sexta-feira, 1 de outubro de 2010

'Em teu nome': Liberdades democráticas X Liberdades para trabalhadores e oprimidos

Foi preciso se passarem mais de trinta anos e ver o filme Em teu nome, para que eu começasse a entender por que a bandeira de luta por "liberdades democráticas" prevaleceu nos movimentos que levaram ao fim da ditadura militar (1964-1985). Essa ótica "democratista" nunca me tinha sido compreensível antes, a mim, que observei a política do ponto de vista da revolução proletária.

Explico: quando entrei na universidade, em 1975, ingressei numa organização clandestina de esquerda que propunha a revolução socialista liderada pelo proletariado industrial. Essa organização (P.O. – Política Operária, herdeira da histórica Polop, a primeira dissidência do PCB – Partido Comunista Brasileiro, em 1961) sustentava que a ditadura era a forma de dominação estrutural do capitalismo na América Latina, que a democracia representativa não podia se manter numa sociedade tão desigual quanto a nossa; portanto, o regime militar só poderia ser derrotado, de forma duradoura, por uma revolução operária socialista.

Dessa crença derivavam as bandeiras da P.O.: por liberdade de organização e manifestação para trabalhadores e oprimidos, por um governo dos trabalhadores.

Segundo a mesma análise, o movimento estudantil era expressão da politização das classes médias, classes que não têm projeto político próprio e que se dividem em facções reacionária, reformista e revolucionária. A bandeira "pelas liberdades democráticas" jogava as massas estudantis nos braços da burguesia nacional que desejava a substituição da ditadura militar pela democracia representativa, proposta, como se viu, sem chance de sucesso no Brasil.

Para aliar o movimento estudantil, ou parte dele, à luta revolucionária do proletariado era preciso lutar contra a política educacional do governo (PEG), tão estrutural quanto a ditadura; ao perceber que a educação que desejavam era impossível na sociedade capitalista, os estudantes iriam aderir à revolução, colocando-se como força auxiliar do proletariado. Por levantar essa bandeira, éramos chamados, pejorativamente, de peguistas.

Estas ideias são tão simples quanto razoáveis, e atraentes para um jovem de 19 anos que estava em conflito com a sociedade, carente de pertencimento a um grupo e que descobria a opressão e a exploração, como eu naquele tempo. Embora minha participação na P.O. (é preciso dizer que a organização tinha métodos de segurança tão rígidos que eu vim a saber seu nome nas vésperas do fim) tenha durado menos de três anos, esse ponto de vista que opunha revolucionários a reformistas se perpetuou em mim; nunca me aproximei dos "democratistas".

A proposta revolucionária da P.O. dissolveu-se no ar com a própria organização, em 1977. Naquele ano, em que o movimento estudantil deu um salto de qualidade, passando das reuniões de "lideranças" sem liderados, para assembleias massivas, atos públicos, greves e passeatas, numa velocidade e numa extensão surpreendentes, a P.O. dividiu-se em duas.

Uma parte (majoritária na direção e supostamente minoritária na base) manteve sua linha política; a outra (minoritária na direção e supostamente majoritária na base) aderiu à bandeira das liberdades democráticas, aproximou-se das demais tendências; nos meses e anos seguintes iria se dissolver, afinal, e aderir ao velho PCB (alguns militantes fizeram carreira política no partidão e no seu sucessor, o PPS).

Incapaz de agir, diante da nova realidade política, a suposta maioria (na direção) acabou por se dissolver por completo, sem deixar vestígios.

Mas deixou alguns órfãos, como eu e colegas estudantes, que buscamos outros caminhos: adesão à aliança AP-MR8 (Ação Popular e Movimento Revolucionário 8 de outubro), na época a mais forte e mais conciliadora das tendências estudantis; adesão ao MEP (Movimento de Emancipação do Proletariado), dissidência anterior e mais sensata da P.O.; adesão à Libelu (Liberdade e Luta, expressão estudantil dos trotskistas do comitê de reorganização da 4ª Internacional), cujo discurso revolucionário se aproximava do da P.O.; "adesão" (entre aspas porque desorganizada) aos militantes libertários críticos dos métodos leninistas e stalinistas da esquerda.

Nos meus descaminhos políticos, nunca mais voltei a integrar qualquer tipo de organização política: nenhuma outra organização de esquerda, nem diretoria de entidade estudantil, nem sindicato, nem partido político; mais tarde, a profissão de jornalista justificaria certa "imparcialidade". Não participei da fundação do PT, não me filiei a ele, fui crítico da sua proposta – era favorável ao fortalecimento de sindicatos, associações e movimentos, independentes de partidos, e não conseguia compreender como um partido de trabalhadores podia não carregar o rótulo de revolucionário ou socialista ou comunista.

