segunda-feira, 29 de novembro de 2010

O Almirante e o Doutor

"Há muito tempo nas águas da Guanabara / O dragão do mar reapareceu... Conhecido como Almirante Negro / Tinha a dignidade de um mestre sala"

Acho que o marinheiro João Cândido Felisberto ficaria feliz se pudesse saber que, um século depois da revolta que liderou, o Brasil elegeu uma mulher presidente, depois de ter sido governado durante oito anos por um operário – um Doutor na arte de governar, assim como o marinheiro tornou-se um verdadeiro Almirante dos mares. Em maio passado, o Almirante foi homenageado pelo Doutor, que batizou com seu nome o primeiro navio da nova frota da Transpetro lançado ao mar. Foi o primeiro navio feito no Brasil para a Petrobras, em 13 anos. Petrobras, João Cândido, Lula, Dilma. Tem um Brasil sendo desenhado nestes "pontos de bordado", um Brasil diferente daquele feito pelos doutores e almirantes que não merecem seus títulos. Um Brasil melhor.

Tomo a ideia do bordado emprestada do historiador José Murilo de Carvalho, autor do ensaio Os bordados de João Cândido, sobre o herói da Revolta da Chibata. São dele também muitas das informações que se seguem. João Cândido era um marinheiro típico: um crioulo "alto, feio e forte", filho de ex-escravos. Nasceu em 1880, no Rio Grande do Sul; morreu em 1969, no Rio de Janeiro. A grande tristeza da sua longa vida foi ser traído pelo governo, expulso da Marinha e ver seus companheiros morrerem cruelmente. Para expurgá-la, bordou toalhas, no período em que esteve encarcerado.

Consta que João Cândido não era rebelde nem organizou a revolta, que eclodiu nos encouraçados Minas Gerais e São Paulo, no dia 22 de novembro de 1910, mas assumiu seu comando devido a sua ascendência sobre os marinheiros. Os dois navios tinham sido comprados recentemente pelo governo brasileiro e estavam entre os mais modernos do mundo. Seu desfile na Baía de Guanabara maravilhou a população da então capital federal.

As negociações para rendição dos marinheiros incluiu a concessão de anistia. Leal à pátria, João Cândido inclusive bombardeou o quartel dos fuzileiros navais que se rebelaram dias mais tarde. A rebelião da qual fez parte reivindicava a eliminação da punição com chibatadas a marinheiros indisciplinados, em geral negros, que ainda era prática na marinha brasileira 22 anos depois de abolida a escravidão. "Nós, marinheiros, cidadãos brasileiros e republicanos, não podemos mais suportar a escravidão na Marinha brasileira", dizia o manifesto da Revolta, que teve como estopim o castigo de 250 chibatadas aplicadas em um marinheiro do Minas Gerais no dia 21 de novembro.

Numa vingança dos oficiais contra os subalternos, na primeira oportunidade, os revoltosos foram traiçoeiramente presos e 18 deles jogados numa cela subterrânea lavada com água e cal, no presídio da Ilha das Cobras. Apesar dos protestos, gritos e pedidos de socorro, foram mantidos ali durante toda a noite de 24 para 25 de dezembro. Os carcereiros não tinham as chaves da cela, levadas pelo comandante do Batalhão Naval, um capitão-de-fragata, para sua festa de Natal. Quando ele voltou, às oito horas da manhã, 16 presos tinham morrido asfixiados, apenas João Cândido e o soldado naval João Avelino sobreviveram.

Não foi a primeira vez que as classes dominantes brasileiras trataram as classes subalternas insubordinadas com crueldade. Também não seria a última. A história brasileira está repleta de episódios assim. Cito apenas dois deles porque têm aspectos que lembram a Revolta da Chibata. Em 1823, durante as chamadas "guerras de independência", 252 brasileiros republicanos foram mortos asfixiados com cal no porão do navio Palhaço, no Pará, pelas tropas de D. Pedro I. Em 1844, no acordo de rendição da Guerra dos Farrapos, os revoltosos gaúchos desarmaram e entregaram ao exército imperial os escravos libertos do batalhão conhecido como Lanceiros Negros; foram massacrados.

O lema dos marinheiros dos encouraçados Minas Gerais e São Paulo era "Ordem e Liberdade". Faz mais sentido do que esse "Ordem e Progresso" que meia dúzia de militares positivistas gravou na nossa bandeira e que persiste até hoje, justificando a violência das elites. No lema dos positivistas, o progresso justifica a ordem; no lema dos marinheiros, a liberdade delimita a ordem. A violência no Brasil nunca vem do povo, é sempre contra o povo, um povo amoroso e ordeiro, como os companheiros de João Cândido, mas, historicamente, sem liberdade, sem direitos, sem cidadania. Dá certo conforto constatar que a história anda para a frente e faz justiça. Um século depois, João Cândido é lembrado em músicas, peças de teatro e museus, seu nome está incorporado à frota naval brasileira, da qual ele nunca quis sair. Dos nomes dos assassinos cruéis, quem se lembra?

quinta-feira, 25 de novembro de 2010

Encantamento. Eu?

Os acontecimentos relacionados à performance da poeta Telma Scherer me emocionam. Contêm o lado revolucionário da internet que me encanta: a informação circulou aqui, produzida por pessoas comuns (comum aqui tem sentido democrático, não significa ordinário, porque Telma Scherer é uma artista, portanto, pessoa incomum, mas pessoa que não desfruta do poder conferido pela autoridade ou pelo dinheiro). Blogs, redes sociais, correio eletrônico, vídeo gravado com celular, comunicação direta entre comuns, comunicação universal sem passar pelo poder.

Eu, por exemplo, repliquei no meu blog, pesquisei no youtube, vi e compartilhei novos vídeos, conheci e admirei a artista, li seu blog, mandei-lhe um e-mail, ela o respondeu. Tudo isso ontem. Voltei ao blog da poeta hoje, li novas postagens sobre repercussões do "incidente", conheci e admirei mais Porto Alegre, os gaúchos que elegeram Tarso Genro (não conseguimos eleger Patrus! Sequer conseguimos ter Patrus como candidato!), esse povo diferente, que fez a Revolução de 30 (com apoio mineiro, é claro!), que criou o Brasil moderno, de gerou Getúlio e Brizola, que fez a Revolução Farroupilha, o único levante popular brasileiro que não foi derrotado pelo poder central.

