos ganharam um sopro de vida novo, que só poderá ser apagado com uma vitória acachapante de Dilma, como, por exemplo, o candidato da direita obter votação igual ou inferior à do primeiro turno.

E aí entra Marina, a surpresa eleitoral, que cresceu na reta final (venceu em Belo Horizonte!), obteve 19% dos votos válidos e forçou a realização do segundo turno. A candidata verde, que representaria uma renovação da política brasileira, uma alternativa mais avançada, no qual o ambiente é o centro do desenvolvimento, assumiu posição ambigua na campanha, fez coro com a direita nas denúncias caluniosas contra Dilma e não deixou claro, no discurso da "vitória" (3º lugar), ontem, qual será sua posição no segundo turno. Ela, que foi ministra do governo Lula e militante petista desde a fundação. Enquanto isso, o presidente do seu partido, que é um balaio de gatos e hienas, declarou apoio a Serra.

Teremos mais quatro semanas de campanha caluniosa promovida pela velha mídia e demotucanos, reforçada, agora, pelos "verdes".

Para quem tem olhos de ver, tudo isso indica necessidade de reformas profundas na democracia brasileira, as quais não fazem parte, porém, do modelo Lula de governar. Farão do possível governo Dilma? Uma dessas reformas é justamente na comunicação.

Como disse Maria Rita Kehl, o embate em curso no país faz parte da luta de classes que o sistema diz não existir e o governo Lula procura ignorar. Quem promove a luta de classes são os capitalistas, são as classes dominantes; seu exército é formado pelos generais demotucanos, pelos tenentes da velha mídia, por soldados jornalistas e artistas globais.

Enquanto as classes dominadas obedecem passivas, a luta de classes não aparece, permanece latente, na forma de sofrimentos que os trabalhadores engolem no dia-a-dia. A luta de classes só emerge quando os oprimidos resistem e reagem. Ou então, quando o governo representa os interesses das massas trabalhadoras ou pelo menos atende a demandas populares que os capitalistas e reacionários não aceitam, como acontece agora.

A guerra da comunicação e o governo Lula

A democracia burguesa é uma ficção, as elites só a aceitam quando seus interesses não são contrariados. Ao menor sinal de inversão nas prioridades sociais, do capital para o trabalho, elas reagem e apelam para o golpe. Seu argumento é sempre o mesmo, por incrível que pareça: a defesa de democracia. É em nome da democracia que acabam com a democracia, como aconteceu em 1964. Isso é luta de classes.

É o que se vê hoje no Brasil e em toda a América Latina, de diferentes formas. A novidade é que os militares não se mobilizam como exército da burguesia, como em outros tempos. No seu lugar, as elites aprenderam a manipular outra força que controlam de forma mais clara: os meios de comunicação – jornais, revistas e, especialmente, emissoras de televisão e rádio. Contra seu poderio na comunicação surgiu uma força imprevista: a internet. A web, por suas características democráticas intrínsecas, é uma arma de comunicação popular, um serviço de contrainformação das classes oprimidas.

A comunicação tornou-se uma trincheira decisiva da luta de classes. De um lado, os governos populares precisam democratizar a velha mídia para reduzir o poder de propaganda de uma minoria à sua real expressão social. De outro, as elites tentam encontrar formas de controlar a expressão livre na web, que dá às massas populares um poder que jamais tiveram antes.

Se a internet parece até agora incontrolável, uma vez que expressa o avanço tecnológico da humanidade, também a velha mídia antidemocrática e concentrada parece uma fortaleza inexpugnável. Uma coisa remete a outra: o governo popular atua para democratizar a comunicação, favorecendo a expansão da internet e a comunicação pública, pulverizando a distribuição de verba publicitária que sustenta a velha mídia; em contraposição, governos de direita restringem a expansão da internet, criam legislações de controle, favorecem a velha mídia, distribuem concessões para seus apaniguados.