Agora começo a compreender. Pensar sobre o significado da sucessão de Lula por Dilma me ajudou nisso, ver Em teu nome (o título é um enigma: em nome de quem? Da sociedade?) também.

A geração 68, da qual Dilma faz parte, foi uma geração de jovens idealistas sacrificados. É a geração que o filme retrata. Acuados pelo recrudescimento (palavra que só se usava nos discursos esquerdistas da época) da ditadura militar, a partir do AI-5, e iludidos por sua grande força anterior, nas passeatas de 1968, aqueles meninos que tinham em torno de vinte anos de idade (a mesma idade que eu tinha quando entrei na P.O.), pegaram em armas para tentar derrubar um governo que tinha milhares de soldados e oficiais armados e treinados. Ou seja, queriam derrotar o inimigo no seu ponto forte, no confronto mais desfavorável para eles.

Não contavam com a organização e a solidariedade dos trabalhadores para apoiá-los e protegê-los. Ao contrário: à custa da censura à imprensa, de muita propaganda, do "milagre econômico" e até do futebol (a conquista do tricampeonato na Copa do México), o regime militar atingia naqueles anos seu auge de popularidade.

Foram dizimados como moscas, com requintes de crueldade: presos, torturados das formas mais bárbaras possíveis, assassinados. Os corpos de muitos mortos desapareceram. Os que tiveram mais sorte sobreviveram, no exílio, na prisão ou na clandestinidade. Durante alguns anos, até que a bandeira da anistia os reuniu novamente, o que restou – como mostra o filme – foram as vidas individuais, duras, cotidianas, sem perspectivas, marcadas pelas lembranças dos sofrimentos e pelas derrotas políticas, pela paranoia, pela ausência de laços sociais, pelos ideais destroçados.

É esse o ambiente em que floresce a bandeira das "liberdades democráticas". As "liberdades democráticas" são o projeto político dos derrotados, dos sofridos, dos dispersos, dos sobreviventes. É uma bandeira que nada tem a ver com as bandeiras reformistas da esquerda pré-64 e muito menos com as propostas revolucionárias pós-64.

Apenas jovens que não viveram a ascensão e queda da geração 68 poderiam assumir as bandeiras revolucionárias da P.O. Talvez pudéssemos ser mais numerosos, mas outros foram influenciados pelas organizações "democratistas". Mesmo os "peguistas" não sobreviveram ao ressurgimento do movimento de massas, que veio primeiro com os estudante, em 77, para no ano seguinte atingir o proletariado, nas greves do ABC paulista.

É em 78 que surgem Lula e seu surpreendentemente massivo movimento operário, mas eles nada querem saber de revolução nem de socialismo, nem mesmo de política. O que querem são salário e outras reivindicações "econômicas". Não é à toa que, ao nascer, dois anos depois, o PT tem esse nome substantivo, sem adjetivo – nem socialista, nem comunista, nem revolucionário, apenas Partido dos Trabalhadores.

Ao contrário do que pensavam os dirigentes da P.O., a bandeira das "liberdades democráticas" é bem aceita pelos operários grevistas, assim como tinha sido aceita pelos estudantes. Qualquer reunião, qualquer manifestação, qualquer greve coloca em questão a liberdade: liberdade de organização, liberdade de manifestação, liberdade de expressão – liberdades democráticas. Trabalhadores e estudantes que reivindicam querem liberdade, assim como exilados, presos e clandestinos também a querem.

As "liberdades democráticas" unem as gerações de 77 e 68. Quem perdeu em 64 e 68 quer a volta das liberdades, quem luta em 77 e 78 quer liberdade. Usada no plural e acompanhada do adjetivo "democráticas", a liberdade se torna um projeto político mais amplo. É efetivamente um projeto político burguês, mas, ao contrário do que pensavam os intelectuais da P.O., é um projeto que une, prospera, ganha apoio das massas e simpatia de (quase) toda a sociedade.

Mais: será um projeto viável, duradouro. O regime militar vai abrir, com predomínio dos moderados sobre os "duros", dos profissionais sobre os ideológicos. As corporações preferirão, majoritariamente, voltar aos quartéis, deixar a política aos civis – tentarão, é claro, que esses civis sejam os seus civis. A ditadura terá fim, uma nova Constituição será elaborada, o presidente voltará a ser eleito. Partidos políticos serão criados, inclusive vários partidos socialistas, comunistas, operários e revolucionários.