Porto Alegre tem uma esquina que se chama Esquina Democrática, nela os artistas e populares fazem manifestações e são presos. Mas fazem de novo. Uma vereadora do Psol protesta contra a repressão, apresenta moção de solidariedade à poeta e ao grupo teatral Levanta Favela. Tem um grupo que se chama Ditadores Inversos e organiza uma Marcha pela liberdade de expressão. Cidadania, arte, gente comum especial, a web, conhecimento, um círculo virtuoso. Me enriquecei, me encantei, me emocionei. Um eu profundo. Eu? Fosse capaz de compreender o eu, de ser eu, de ser, de fazer o que tenho de fazer. Talvez. Um certo incerto.

A rã no caldeirão. Sobrevivendo

Marx tornou consciente o que já se percebia, desde a Revolução Francesa, e que hoje todos sabemos, ainda que tentemos ignorar. A luta de classes move a história, os proprietários dominam o mundo, o capital manda na economia e na política. O resto, o povo, os que só têm seu trabalho, se ajustam a esse mundo, se viram como podem. A iniciativa individual tem seu valor, não quero tirar o mérito de quem foi criando as maravilhas desse mundo capitalista, mas a força do capital é superior.

O mundo precisa também ter desigualdade? Miséria? O trabalhador precisa ser explorado? O comum precisa ser oprimido, só porque não nasceu rico? Então o capitalista não precisa dos outros para fazer as riquezas do mundo? O capital multiplica sozinho? Só o que Deus pôs no mundo brota sozinho, o que é do homem precisa de esforço. Violência? Guerra? Se o povo decidisse ia querer se matar ou folgar? Ia querer armas ou escolas?

Não tenho nada contra o empreendedorismo, mas o dono precisa dividir a riqueza com aqueles que ajudaram a produzi-la. Tão somente isso. E a criança que nasce não deve ter seu destino traçado só porque seu pai é trabalhador, não é proprietário. Escola pública de qualidade para todos, isso é uma lei que a sociedade deve seguir: todas as crianças e jovens devem ter acesso à mesma educação, com a melhor ciência de ensino, os melhores educadores, os melhores equipamentos e instalações. Que as vantagens nos distingam, ao longo da vida, não as desvantagens. Que a igualdade nos diferencie, não a desigualdade. Conhecimento para todos. Sáude pública igual para todos, transporte coletivo de qualidade, espaços públicos, praças e parques, áreas de lazer e esporte acessíveis a todos. É preciso mais? Não muito, com isso a vida humana já seria bem melhor.

Direitos iguais e instituições que garantam direitos iguais. Democracia, participação de todos nas decisões. Precisamos de representantes? Às vezes sim, às vezes não. A democracia não pode ser o governo dos representantes, a democracia é o governo do povo, pelo povo, para o povo, já disse alguém, com sabedoria. O representante tem que ser um igual, não um privilegiado, não um que ganha mordomias, não um comprado pelo rico. O representante tem que ser um igual e continuar um igual. E para muita coisa não precisa de representante, o principal não pode ser decidido por representantes em conchavos.

Tão somente isso. É difícil? Pode até ser um pouco, no começo. Não é pela impossibilidade das alegrias que a maldade reina. É assim porque os ricos não deixam, porque os ricos são os poderosos, porque no capitalismo todo o poder emana do dinheiro, não do povo, porque o capital quer continuar determinando os rumos do mundo, com desigualdade, com miséria, com exploração, com opressão, com corrupção, com violência, com guerras, com mortes. É assim porque os poucos querem ficar com tudo que é bom. Todos sabemos disso, todos sabemos como deve ser, mas vamos levando a vida fingindo não saber, fingindo que não é com a gente, torcendo para que o bem prevaleça, rezando para que Deus nos ajude, fazendo a nossa parte, tirando pequenas vantagens, salvando a própria pele, sobrevivendo.

Palmeiras X Goiás, televisão e o poder no futebol

A gente pode ter vários motivos para gostar da eliminação do Palmeiras pelo Goiás, na Copa Sul-Americana, ontem no Pacaembu. O clube paulista eliminou o Galo, é o time do Serra. Alguns motivos são mais nobres: simpatia com os mais fracos, solidariedade com o rebaixamento do clube goiano para a série B, treinador desconhecido, jogadores que estão em baixa. O principal para mim é sempre o mesmo: a desigualdade de tratamento.

Clubes paulistas (e do Rio) contam com a simpatia da televisão e da imprensa, seus jogos são exibidos para o país inteiro, suas notícias são destaque. Eles movimentam muito dinheiro, contratam os jogadores e treinadores mais caros, têm torcedores famosos, são beneficiados pela arbitragem e pelas decisões dos mandões. A imprensa e a televisão brasileiras não são nacionais, são paulistas e cariocas, com alcance e domínio nacional.

Precisamos de comunicações efetivamente nacionais, em alcance, produção de conteúdos e decisões. Talvez não seja mais possível fazer isso com os meios impressos decadentes – o que as informações estão a exigir dos jornais e revistas é diversificação política e social. Quanto às televisões e rádios, porém, é óbvio que o Brasil precisa ampliar o alcance das suas televisões públicas.

Até recentemente, o exemplo era a TV Cultura de São Paulo. Agora, que o neoliberalismo tucano deteriorou a emissora, com cortes de despesas e ingerência política no conteúdo, e o governo Lula criou a TV Brasil, é esta a melhor referência do que pode ser uma televisão produzida com liberdade, criatividade, inteligência, equilibrio de conteúdos e regiões. Trata-se de um modelo que precisa ser expandido e diversificado, com emissoras estaduais e municipais, públicas e comunitárias.

Um campeonato de futebol transmitido pela televisão pública seria bem diferente do que é a transmissão feita por emissoras concentradas no Rio e em São Paulo. A TV Brasil transmitiu este ano o campeonato nacional da série C, se não me engano, mas não tive oportunidade de ver nenhum jogo. A iniciativa já indica a diferença, uma vez que se trata de um campeonato de clubes menores, pouco conhecidos no país, sem apelo comercial.