Na comunicação, como nas políticas sociais em geral, o governo Lula seguiu uma linha muito clara: ser ao mesmo tempo o melhor governo para o capitalismo e fazer o máximo possível pelos trabalhadores. Afinal, o partido de Lula, o partido que está no poder, é o PT, Partido dos Trabalhadores.

A propósito, convém ao governo que o PT seja apenas PT, sem adjetivo, seja revolucionário, seja comunista, seja socialista ou mesmo social-democrata. Os adjetivos pululam no Brasil em inúmeras siglas: socialistas, verdes, social-democratas, democratas, todas controladas por empresários e direitistas, sem que incomodem as elites. Tivesse o PT um adjetivo, estaria condenado desde sempre. Mas o PT é um partido substantivo – a escolha do nome, décadas atrás, mostrou-se acertada, quando o partido chegou ao poder. Na luta de classes, o PT escolheu um lado, o lado dos trabalhadores.

Nunca, no entanto, deixou claro o que faria no poder. Durante mais de vinte anos, o PT foi um partido vocacionado para a oposição, até 2002, quando Lula e os seus decidiram conquistar o poder, depois de três derrotas eleitorais consecutivas. Fizeram então uma nova opção: além de não levantar bandeira socialista, o PT não governaria apenas para os trabalhadores. Embora tenha participado ativamente da luta de classes que provocou seu nascimento, no final de década de 1979, depois da anistia e do fim do bipartidarismo, sempre a favor dos trabalhadores, no poder, o PT deveria governar para todos os brasileiros, incluindo aí os capitalistas.

É uma mudança considerável, porque, no sistema é capitalista, governar é, antes de tudo, governar para o capital. O PT tornou-se, assim, um partido comprometido com a ordem burguesa.

O PT (Lula é tão PT quanto Getúlio foi PTB, ou seja, um não vive sem o outro, um não chega ao poder sem o outro) assumiu compromisso com as políticas que mantêm o capitalismo vivo, com a propriedade privada, com o lucro, com a dominação de classe, com as instituições do sistema, inclusive a democracia representativa. Por essa lógica, todas as melhorias na vida dos trabalhadores são feitas de dentro para fora, do alto para baixo, do governo para a sociedade, dentro das regras do sistema. Em 2002, o PT se tornou o partido mais avançado do capitalismo brasileiro.

É como se Lula dissesse às elites: "vamos governar melhor do que os seus partidos, vocês terão lucros maiores no nosso governo, as políticas sociais e a distribuição de renda serão boas também para vocês, pois tornarão o sistema mais forte. Tudo que nós queremos e vamos fazer é um governo capitalista melhor, é tornar o sistema capitalista melhor para todos".

Esse modelo político é um modelo de equilíbrio e negociação permanente – campo no qual Lula é craque. Como dirigente sindical que nunca pertenceu a nenhum grupo revolucionário, Lula se formou nas negociações entre correntes políticas e com os patrões. Sua qualidade pessoal é o carisma que o possibilita se equilibrar entre adversários e obter resultados satisfatórios para todos, nos conflitos. O que ele fez no sindicato e no partido, repetiu no governo.

O maior mérito de Lula foi não trair os trabalhadores, não esquecer sua origem social, não mudar de lado, não se vender às elites e legar à história o exemplo de um homem do povo que foi capaz de dirigir o país com mais do que competência: com sabedoria.

Dessa forma, numa nação que não se formou de uma vez e que tem problemas de identidade e autoestima, Lula entra para a categoria de fundadores do Brasil, uma galeria seleta, da qual fazem parte José Bonifácio, Pedro I, Pedro II e Getúlio Vargas. Seu legado é ter mostrado que é possível governar para todos, que é possível conciliar a extensão dos direitos de cidadania aos trabalhadores com o respeito à ordem democrática, que é possível, enfim, conviver com a luta de classes.