Passados 25 anos do fim do regime militar, pode-se afirmar que a democracia representativa burguesa se estabeleceu no país. Já temos mais tempo de democracia do que tivemos de ditadura. Estamos elegendo pela sexta vez um presidente – provavelmente, a primeira mulher presidente. Antes dela, o voto da maioria da população levou ao poder por duas vezes consecutivas um operário.

De certa forma, podemos dizer que a geração 68 foi um interregno radical entre duas fases democráticas da esquerda. A esquerda brasileira nunca foi revolucionária, nunca teve sucesso no confronto nem na luta armada. Os episódios de 1935 – a "Intentona Comunista", uma quartelada imbecil do PCB stalinista – e da "guerrilha" pós-64 demonstram isso. Os prejuízos que ambos provocaram são muito maiores e mais duradouros do que qualquer resultado positivo que pudessem ter obtido.

A luta armada é o campo em que a esquerda brasileira perde com certeza, pois os capitalistas têm o monopólio das armas e dos aparelhos policiais. O campo em que a esquerda consegue vitórias é o campo em que as massas participam: as eleições. Antes de 64, a esquerda venceu quase sempre, embora seus candidatos fossem homens das elites, como Getúlio, JK e Jango. Só uma vez, na eleição de 1960, a direita venceu, com Jânio.

Na "nova república", a esquerda apoiou a vitória de Tancredo (embora não tenha sido empossado e o presidente de fato tenha sido um herdeiro da ditadura, Sarney); quando a direita venceu, recorreu a um novo aventureiro, como antes Jânio, e que como este não terminou seu mandato: Collor.

No seu melhor resultado, a direita recorreu a um ex-esquerdista, FHC. Eleito e reeleito, o político do PSDB, partido cada vez mais parecido com a antiga UDN pré-64 (a direita que fazia discurso democrático, mas não vacilava em recorrer ao golpe quando perdia nas urnas, acusando a esquerda de tramar contra a democracia), conquistou o poder graças a um programa de estabilização econômica, não por suas bandeiras neoliberais.

"Liberdades democráticas" são efetivamente a bandeira da esquerda brasileira – ou das esquerdas brasileiras (hoje como ontem, sobrevivem grupelhos "revolucionários"). Ao contrário do que pensavam os intelectuais da P.O., aqui são os políticos de esquerda que sustentam a democracia burguesa, e os trabalhadores, quem os elege. Todas as melhorias políticas e sociais no capitalismo precisam ser feitas pela esquerda democrática.

No passado, o partido da esquerda foi o PTB, hoje é o PT. Hoje como ontem, ele faz aliança – ontem com o PSD, hoje com o PMDB. O grande líder de ontem foi Getúlio, que disparou um tiro no peito para não ser deposto por um golpe militar; seus herdeiros Jango e Brizola não foram capazes de se impor e negociar, de evitar golpes e implantar políticas populares. Lula, herdeiro histórico embora não ideológico de Getúlio, mostrou-se um político hábil e conciliador, carismático e forte. Apenas JK se compara a ele, no período pré-64.

Lula retomou a linha histórica da esquerda brasileira, reformista e democrática. Dilma, sobrevivente da geração 68, que compreendeu o valor das "liberdades democráticas", não será diferente.

Vivemos hoje uma época muito melhor do que aquela. Não há mais radicais na esquerda, só os há na direita, mas estes não sensibilizam as forças armadas, como sensibilizaram no passado. A esquerda conquista a sociedade com competência, ação democrática, políticas sociais justas e respeito às "liberdades democráticas". Lula diz que um operário não tinha direito de errar – a direita não toleraria isso. A geração de 68 também não tem esse direito – ao conquistar o poder pelo voto aos 60 anos, Dilma precisa demonstrar por que lutou por ele com armas quando tinha 20.

A direita, dos governos militares aos dos tucanos, demonstrou que não é capaz de fazer melhor. Seu último reduto são os veículos de comunicação tradicionais. Seu poder neles é desproporcional, por isso a comunicação precisa ser democratizada. Isso é o que a esquerda pode fazer pelo próprio capitalismo, assim como democratização da representação política – pelos trabalhadores, pode fazer muito mais: democratizar a educação, a saúde, o transporte, a moradia. Pelas futuras gerações, pode mudar a mentalidade social, pondo o ambiente no centro da economia.

O que Em teu nome mostra claramente, em 2010, é que a opção política da esquerda em 68 foi equivocada, que dizimou quase uma geração inteira e atrasou a democratização do país em muitos anos. A resistência cotidiana, a preservação de vidas e de quadros políticos, teriam trazido mais resultados. "Valeu a pena?", pergunta um repórter ao protagonista, no final do filme. A pergunta fica sem resposta. Se a sobrevivente Dilma fizer o que tem de fazer, terá valido a pena, apesar de tudo.

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