Mesmo sem ter simpatias especiais pelo Goiás (próximo adversário do Galo, tomara que escale o time reserva, ou que os titulares estejam com a cabeça na Sul-Americana; o Palmeiras foi nosso último adversário e fomos beneficiados pelos mesmos motivos), mesmo não tendo nada contra o Palmeiras (os adversários beneficiados em disputas contra o Atlético, nossos inimigos históricos, são Corinthians, Flamengo e São Paulo), é inevitável não sentir certo prazer em ver o poder paulista ser derrotado no seu próprio campo. Não pelo sofrimento da torcida palmeirense, que me pareceu cansada, derrotada. Nós, atleticanos, que passamos por aquela final entre Atlético e São Paulo, no Mineirão, em 1978, somos solidários aos torcedores que lotam o estádio para festejar e saem chorando.

quarta-feira, 24 de novembro de 2010

Exercício de conhecimento do eu

(COMPARAR COM AS SETE DIMENSÕES)

A vida humana é determinada por cinco variáveis (biológica, educação, idiossincrasias, acontecimentos e escolhas), que existem em três contextos (família, lugar e época).

A primeira variável é biológica: cada um de nós é sistema biológico particular, com determinadas características herdadas do pai e da mãe, desde a fecundação: o porte físico, as feições, o cabelo, a cor da pele, a cor dos olhos, os dentes, doenças e debilidades, forças.

A segunda variável é a educação que recebemos dos nossos pais: valores, medos, neuroses, visão de mundo, comportamentos. (A primeira e a segunda variáveis são devidas ao pai e à mãe, embora a educação não seja necessariamente feita por eles.) – No meu caso: a honestidade, a correção nas ações, a obediência à autoridade, a religião católica conservadora, a vida caseira, a forma de lidar com a asma.

A terceira variável são as características individuais, idiossincráticas: embora recebam a mesma carga genética e a mesma educação, dois irmãos não se formam iguais, pois têm características próprias. No meu caso, identifico a sensibilidade, a indignação com a injustiça, o dom de desenhar, a facilidade para escrever, a timidez, a paixão pelas meninas bonitas, a imaginação.

A quarta variável é o que acontece conosco, os acontecimentos determinantes. No meu caso: o primeiro amor, a carta e sua leitura por papai; a influência para ir para a escola técnica; a influência para entrar na militância; a pedrada no olho; ser reprovado no mestrado; a cooperativa; a oportunidade no JB; a demissão no JB; a demissão na Veja...

A quinta variável são as escolhas que fazemos. No meu caso: a ida para a escola técnica, a entrada na militância, a entrada no curso de jornalismo, a volta para Mafá, o casamento, a saída da prefeitura de Ibirité, a separação, abandonar o jornalismo; morar com Vanessa; largar a última remuneração fixa, vender carro etc., entregar a sala alugada...

Tudo isso acontece numa família (algum tipo de), numa classe social, num lugar (bairro, cidade, país) e numa época (décadas, época histórica, sistema).

Tudo isso torna cada existência única, ainda que muitas variáveis façam com que as pessoas se identifiquem e se agrupem. Se eu juntar tudo isso, monto o quebra-cabeça da minha vida, que eu preciso entender.

É um exercício interessante de conhecimento montar este quebra-cabeça na ordem inversa à que descrevi, começando pela época histórica.

1- Época

Minha vida acontece nos séculos XX e XXI da era cristã; época em que a economia capitalista se expandiu por todo o planeta, com convulsões sociais, guerras, revoluções, crescimento populacional, desigualdades, avanços tecnológicos e mudanças ambientais, aumentando exponencialmente as riquezas e as destruições.

Avanços tecnológicos: computador, avião, televisão, cinema, celular, internet, satélites, energia elétrica, energia nuclear, automóvel, combustíveis derivados do petróleo. O homem começou as viagens espaciais e chegou à Lua (em 1969), atualmente manda naves não tripuladas para investigar o espaço e enviar imagens e sinais para a Terra.

A população do planeta se multiplicou, ultrapassando 6 bilhões de seres humanos na primeira década do século XXI. A ação do homem está provocando mudanças climáticas no planeta, degelo dos polos, poluição de rios e mares, destruição das florestas, poluição do ar, contaminação da terra, extinção de espécies animais e vegetais.

O mundo está dividido em nações, muitas das quais se reconfiguram, limitações territoriais e organizações políticas que coexistem com uma economia globalizada, telecomunicações que unem e migrações intensas.

Nasci num período em que o mundo vivia a guerra fria, um confronto tenso mas sem guerras entre duas potências, Estados Unidos e União Soviética, que lideravam dois sistemas econômicos e dois blocos de países, capitalista e socialista, respectivamente, situação que mudou no final da década de 1980, portanto há 30 anos, com a queda dos regimes no bloco soviético e da economia socialista. Ao falar de socialismo é preciso esclarecer que se trata de uma corrente política, nascida com a Revolução Francesa, elaborada ao longo do século XIX e que pretendia substituir o sistema capitalista por um sistema superior, igualitário, mais evoluído, por meio da revolução operária; a revolução não se realizou nos países capitalistas mais avançados, realizou-se em dois países atrasados, agrícolas, mas em vez da sociedade mais evoluída o que se viu neles foram ditaduras e organizações sociais defeituosas; um desses regimes, o chinês, continua existindo, mas tornou-se um capitalismo com planejamento estatal e autoritarismo. À dissolução do bloco soviético sobreveio uma onda neoliberal, direitista, que acabou na crise atual, que mudou governos e iniciou uma nova onda intervencionista, mais à esquerda.

Minha visão do mundo contemporâneo é que o capitalismo é por natureza injusto, desigual, imediatista e destruidor; ele cria luxo e lixo. A continuidade do sistema, no grau de destruição que ele provoca, levará a humanidade a catástrofes, que aliás já estão acontecendo. O capitalismo vem sobrevivendo por incapacidade demonstrada pelos trabalhadores no século XX de fazerem a revolução socialista e pelo uso de regimes políticos nazi-fascistas, ditaduras e guerras. Grande parte dos socialistas e dos trabalhadores, especialmente nos países capitalistas mais desenvolvidos, se acomodou com reformas sociais e políticas no capitalismo, abdicando de tomar o poder e de fazer a revolução. Os capitalistas fizeram concessões, de forma que o Estado atual, de forma geral, é um Estado que contempla interesses de outras classes, além da classe capitalista. Ao mesmo tempo, as sociedades vem fazendo no capitalismo mudanças que fariam parte do socialismo, seja na forma de políticas sociais e ambientais, seja em iniciativas particulares e de grupos, que criam novas instituições, novos comportamentos, novas relações. É como se a evolução da humanidade não pudesse esperar, e não existindo ainda o sistema socialista, ela cria formas socialistas dentro do capitalismo. O que significa que a revolução operário, quando vier, se vier, não será mais aquela revolução prevista por Marx e Engels, feita por Lenin e Trotski; ela encontrará formas socialistas já em andamento e conviverá com elas.

