O governo Lula e de forma mais intensa a campanha eleitoral deste ano fizeram desmoronar um paradigma no qual formaram-se os jornalistas brasileiros desde a década de 1970, o da imparcialidade da imprensa. A partir de agora, assim como cabe ao novo governo rever o atual modelo de comunicação no país, cabe aos cursos de jornalismo mudar as referências que regem a formação do profissional.
Não me refiro às mudanças tecnológicas, um fenômeno paralelo, que merece análise específica. Refiro-me ao modelo liberal de imprensa, que o jornalismo brasileiro segue, desde sempre talvez, mas predominantemente a partir do final dos anos 70. Nesse modelo os jornais pairam acima de facções, a serviço da sociedade, um serviço democrático, tão importante que foi chamado de quarto poder. O que os últimos anos mostram é que, entre nós, esse modelo não é um valor social de bases firmes e duradouras: a "grande" imprensa brasileira funciona de acordo com a conjuntura política.
É verdade, desde sempre também talvez, que a imparcialidade de imprensa é um mito, cuja duração se deve à crença geral de que teria mais valor do que outros. Vale aqui uma adaptação do que se diz sobre a democracia: "é o pior regime político, exceto os outros".
O modelo liberal é um modelo americano, não apenas de imprensa, mas de nação. Já o disse um historiador, trata-se de uma exceção na história mundial, embora tenha sido copiada por inúmeros países. A democracia americana talvez seja a jabuticaba dos EUA: uma preciosidade que só existe lá. E a imprensa americana faz parte dela. Não obstante os defeitos da imprensa empresarial, ela tem espaço para a expressão de todos os pensamentos. Trata-se de um valor democrático arraigado nos americanos – quanto disso os governos Bush destruíram é outra questão.
O fato é que foi esse modelo que a imprensa brasileira copiou e que prosperou a partir dos anos 70. É ele que os futuros jornalistas aprenderam na faculdade, nas últimas décadas. É compreensível: depois de muitos anos de ditadura, o desejo de liberdade de imprensa era forte. O modelo americano prosperou com a redemocratização, que continha na sua essência a pluralidade. Liberdade de imprensa se confundiu com liberdade de expressão, com liberdade de manifestação, com liberdade organização política. Assim como os dois partidos antes existentes (Arena e MDB) foram implodidos e dezenas de outros surgiram, assim como movimentos de defesa dos interesses de todos as classes, grupos, raças e sexos se formaram, também a imprensa deu voz a todas os pensamentos.
Caso exemplar dessa transformação é a Folha de S.Paulo. Jornal que fez oposição ao governo João Goulart e apoiou o golpe militar de 1964, cedendo-lhe, inclusive, veículos para transporte clandestino de presos políticos, a partir de meados da década de 1970 a Folha passou a proclamar sua independência editorial, manifestada em slogans como "de rabo preso com o leitor". Noticiou o movimento estudantil de 1977, as greves operárias do ABC, em 1978, e todas as manifestações contra o regime militar, culminando no apoio à campanha Diretas já!, em 1984.
Pode-se se argumentar que a Folha é uma empresa capitalista que quer ganhar dinheiro e viu nos movimentos de oposição um novo mercado que a faria crescer. Sentindo os novos ventos, largou o osso da ditadura e apostou na "abertura". Armou e se deu bem, pois se tornou o maior jornal do país, desbancando concorrentes tradicionais como o Estadão, prestigiosos como o JB, e fortes economicamente, como O Globo.
O que eu quero ressaltar é que o modelo ao qual a Folha se agarrou para crescer foi o modelo americano da imprensa imparcial, independente de interesses particulares. Prova disso está não apenas na cobertura dos movimentos populares, como também na ampliação de páginas de opinião e cadernos abertos à manifestação de diversos segmentos e pensamentos da sociedade. A redemocratização favoreceu o florescimento do modelo americano de imprensa e o grande mérito (empresarial) da Folha foi certamente perceber isso antes dos concorrentes.