Lula é o presidente que finalmente deu ao brasileiro comum o status de cidadão. É o nosso presidente democrata por excelência. Nem a aprovação de mais de 80% da população e o reconhecimento internacional provocaram nele tentações autoritárias. Exercitou a humildade e resistiu às provocações cotidianas de uma imprensa raivosa e reacionária, que, acostumada ao mandonismo, não vê que o país está mudando.

Para ajudar a eleger Dilma no segundo turno, Lula deverá exercitar mais uma vez o seu próprio exemplo, deverá ensinar mais uma vez a sua própria lição. Lição de firmeza com tolerância, lição de sinceridade e integridade, lição de conciliação e negociação, lição de sabedoria. Muito mais do que por seus méritos, Dilma deverá ser eleita como uma demonstração de confiança do eleitor em Lula, o presidente que governou para todos os brasileiros e que é aprovado por quase todos.

Lula não corre nenhum risco nesta eleição. Pode-se dizer que todo o risco cabe a Dilma, que terá de demonstrar no segundo turno – mais do que no primeiro – que tem mérito pessoal. Ainda que Serra se mostre "melhor preparado" na propaganda e em debates, será esse um motivo suficiente para a maioria do eleitorado optar pelo candidato da direita? Não. Seria como aquele programa de televisão em que o sujeito isolado numa cabina tem de decidir entre duas opções que não vê, ouvindo apenas a pergunta do locutor: "você troca uma candidata que promete seguir um governo que você aprova por um candidato que promete fazer melhor, mas participou de um governo que foi pior?"

Acredito que no segundo turno se manifestará a sabedoria popular, como se manifestou em 2006, como se manifestou no primeiro turno em Minas Gerais. Uma sabedoria que desconfia de promessas e prefere a continuidade do que considera bom. Nem mesmo a campanha caluniosa da velha mídia será capaz de interferir nisso. Se Dilma for habilidosa, será capaz de usar as calúnias contra a própria imprensa, criando condições para avançar na democratização da comunicação, no seu governo.

Pesará na decisão popular certamente, as relações estabelecidas ao longo de oito anos entre a população e o governo Lula e suas lideranças locais. Lula poderá dizer: "ao decidir o seu voto, olhe em torno de você e compare as pessoas que estão do nosso lado e as pessoas que estão do outro lado, olhe nos seus olhos, veja em quem você confia". Melhor será se Dilma, como os grandes vencedores, surpreender, isto é, se for capaz de assumir as rédeas da campanha, se for capaz de fazer esse discurso ela mesma e provar ser uma herdeira à altura de Lula.

Caso Dilma perca a eleição, Lula poderá ser acusado de ter feito uma escolha ruim, de ter imposto sua candidata – algo semelhante ao que está acontecendo em Minas, hoje, depois da derrota do peemedebista Hélio Costa. Seria, no entanto, uma mancha passageira. O governo Serra teria de ser muito bom para obscurecer o impressionante êxito da Era Lula. Se assim for, melhor será, mas é improvável. A tendência é que seja tão nefasto, que Lula será logo lembrado com saudade.

Elevado à categoria de ídolo popular, Lula seria então o mais forte candidato à Presidência, em 2014. Em contrapartida, o governo da direita usaria os instrumentos à sua disposição (o poder, negociatas no parlamento e a velha mídia) para solapar as condições que possibilitariam sua volta ao poder. Trataria de criar casuísmos legais e golpismos de toda ordem, tais como uma emenda constitucional impedindo a eleição de um ex-presidente, devassa do governo Lula e amplificação de possíveis irregularidades, criação de clima de confronto, insuflação das forças armadas etc.

O governo Dilma e a democratização do país

Num possível governo Serra, a luta de classes se tornaria mais renhida. Sua derrota seria muito melhor para os trabalhadores, para os país, para o próprio capitalismo. Jogaria a direita fascistóide no lixo da história, abriria espaço para uma direita reciclada, daria ao governo Dilma força para realizar reformas democráticas necessárias ao próprio sistema, a começar pela comunicação. É preciso desconcentrar o controle de concessões da televisão e rádio, é preciso diversificar os tipos de concessionários, é preciso ampliar a participação pública na comunicação.