2- Lugar (bairro, classe social, cidade, país)
Nasci e sempre vivi no Brasil, numa região chamada Minas Gerais, na sua capital, chamada Belo Horizonte.

O que sei sobre o Brasil.

Nasci, cresci e vivi no bairro da Lagoinha até os 31 anos. Depois morei em outros bairros: São Lucas, Barroca, Santo Antônio e, atualmente, Carmo. Vi a cidade crescer e mudar: na infância, morei em casa com terreiro, brincava na rua e nas casas dos outros, em lotes vagos, no campo de futebol perto de casa, as famílias eram numerosas, se conheciam e conviviam; hoje vivemos em apartamentos, a rua é dos carros e dos bandidos, mal conhecemos os vizinhos e não convivemos com eles, as crianças brincam dentro de casa, com jogos eletrônicos e veem tv, têm poucos irmãos ou nenhum.
Pertenço a uma classe ampla, que é a classe média, mas experimentei variações nela: o bairro onde nasci e cresci é um bairro mais pobre, poucos dos meus colegas fizeram universidade e raríssimos cursaram profissões nobres – eu e meus irmãos inclusive fizemos cursos despretensiosos, da área de ciências humanas. Frequentar a universidade, porém, foi uma mudança de ares, um período em que os limites da classe se desfaziam, especialmente na Fafich e nos anos de luta contra a ditadura militar. Tornando-me jornalista, frequentei o sindicato (criação da cooperativa) e cheguei à redação do principal jornal do país e fui chefe da sucursal da principal revista. Com isso, circulei por todos os ambientes da sociedade, viajei pelo estado e a outras capitais, e conheci pessoas de outras classes sociais, inclusive ricos e poderosos. Continuei pobre, sem casa, carro velho, mas com trânsito em novos ambientes e alguma ascensão econômica.

Projetos radiodocumentários

1-Os melhores álbuns de música popular

Milton Nascimento / Lô Borges - Clube da Esquina

Justificativa

Alguns artistas têm um grande disco, um momento na carreira em que se mostram gênios. É quase como se não devessem ter feito outra coisa, para que nos lembrássemos deles apenas em seus momentos mágicos. Como Caymmi, que levava nove anos para terminar uma canção e a finalização podia ser apenas uma frase. Um desses discos geniais, que fazem parte da história da Música Popular Brasileira, é Clube da Esquina.

Embora traga os nomes de Milton Nascimento (em primeiro plano), e Lô Borges na capa, o disco – na verdade dois, porque é um álbum duplo – é o produto coletivo de um grupo de jovens músicos mineiros, que se encontraram para compor, tocar, cantar e gravar num momento de grande criatividade. O resultado foi um álbum que, quarenta anos depois, continua influenciando músicos em todas as partes do mundo graças à qualidade duradoura do seu som. Nada mais mineiro, no entanto, do que a música universal do Clube da Esquina.

Ouvir este grande disco com ouvidos atentos e conhecer um pouco dos bastidores da sua criação são os objetivos deste programa.

Sinopse

Clube da Esquina flui do começo ao fim do programa despertando os prazeres dos grandes discos. Com base em entrevistas com os artistas participantes, o documentário revela as condições de realização e chama atenção para os detalhes das melodias, letras, vozes e instrumentos do álbum, como o maravilhoso o arranjo em Clube da esquina n° 2, assinado por Eumir Deodato.

Quem, no Brasil, conhece Deodato? Os americanos e europeus o conhecem bem. Basta citar que é seu o arranjo do grande sucesso Killing me softly, da cantora americana Roberta Flack. Aquela versão popular do erudito Assim falava Zarastustra, de Richard Strauss, que ficou famosa, também é dele. Quem se der ao trabalho de conferir os créditos de discos da cantora Björk vai encontrar o nome do arranjador brasileiro. Isto para ficar em apenas três exemplos do sucesso desse colecionador de discos de platina que trabalhou com as maiores estrelas internacionais e fez as trilhas de alguns dos maiores sucessos de Hollywood. Tudo isso depois de elaborar os arranjos de Clube da Esquina.

Assim como Deodato, o álbum tem um numeroso time de artistas hoje reconhecidos mundialmente: Tavito, Wagner Tiso, Beto Guedes, Toninho Horta, Robertinho Silva, Luiz Alves, Rubinho, Nelson Ângelo, Paulo Moura, Paulinho Braga, Luiz Gonzaga Jr., Alaíde Costa, além dos letristas Márcio Borges, Ronaldo Bastos, Fernando Brant e Murilo Antunes. Embora não fossem anônimos em 1972, foi o álbum Clube da Esquina que impulsionou suas carreiras. Toninho Horta tornou-se um importante músico de jazz, com sucesso no Japão e nos EUA.

Milton é um caso à parte, fez carreira internacional, cantando e tocando com os maiores nomes da música popular. Em Clube da Esquina, sua voz é o ponto mais alto entre cumes musicais. Sobre ela nada que se diga é bastante, é sublime como devem ser as vozes dos deuses. E em todas as canções unem-se os talentos virtuosos de músicos e cantores compondo um conjunto harmonioso.

Na faixa Trem de doido, a guitarra de Beto Guedes se equipara à de Eric Clapton, então chamado de deus, por seus fãs. A bateria de Rubinho tem rara suavidade em San Vicente, assim como a bateria de Robertinho Silva em O trem azul bate no coração, tanto quanto batia a de Ringo Starr. É inesquecível o violão de Lô Borges em Tudo que você podia ser, assim como o órgão de Wagner Tiso em Um girassol da cor do seu cabelo. Os coros são deliciosos e até mesmo a voz limitada de Lô é gigantescamente agradável. Que beleza o solo de Alaíde Costa em Me deixa em paz! (que tem ainda o baixo de Luiz Alves).