Cabe aqui lembrar um fenômeno paralelo a esse movimento da grande imprensa, que foi o nascimento, crescimento e decadência da chamada imprensa nanica, ou imprensa alternativa. Eram conhecidos assim os pequenos jornais que circularam em grande número durante os anos 70 e cujo principal exemplo é o Pasquim. Pequenos em formato (em geral tabloides), em condições materiais (geralmente pequenas editoras formadas pelos próprios jornalistas e rodados em gráficas de terceiros) e em tiragem (alguns milhares de exemplares). Diante dessas precárias condições de funcionamento, eram jornais de circulação local e pouca duração (o Pasquim foi uma exceção que se tornou nacional, atingiu tiragem de centenas de milhares de exemplares e durou mais de década, sem, no entanto, deixar de ser "nanico"). No entanto, da mesma forma que um morria, outro nascia, e a imprensa alternativa, como fenômeno, atravessou a década de 1970.
O que dava fôlego a essa imprensa? Era exatamente a falência do modelo americano: tolhida pela censura prévia, a grande imprensa não podia expressar, nem no noticiário e muito menos em opinião, os setores de oposição ao regime. É verdade que, tendo apoiado o golpe militar, a grande imprensa não sofria muito com isso, na conjuntura dos anos 60 e começo dos anos 70. A longo prazo, porém, a censura era uma lástima, pois tolhia a essência do jornalismo, que é publicar informações. Ficaram famosos os sonetos de Camões e receitas culinárias publicados pelo Estadão em espaços que seriam destinados a matérias censuradas. O Estadão foi o jornalão que mais sentiu e mais reagiu à censura; não por coincidência, é o jornal brasileiro que, em toda sua centenária trajetória, mais se aproxima do modelo de imprensa americano.
A censura tornava a grande imprensa, aos olhos do leitor, ainda mais simpática ao regime do que ela era. E, na precariedade do noticiário, igualava-a, por baixo, aos jornais alternativos. Estes tinham mesmo algumas vantagens, pois feitos por jornalistas ou por políticos de esquerda, emplacavam notícias, ainda que de forma camuflada, que os jornalões não davam, e expressavam pontos de vista excluídos da grande imprensa. O próprio fato de terem vida curta e alcance limitado possibilitava que escapassem da censura prévia. Atingidos por ela, ganhavam notoriedade e credibilidade: eram censurados ou recolhidos porque diziam a verdade. O leitor tornava-se solidário a eles e acompanhava seus jornalistas em novas publicações.
Tudo isso ajuda a entender por que, justamente quando a censura prévia é extinta e os nanicos têm mais liberdade, em vez de crescer eles definham e morrem, não apenas como títulos, mas como fenômeno. (Um raro remanescente está aqui entre nós, o Cometa Itabirano, um pasquim balzaqueano.) A partir da abertura política, o modelo americano prospera, abrigando novamente o noticiário e as opiniões de toda a sociedade. Grandes empresas capitalistas, elas são concorrentes muito mais poderosas do que as pequenas editoras dos nanicos. Mesmo os jornalistas não veem mais muitas razões para preferir as franciscanas condições de trabalho na imprensa alternativa às chances de uma carreira na grande imprensa. Com o passar do tempo e o advento do neoliberalismo, aquele passado parece mesmo coisa de idealistas, qualidade em desuso.
O que o governo Lula e a campanha eleitoral de 2010, em particular, demonstram é que o modelo americano de imprensa não se firmou no país. A este respeito é exemplar o que disse, em entrevista a O Globo, em março deste ano, a presidente da Associação Nacional de Jornais, Maria Judith Brito, executiva da Folha: "Esses meios de comunicação estão fazendo de fato a posição oposicionista deste país, já que a oposição está profundamente fragilizada". Mais que um posicionamento político, que iluminou a cobertura dos jornalões na eleição presidencial de 2010, tal declaração é um atestado de falência do modelo liberal de jornalismo adotado pela própria Folha a partir de meados dos anos 70.