A democracia representativa burguesa é um sistema repleto de falhas antidemocráticas. O mais exato mesmo seria dizer antidemocracia representativa. O sistema político atual gerou partidos de aluguel, cuja atuação se limita à troca de favores com o governo. Deputados, senadores e vereadores não representam seus eleitores, estão a serviço dos seus interesses e de lobbies que financiam sua eleição – isso fica claro na campanha eleitoral, único momento em que esses políticos nos procuram.

É preciso democratizar a representação parlamentar, é preciso que a disputa eleitoral seja entre partidos e seus programas; que ao votar em deputados, senadores e vereadores, o eleitor vote em partidos e que cada partido faça internamente sua lista de representantes. Que a participação popular seja expandida em plebiscitos e consultas via internet. Que a administração seja descentralizada em conselhos e assembleias, de forma que o cidadão opine, discuta e vote nas decisões que afetam sua vida.

É preciso democratizar a justiça, que só funciona para os ricos. Quem pode pagar bons e caros advogados, se livra da cadeia, protelando decisões, cometa o crime que cometer. Pobres vão presos mesmo que sejam inocentes. O sentimento geral é de impunidade e injustiça.

É preciso democratizar a polícia. Nossas polícias são as mesmas da ditadura, autoritárias, inadaptadas à democracia. São ineficiente e corrompidas, confundindo-se com os bandidos que devem combater.

É preciso democratizar a saúde, universalizando o atendimento de qualidade para todos; é preciso democratizar o transporte, privilegiando os meios coletivos rápidos, baratos e confortáveis.

É preciso, mais que tudo, democratizar a educação, implantando ensino fundamental público de qualidade em tempo integral. Em educação, qualidade significa ter os melhores (e bem pagos) educadores, significa espaço físico privilegiado, significa oferecimento de esportes, artes e ofícios, significa atendimento médico, odontológico e psicológico, significa alimentação. É preciso democratizar o ensino para todas as crianças e adolescentes tenham acesso a educação de qualidade, independentemente da sua origem social, e para que o Brasil do futuro tenha brasileiros melhores do que nos fomos.

É preciso democratizar a economia e colocar o ambiente no centro de todas as decisões. Os recursos naturais são finitos, o capitalismo destrói matas, cursos d'água, espécies animais, contamina a terra e polui o ar. Não podemos consumir o planeta e deixar o lixo de herança para nossos filhos e netos, é preciso conservar a natureza e recuperá-la para as futuras gerações.

Todas essas bandeiras são mais ou menos consenso nacional, o que falta é colocá-las em prática. O governo Lula fez alguma coisa, mas destacou-se mesmo foi em diminuir a miséria e distribuir renda. Por mais que seja sua continuação, o governo Dilma não será mais o governo Lula. A começar pela própria presidente e seu vice. Dilma não é um operário semianalfabeto, como Lula; Michel Temer não é José Alencar. Em 2002, Lula fez a aliança simbólica entre um trabalhador e um empresário. A aliança de Dilma nada tem de simbólica, é uma aliança político-partidária, entre o PT e o PMDB.

Para além das qualidades pessoais que Lula conhece, ou não a teria escolhido, e que ela deve começar a mostrar já no segundo turno, Dilma precisará recorrer à reforma política. Urge termos instituições (partidos, parlamento etc.) que façam o país funcionar bem, sem depender tanto das habilidades e do carisma do seu presidente. Não teremos outro Lula, mas podemos ter governantes sérios, honestos, bem intencionados e competentes. A política não precisa continuar sendo o reino dos espertalhões e dos fascistóides, ela precisa atrair gente de bem e precisa conquistar os cidadãos – que são agora todos os brasileiros.

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