2- Quando penso em você, fecho os olhos de saudade

Justificativa
No começo dos anos 70 a maioria da população das cidades brasileiras ainda morava em casas. A ditadura militar, então no auge, mantinha sob censura prévia a imprensa e televisão. A atmosfera na sociedade e nas escolas era de repressão e autoritarismo, e a juventude encontrava na música a sua válvula de escape. Era comum turmas de jovens cabeludos, trajando roupas coloridas, se reunirem em terreiros, varandas, terraços e esquinas para conversar, namorar e cantar. Eram vizinhos, colegas de escola, amigos; muitos tocavam violão, alguns se exercitavam em outros instrumentos, todos cantavam. Dessa forma, nasceram alguns grupos de vida curta e começaram carreira cantores, instrumentistas e compositores que conheceram sucesso local. É este o caso do Ingazeira, um conjunto de música popular que atuou em Belo Horizonte, cuja trajetoria – breve mas importante trajetória para os jovens daquela época – este programa pretende mostrar, rememorando um período da história recente do Brasil.

Sinopse
Quando penso em você... traz no nome uma referência à canção Canteiros, um dos primeiros sucessos do cantor e compositor Fagner, com melodia composta sobre poesia de Cecília Meireles. Ela era também uma das preferidas do grupo Ingazeira, quando se reunia para cantar em companhia de amigos do Bairro Lagoinha, em Belo Horizonte, no começo dos anos 70. O programa reproduz um encontro típico de jovens daquela época, reunindo novamente a turma de amigos. Entre canções que foram sucesso na época, na interpretação do Ingazeira ou de outros artistas, os amigos recordam o ambiente daqueles anos de ditadura militar e histórias da turma, e fazem o balanço dos sonhos que ficaram pelo caminho, nessas mais de três décadas.

Tudo sobre Belo Monte

Quais as características do projeto de Belo Monte?
A Usina Hidrelétrica de (UHE) Belo Monte será a terceira maior do mundo, atrás da chinesa Três Gargantas, com 22,5 mil MW, e da binacional Itaipu (14 mil MW), de propriedade brasileira e paraguaia, e a segunda maior do país. A UHE envolve obras em três sítios distintos (Belo Monte, Bela Vista e Pimental). Essa característica faz com que o projeto seja original, uma vez que as grandes hidrelétricas geralmente associam, lado a lado, a casa de força e o vertedouro, no mesmo local de barramento do rio. Os arranjos que envolvem canais de derivação são mais comuns em pequenas centrais hidrelétricas. Em Belo Monte, o barramento e o vertedouro principal ficarão no Sítio Pimental, onde será instalada também a Casa de Força Complementar, no leito do Rio Xingu, a cerca de 40 quilômetros da cidade de Altamira (PA). Desse ponto, por meio de canais de derivação, parte da água do rio será desviada para a Casa de Força Principal, no sítio Belo Monte, para formar o chamado "reservatório dos canais". Para garantir as condições de segurança na operação da Usina, será construído, no sítio Bela Vista, um vertedouro complementar. Complementam o arranjo um conjunto de diques para fechamento lateral de pontos baixos no reservatório dos canais. Outra importante característica do projeto está no fato de que a quase totalidade das obras poderá ser realizada a seco, uma vez que os sítios Belo Monte e Bela Vista e a região dos diques laterais, dos canais de derivação e do correspondente só serão alagados quando ocorrer o fechamento da barragem principal, no sítio Pimental. Isso acontecerá depois de concluídas todas essas obras, para dar início à geração na Casa de Força Principal.

Quanta energia a UHE vai gerar?
A capacidade total instalada da usina será de 11.233,1 Megawatts (MW), com garantia assegurada de 4,571 mil MW médios (MWmed). A usina vai operar a fio d'água. Isso significa que a geração vai variar de acordo com a quantidade de água do Rio Xingu a cada período do ano. Ou seja, a usina vai gerar mais energia nas épocas de cheia e menos nos momentos de seca. Assim, a garantia física do empreendimento será definida pela EPE. A Casa de Força Principal, que ficará no Sítio Belo Monte, com capacidade mínima instalada de 11 mil MW e garantia assegurada de 4,418 mil MWmed. A casa de força complementar, no Sítio Pimental, terá capacidade de 233,1 MW e garantia assegurada de 151,1 MWmed. Do ponto de vista da relação entre capacidade instalada e área alagada (MW/km2), a UHE de Belo Monte será a terceiro do país, atrás apenas de Xingó e Paulo Afonso IV.

Qual a importância do empreendimento?
A UHE Belo Monte vai integrar o Sistema Interligado Nacional (SIN) e, com isso, sua energia vai contribuir para expansão da oferta em todo o País. Assim, na cheia do Rio Xingu, será possível gerar muita energia, promovendo a acumulação de água nos reservatórios das usinas de outras regiões, tirando proveito da sazonalidade hidrológica decorrente das dimensões continentais do País. Complementarmente, nos períodos de seca do rio Xingu, essas usinas com água armazenada suprirão a diferença da menor geração em Belo Monte. As obras deverão gerar 18 mil empregos diretos e 23 mil postos indiretos, de acordo com o Relatório de Impacto Ambiental (RIMA). O estado do Pará e os municípios diretamente afetados pelo reservatório receberão a Compensação Financeira pela Utilização de Recursos Hídricos para Fins de Geração de Energia Elétrica (CFURH). Pelas estimativas preliminares, deverão ser gerados R$ 174,8 milhões por ano, a serem distribuídos ao estado do Pará e aos municípios afetados, além dos ministérios de Meio Ambiente e Minas e Energia, e Fundo Nacional de Desenvolvimento de Científico e Tecnológico (FNDCT). Além disso, o município de Vitória do Xingu, onde estarão instaladas as Casas de Força Principal e Complementar, também será beneficiado pelo recolhimento do ICMS incidente sobre a geração de energia.

