A insistência da direita brasileira em pregar na candidata do PT à Presidência da República, Dilma Rousseff, a pecha de defensora do aborto não é um fato novo. Serra copiou de Fernando Collor a calúnia que ajudou a elegê-lo em 1989. Naquela eleição, a acusação foi feita contra Lula e abalou o então candidato petista na reta final da campanha, segundo revelou seu assessor de imprensa, o jornalista Ricardo Kotscho, no livro de memórias "Do golpe ao Planalto, uma vida de repórter".
Seguindo a técnica de tentar pregar uma marca em Dilma, Serra bate sempre na mesma tecla: ela tem duas caras, ela mente. No entanto, foi ele quem, na campanha para prefeito de São Paulo em 2004, jurou e repetiu insistentemente, até registrou em cartório, a promessa de que não deixaria a prefeitura para se candidatar ao governo estadual, dois anos depois. O que aconteceu? Fez exatamente o que prometeu não fazer. Agora promete salário mínimo de R$ 600, estatizar os Correios (?) e ampliar a estatização (?)...
Serra e sua campanha aprimoraram em 2010 os métodos imorais que Collor usou com êxito. Em 1989, o então candidato do PRN pagou à ex-namorada de Lula para dizer no seu programa eleitoral que o candidato petista lhe pedira para fazer aborto, quando ficou grávida da filha Lurian. Esta, que na época tinha 17 anos e morava com a avó, mantinha ótimas relações com o pai e participava da sua campanha. No entanto, o depoimento calunioso da sua mãe foi usado e repetido para tirar votos de Lula. Pior do que isso: "acendeu a luz vermelha na campanha", nas palavras de Kotscho, pois o candidato sentiu profundamente o ataque à sua vida pessoal.
Foi em Belo Horizonte que Lula ficou sabendo da acusação feita por sua ex-namorada Míriam Cordeiro. Ele participava do último comício da campanha na cidade, no dia 12 de dezembro, aniversário da capital, quando o programa de Collor foi ao ar, à noite. Eu estava na redação do JB, vi o programa e fui enviado para ouvir Lula sobre o assunto. Quando cheguei ao palanque, Kotscho me pediu que relatasse em detalhes o que fora dito, pois nem ele nem Lula tinham visto o programa, embora o comando da campanha petista soubesse que o adversário preparava chumbo grosso.
O assunto, aliás, não era novidade: no começo do ano o próprio JB publicara matéria a respeito da filha de Lula fora do casamento (para bem da verdade, diga-se que Lula então era viúvo e não se casou com a mãe de Lurian, apesar da gravidez, no que fez muito bem, considerando o caráter que a ex-namorada veio a revelar), mas nada se falou sobre aborto e o assunto não rendeu. Às vésperas da eleição, Collor o desencavava, com o agravante da acusação que não fora feita antes. O que se pretendia era abalar a confiança do eleitor em Lula, transformado em criminoso e racista. Sim, porque Míriam Cordeiro também disse no programa que Lula lhe confessara que não gostava de pretos.
Kotscho foi a Lula, conversou com ele e o trouxe para entrevista coletiva, pois, a esta altura, todos os repórteres o aguardavam. Lembro que Lula falou pouco, não quis se estender sobre o assunto, não atacou o adversário. "Minha filha é resultado de um ato de amor, não de ódio", disse o candidato petista. "Esse história é velha, cabe à minha filha julgar. É muito baixo nível usar na campanha uma questão familiar."
Na primeira página, no dia seguinte, o JB definiu como "chocante" aquele uso do horário gratuito feito pela campanha de Collor. Já informava também que, segundo uma ex-assessora de Collor, Miriam Cordeiro havia recebido do irmão do candidato, Leopoldo Collor, também coordenador da sua campanha, NCz$ 200 mil (duzentos mil cruzados novos, valor equivalente hoje a cerca de 200 mil reais; o jornal custava NCz$ 5) para prestar o depoimento.
A cobertura do JB demonstra que o comportamento da "velha" mídia (ainda não havia a nova, a web) era equilibrado: se O Globo e a Globo apoiavam Collor, esse apoio não era unânime, como acontece hoje em relação a Serra (a exceção é a Rede Record). Quanta diferença do noticiário de hoje! O JB foi inclusive acusado de apoiar Lula. (Foi o canto do cisne do jornal: quando Collor tomou posse, o jornal, endividado com o governo federal, perdeu sua independência e qualidade.)
O golpe baixo de Collor tinha explicação: ele caía nas pesquisas e Lula subia. O candidato substituíra o comando da campanha, afastando jornalistas e políticos considerados "de esquerda" (Sebastião Nery, Belisa Ribeiro, Zélia Cardoso de Melo e Renan Calheiros), e o primeiro ato do seu irmão foi comprar o depoimento de Miriam Cordeiro. Naquele momento, parecia que Lula venceria a eleição.
Serra usa o mesmo tema e o mesmo método que foi usado contra Lula em 1989: calúnias, apelo aos temores da população, incitamento ao ódio. Provavelmente também o motivo é o mesmo: desespero, iminência da derrota. Psicanalistas observam que a palavra trai: Serra acusa sua adversária Dilma daquilo que ele próprio faz, fez, provavelmente fará.
Em 1989, Collor disseminou o medo de que Lula confiscasse a poupança e foi ele quem fez o confisco. A coleção de Serra inclui número maior de (auto)acusações – no caso do aborto, por exemplo, foi ele que, como ministro da Saúde, autorizou o SUS a realizar "procedimentos de esvaziamento da cavidade uterina". E cometeu ato falho ao discursar aos seus seguidores, depois do primeiro turno: "Eu nunca disse que sou contra o aborto porque sou a favor. Ou melhor...".
Seguindo a técnica de tentar pregar uma marca em Dilma, Serra bate sempre na mesma tecla: ela tem duas caras, ela mente. No entanto, foi ele quem, na campanha para prefeito de São Paulo em 2004, jurou e repetiu insistentemente, até registrou em cartório, a promessa de que não deixaria a prefeitura para se candidatar ao governo estadual, dois anos depois. O que aconteceu? Fez exatamente o que prometeu não fazer. Agora promete salário mínimo de R$ 600, estatizar os Correios (?) e ampliar a estatização (?)...
Este ano, Dilma reagiu, no debate da Band, domingo passado, elevando o tom, rebatendo acusações, acusando também. Em 1989, apesar do ataque sofrido, o candidato do PT decidiu manter sua campanha em alto nível e rejeitou propostas para revidar, usando o farto material disponível de denúncias contra Collor. Também recusou a sugestão de colocar no ar depoimento da filha, defendendo-o. "Não vou deixar que minha filha fale mal da mãe", argumentou.
No debate final, dois dias depois, Lula já se sentia derrotado, segundo Kotscho. A Globo usou seu mau desempenho com estardalhaço, reeditando as melhores cenas de Collor e as piores de Lula, para mostrar, no Jornal Nacional, que o primeiro ganhara o debate de goleada. A calúnia, a baixaria e a manipulação de informações venceram. Em 1989, Lula perdeu. O que acontecerá este ano?
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