Se a independência não é valor para a "grande" imprensa, se em 2010 ela se coloca a serviço (não "do Brasil", como diz a Folha no seu cabeçalho, e sim) de uma facção política, da mesmo forma como em 1964 posicionou-se a favor do golpe que derrubou o presidente eleito e referendado João Goulart, é preciso que a democracia seja exercida além dela. É preciso que a imprensa se diversifique, é preciso que o leque de jornais – assim como de emissoras de televisão e rádio, segundo mecanismos próprios desses meios – se amplie para expressar todos as facções políticas. Dizendo de outra maneira: se a Folha não tem mais o rabo preso com o leitor, exclusivamente, pertença ele a uma façção ou outra, é preciso que existam outras "Folhas", capazes de dar voz às facções que a Folha não acolhe.
Aqui é preciso distinguir valores e princípios. A informação correta está acima das facções políticas. Todo jornal, seja ele simpático a esta fação ou àquela, tem como obrigação informar a verdade, não mentir, não distorcer fatos, não caluniar, não difamar. Este é um valor do jornalismo, segundo o qual a Folha (de S.Paulo e qualquer outra) estaria sujeita a sérias punições caso a democracia entre nós fosse mais robusta. Nenhum jornal, de uma facção ou de outra, tem o direito de mentir. Para isso, existe a lei, para isso o judiciário deve funcionar de forma rápida e imparcial, protegendo, mais que os adversários políticos, o cidadão comum. Outra coisa é a opinião, o enfoque, a linha editorial.
A Folha de S.Paulo tem todo o direito de defender a ideologia neoliberal, os interesses do capital, as políticas de direita. Tem todo o direito de combater ferozmente o governo Lula, assim como a candidatura Dilma. Este é um princípio que ajuda a construir e a reforçar a democracia. O que desequilibra a atuação da Folha – e com ela o Estadão, O Globo e a Veja, para ficar nos principais veículos da direita brasileira – é inexistirem outras 'Folhas' igualmente grandes, fortes e influentes, capazes de se contraporem ao seu poder e disputarem a preferência do leitor, democraticamente, apresentando linhas editoriais distintas. O que desequilibra a atuação da "grande" imprensa é o fato de servir a uma facção, apresentando-se para o leitor como "a serviço do Brasil". Ora, como diz o lema do governo Lula, o Brasil é de todos, não apenas do que pensam como Folha, Estadão, Globo e Veja.
Essa ambiguidade entre o slogan e a linha editorial da Folha traz prejuízos não a uma candidatura, mas à democracia. É em nome da demcracia que o modelo liberal de imprensa, que neste ano recebeu seu atesto de falência no Brasil, precisa ser superado. Ela distorce completamente o significa democrático da imprensa, de serviço que informa corretamente o leitor. Dia desses li uma jornalista argumentando a um leitor indignado com a distorção do noticiário que qualquer jornalista sabe que não falará mal do Aécio no Estado de Minas nem da Igreja Universal no Hoje em Dia. Ela tem razão: os jornalistas aprendem na prática a se curvar aos interesses da empresa, em detrimento do exercício profissional digno. Quem perde com isso é o leitor, é a informação. Da informação proibida à informação distorcida o passo é curto.
É melhor que o jornalista da Folha, por exemplo, saiba que naquele jornal não se fala mal dos tucanos, nem se fala bem dos petistas, mas também não se publicam mentiras. Melhor e mais democrático: o leitor confiará na informação e não será enganado, ainda que ao escolher a publicação que vai ler, saiba que está escolhendo um ponto de vista.
O governo Lula encerra um período histórico do país, um período em que prosperou e morreu a imprensa liberal, assim como na ditadura prosperou e morreu a imprensa nanica. A "grande" imprensa declarou e demonstrou na prática que não é independente e com isso matou o mito da imparcialidade jornalística. É preciso agora que as facções políticas às quais ela se opõe, e que pela terceira eleição consecutiva demonstraram contar com a preferência da maioria do eleitorado, possa também se expressar. Que floresçam, pois, cem Folhas!
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