Quem realizou os estudos da Usina?
Os estudos sobre o aproveitamento hidrelétrico da Bacia do Rio Xingu foram iniciados ainda na década de 70, pela Centrais Elétricas do Norte do Brasil (Eletronorte). Em 1980 foram concluídos os estudos de inventário e, ao longo de toda a década, foram desenvolvidos os estudos de viabilidade do que era chamado Complexo Altamira. Em março de 1988, foi aprovado pelo então Departamento Nacional de Águas e Energia Elétrica (DNAEE) o Relatório Final dos Estudos de Inventário. Em 1999, a Centrais Elétricas Brasileiras S/A (Eletrobrás), holding estatal do setor no país, solicitou à Aneel autorização para realizar, em parceria com a Eletronorte, sua subsidiária, novos estudos de viabilidade da UHE Belo Monte, entregues parcialmente em 2002, em vista de embargos judiciais que determinaram a interrupção dos estudos ambientais. Em julho de 2005, o Congresso Nacional publicou o Decreto Legislativo nº. 788/2005 pelo qual autorizou a Eletrobrás a concluir os estudos. Em agosto de 2005, a estatal e as construtoras Andrade Gutierrez, Camargo Correa e Norberto Odebrecht assinaram Acordo de Cooperação Técnica para a conclusão dos Estudos de Viabilidade Técnica, Econômica e Socioambiental da UHE Belo Monte. Os estudos foram entregues à Aneel em março de 2009, com a incorporação de resultados dos estudos ambientais EIA/Rima, concluídos no período e entregues paralelamente à análise do Ibama.

Qual o papel do Ministério de Minas e Energia no desenvolvimento do projeto?
O Ministério de Minas e Energia (MME) é responsável pelo planejamento setorial, concessão de outorga para exploração de usinas hidrelétricas e pela definição das diretrizes dos leilões de energia. Também cabe ao MME indicar os aproveitamentos hidrelétricos a serem licitados e, por meio da Empresa de Pesquisa Energética (EPE), promover a "habilitação técnica" dessas usinas, desenvolvendo estudos para cálculo da garantia física, definição do ponto de conexão ao Sistema Interligado Nacional (SIN) e estabelecimento da tarifa-teto a ser considerada no Leilão.

Quais são as atribuições da Aneel nesse processo?
A Aneel é responsável por registrar, analisar e aprovar os estudos de inventário, viabilidade e projetos básicos dos aproveitamentos hidrelétricos do País. Essas atividades estão fundamentadas no Decreto nº. 4.970/2004, no Decreto nº. 4.932/2003 e na Resolução Normativa Aneel nº. 116/2004. É a Superintendência de Gestão e Estudos Hidroenergéticos (SGH) que exerce essas atribuições, de acordo com o Regimento Interno da Aneel.

Depois de concluídos os estudos de inventário, a Aneel concede registro aos interessados para autorizar o desenvolvimento de estudos de viabilidade técnica e econômica. Paralelamente, são realizados também os estudos socioambientais, que fazem parte do processo de licenciamento junto ao órgão competente (Ibama ou Secretarias Estaduais de Meio Ambiente), que varia com a posse do rio (federal ou estadual), a abrangência dos impactos e eventuais interferências sobre áreas e comunidades sob jurisdição da União. Cabe ao empreendedor obter a Licença Prévia (LP) junto a esses órgãos ambientais. Também é necessária a Declaração de Reserva de Disponibilidade Hídrica (DRDH), obtida junto aos órgãos gestores de recursos hídricos (ANA ou instituições estaduais). É do Ministério de Minas e Energia (MME) a competência para considerar o empreendimento apto a ser licitado e definir o tipo de leilão pelo qual será negociada a concessão e também vendida a energia. Essas diretrizes constam de portaria ministerial.

A partir daí, cabe à Aneel propor a minuta de edital de licitação, de acordo com as diretrizes estabelecidas pelo MME, como a definição do dia do leilão, as formas de contratação da energia a ser ofertada e a data de entrada em operação da usina. Toda essa fase é de competência da Superintendência de Concessões e Autorizações de Geração (SGC) e da Comissão Especial de Licitação (CEL), criada para acompanhar todos os processos licitatórios nas áreas de geração e transmissão.

O processo de divulgação do edital se dá com a aprovação da minuta pela diretoria colegiada e inclusão da proposta em processo de Audiência Pública, para proporcionar ampla divulgação e coletar contribuições de agentes do setor elétrico e da sociedade. Encerrada essa etapa, a área técnica analisa todas as contribuições e prepara a versão final do edital, que será submetido à aprovação da diretoria da Aneel, juntamente com o cronograma do processo. Constará do edital o valor a ser ressarcido pelo futuro concessionário aos responsáveis pelos estudos de inventário e de viabilidade, que incluem também os gastos com os trabalhos socioambientais e com o processo de licenciamento da usina. Este valor é objeto de auditagem pela Aneel. Os documentos finais são disponibilizados na página eletrônica da agência (www.aneel.gov.br) e publicados no Diário Oficial da União. A diretoria tem a prerrogativa de colocar a minuta em Consulta Pública, antes da Audiência. Nesse caso, a proposta da minuta do edital se torna pública antes da aprovação em reunião de diretoria.

Os passos seguintes para o leilão são definidos em cronograma publicado juntamente com o edital, com as datas de divulgação do manual de instruções, da reunião de esclarecimentos técnicos e de treinamento da sistemática do leilão, além do local e do dia do depósito de garantias financeiras. O cronograma traz também os passos posteriores à realização do leilão, como a data de assinatura dos Contratos de Compra de Energia no Ambiente Regulado (Ccear) dos empreendimentos que detêm a outorga de concessão. A Superintendência de Estudos de Mercado (SEM) é a responsável pelo cumprimento dos contratos de energia.

O vencedor do processo licitatório deve apresentar o projeto básico para aprovação da Aneel, em conformidade com as características definidas no contrato de concessão e no edital de licitação, respeitando as condicionantes estabelecidas no processo de licenciamento ambiental e na Declaração de Reserva de Disponibilidade Hídrica. A aprovação do projeto básico também é feita pela SGH, tendo como pré-condições a obtenção da Licença Ambiental de Instalação (LI) e da Outorga de Uso da Água, que dá sequência à DRDH obtida na etapa anterior.

A partir do início da construção da usina, a Aneel passa a acompanhar o cronograma de entrega das obras. A fiscalização é feita in loco. São divulgadas informações referentes ao cumprimento ou não dos prazos previstos, com os motivos do atraso, quando for o caso, além da existência de impedimento judicial e/ou ambiental e a expectativa de entrada em operação. Essa atividade é realizada pela Superintendência de Fiscalização da Geração (SFG) e os dados são públicos, disponíveis na página eletrônica da Aneel. Eventuais mudanças relevantes em relação ao projeto básico aprovado têm de ser novamente submetidas à SGH, na versão de um projeto básico consolidado.

Quais as licenças ambientais necessárias para o início das obras?
Durante todo o processo de viabilização de uma usina hidrelétrica são necessários três tipos de licenciamento ambiental: Licença Prévia (LP), Licença de Instalação (LI), e Licença de Operação (LO). De acordo com a legislação vigente, a LP deve ser solicitada na fase de planejamento da implantação, alteração ou ampliação do empreendimento. Essa licença não autoriza a instalação do projeto, apenas aprova sua viabilidade ambiental e autoriza sua localização e concepção tecnológica. Além disso, estabelece as condições a serem consideradas nas fases subseqüentes do projeto. A LI autoriza o início da obra ou instalação do empreendimento, enquanto a LO deve ser solicitada antes de sua entrada em operação, pois é essa licença que autoriza o início de seu funcionamento comercial.

Qual a área alagada para implantação da usina?
A área total de inundação da UHE Belo Monte será de 516km², dos quais 134km² estarão no Reservatório dos Canais e 382 km², no Reservatório do Rio Xingu.

Quanto deve ser investido na construção da UHE?
Os estudos de viabilidade técnica e econômica informam um investimento global, nos termos do Orçamento Padrão Eletrobrás (OPE), de R$ 17, 3 bilhões. Esse valor estava cotado a preços de dezembro de 2008, sem juros durante a construção e sem incluir custos do sistema de transmissão. A Empresa de Pesquisa Energética (EPE) definiu, em março de 2010, o custo das obras em R$ 19 bilhões, valor ratificado pelo Tribunal de Contas da União (TCU).

Qual será a tecnologia utilizada na construção da usina?
A UHE Belo Monte operará a "fio d'água", ou seja, sem reservatório de acumulação. Serão utilizados dois tipos de turbinas: Francis e Bulbo. Na Casa de Força Principal, no Sítio Belo Monte, será utilizada a turbina Francis, própria para desníveis entre 40 e 400 metros. A queda observada no local será de 90 metros. A unidade geradora a ser usada na Casa de Força Complementar, no Sítio Pimental, utiliza turbinas hidráulicas tipo Bulbo de eixo horizontal, acoplada a um gerador, também horizontal, que se encontra dentro de uma cápsula metálica estanque, totalmente imersa no fluxo hidráulico. Como esse fluxo é axial, ou seja, paralelo ao eixo da unidade, as passagens hidráulicas das turbinas Bulbo envolvem menores perdas. A queda na casa de força complementar será de 11,5 metros.

Quanto vai custar a energia gerada em Belo Monte?
O preço do MWh a ser gerado em Belo está associado, basicamente, ao custo da usina e do correspondente sistema de transmissão de uso exclusivo. Naturalmente, o preço final da energia, nos centros de consumo, envolve também as tarifas de uso dos sistemas de transmissão e distribuição (TUST e TUSD). Quanto mais distante estiver o aproveitamento hidrelétrico dos centros de consumo, maior será o custo do sistema de transmissão. O Brasil já utilizou os principais aproveitamentos hidrelétricos mais próximos aos centros de consumo. Com isso, a tendência é que haja um aumento progressivo no valor devido ao aproveitamento de rios mais distantes. No caso da UHE de Belo Monte, o Ministério de Minas e Energia (MME) definiu o preço mínimo em R$ 83 por MWh.

Qual a sistemática do leilão?
Trata-se de um leilão descendente, onde ganha a concessão quem oferecer a menor tarifa de energia, cujo preço-teto é definido pelo MME. Esse modelo é o mesmo adotado para os outros leilões de energia nova.

A energia gerada fará parte do Sistema Interligado Nacional (SIN)? Que obras serão necessárias para isso?
Sim. O SIN permite o intercâmbio de energia produzida por todas as usinas que compõem o sistema. No caso da UHE Belo Monte, a interligação ao SIN deverá ser feita por cinco linhas de transmissão em 500kv, com extensão de aproximadamente 17 km, operando em corrente alternada. O ponto de interligação com a Rede Básica será a subestação secionadora Xingu, que faz parte da interligação Tucuruí-Macapá-Manaus. A partir desta subestação partirão as interligações previstas com as regiões Sudeste/Centro-Oeste e Nordeste.

Haverá benefícios financeiros para o estado e os municípios diretamente afetados pela usina?
A estimativa de Compensação Financeira pela Utilização de Recursos Hídricos (CFURH) a ser gerada pelo empreendimento é da ordem de R$ 174,8 milhões. O valor será rateado em proporções legalmente instituídas entre a União, o estado do Pará e os municípios afetados.

segunda-feira, 22 de novembro de 2010

Por um novo brasileirão

O campeonato brasileiro, dito Brasileirão, mas que eu considero brasileirinho, chega ao final, de forma aparentemente emocionante, com três clubes embolados nos três primeiros lugares: Fluminense, Corinthians e Cruzeiro, 65, 64 e 63 pontos. Faltam só duas rodadas, mas, a julgar pelas duas últimas, podem haver mudanças nas posições, e o título está em aberto. Ouso dizer, porém, que esta 36ª rodada foi decisiva. Os destaques deste campeonato foram as participações dos árbitros e dos clubes que perderam interesse na competição.

O Fluminense retomou a vantagem, vencendo o São Paulo, beneficiado pelo tropeço do Corinthians (empatar com o Vitória, que jogava em casa e precisava vencer, para escapar do rebaixamento, não é nenhuma zebra), enquanto o Cruzeiro fez sua parte e venceu o Vasco (o desespero do clube de azul na semana passada não se justificou).

Para não vencer, o clube paulistano contou com um pênalti também polêmico (eu acho que foi, acho que o árbitro deve sempre beneficiar o ataque, em vez de deixar passar botinadas e bolas na mão; nas peladas a gente decide as dúvidas de forma muito mais justa). Mais grave, porém, foi perder Ronaldo. Sem o gordo fenomenal, o Corinthians voltou a ser um time comum. Como não deve jogar nas duas últimas partidas, o timão pode tropeçar até diante do Vasco e do Goiás.

De qualquer forma, o tricolor carioca só depende dele para ser campeão: vencer o Palmeiras "de olho na Sul-Americana" e o Guarani "rebaixado ou virtualmente rebaixado" não deve ser mais difícil do que golear o São Paulo "entrega!". Mais difícil é a tarefa do clube mineiro, que precisa derrotar o Flamengo, no Rio, antes de pegar os reservas do Palmeiras na última rodada.

A rodada de ontem, muito mais do que a anterior, que, no entanto, provocou celeuma, ao que tudo indica, foi a decisiva para o campeonato. Mostrou que o clube preferido peo senador eleotp Aécio Neves jogou a toalha antes da hora. Se havia esquema armado, ele não beneficiou o clube pelo qual torce o presidente Lula, mas o clube do coração de Chico Buarque. Ou será que, ao botar a boca no trombone, Cuca, seus comandados e superiores conseguiram reverter a armação, levando o tricolor paulista a entregar e o árbitro gaúcho compensar o resultado daquele Corinthians 1 X 0 Cruzeiro com outro pênalti duvidoso?

O fato é que na penúltima rodada, Cruzeiro e Corinthians precisarão derrotar times que também precisam vencer: o novo clube do treinador Luxemburgo "de triste memória" luta contra o rebaixamento, enquanto o Vasco, embora estaja em situação melhor, não está livre da degola e precisa vencer também para garantir uma vaga na Copa Sul-Americana.

Vencendo os reservas do Palmeiras, o Flu porá uma mão na taça – quem sabe com as duas. Conquistará um título que era fácil e parecia certo, mas quase deixou escapar. Na verdade, o pior cenário naquele confronto entre paulistanos e belo-horizontinos, na 35ª rodada, seria vitória dos visitantes. Mas, convenhamos, o Cruzeiro reclamou da derrota, não do empate, com o qual estava bem conformado.

Digamos que o clube paulista e o time mineiro empatem no próximo domingo e o carioca vença: seria preciso que o Guarani realizasse a proeza de vencer o time treinado pelo tricampeão Muricy para que este não se torne campeão. Futebol é imprevisível e tanto é possível que o Fluminense perca para o Palmeiras quanto Corinthians e Cruzeiro podem vencer Vasco e Flamengo.

Na parte inferior da classificação, Grêmio e Goiás já foram degolados; Guarani (37 pontos), Vitória, Avaí, Atlético Goianiense (40), Atlético Mineiro (42), Flamengo (43), Ceará e Vasco (46) continuam lutando para não cair. Exceto o time de Campinas, todos ainda podem conquistar as duas vagas em aberto na Copa Sul-Americana. Como Vasco e Ceará se enfrentam na última rodada, no Rio, é praticamente certo que um dos dois ficará com uma vaga e apenas a outra restará para os demais.

A luta contra a degola é menos equilibrada: Flamengo enfrenta, em casa, o Cruzeiro "ainda com esperança de ser campeão", em casa, e o Santos "de férias", fora. O Galo enfrenta o Goiás "rebaixado", em casa, e o São Paulo "de férias", fora. O Atlético GO enfrenta o São Paulo "de férias", em casa, e o rival Vitória, fora. O Avaí joga contra o Santos "de férias", em casa, e o Atlético PR "de férias", fora. O Vitória, antes do confronto decisivo com o Atlético GO, enfrenta antes o Internacional "de olho no título mundial" (mas que ganhou do Botafogo ontem), fora. O Guarani enfrenta o Grêmio "de férias", em casa, e o Flu "defendendo o título", fora.

O que chama atenção é como, nesta reta final, a classificação está sendo decidida por clubes que nada mais têm a ganhar ou perder (além de árbitros que usam critérios diferentes em lances semelhantes). Palmeiras, São Paulo, Grêmio, Botafogo, Atlético PR, Santos e Internacional são clubes que entram em igualdade de condições em qualquer confronto, seu desempenho pode definir quem será campeão e quem cairá, no entanto, não têm nenhuma motivação para vencer. Alguém supõe que o São Paulo seria goleado como foi ontem se precisasse vencer para ser campeão? Ou que o Palmeiras ficasse tão conformado com a derrota como esteve ontem. Lembremos que ambos jogavam como mandantes.

Se o campeonato termina com as emoções da indefinição do título e dos rebaixados até a penúltima rodada, é certo também que para grande parte dos torcedores ele não tem motivação nenhuma. Sempre defendi a fórmula dos pontos corridos, inegavelmente mais justa – por ela, o Galo, um dos clubes mais regulares até o começo dos aos 2000, teria conquistado o bicampeonato em 1977 e provavelmente outros títulos mais. É preciso reconhecer, porém, que a emoção foi varrida pela justiça.

Justiça parcial, aliás. Mais grave do que a perda de emoção é que este campeonato está longe de ser um "brasileirão", está muito mais para um brasileirinho. Como chamar de nacional uma competição com 20 clubes num país que tem 26 estados e um Distrito Federal? Nem que fosse um clube de cada unidade da Federação, estaria esta representada. Nós, do Sul Maravilha, ignoramos o que acontece no Nordeste, no Norte e no interior do país, mas nesses lugares também se joga futebol. Com muito mais emoção e mais torcedores nos estádios do que aque entre nós. Se os clubes dessas regiões não têm projeção nacional é porque estão fora das tevês – também concentradas aqui, e mais precisamente em São Paulo e Rio – e não têm grandes patrocionadores. Tal situação só mudará quando eles fizerem parte do campeonato nacional, o que jamais acontecerá numa competição restrita a 20 agremiações.

A experiência nos ensina e eu defendo que já está na hora de o futebol brasileiro criar uma nova fórmula de campeonato nacional. Uma mistura de Copa do Brasil com Brasileirão, com duas fases distintas. Um campeonato com clubes de todos os estados – digamos, 40, ou um pouco mais (número ímpar para que todos fizessem o mesmo número de partidas em casa e fora). Na primeira fase, todos se enfrentariam, em turno único: o primeiro colocado seria o campeão brasileiro. Na segunda, disputariam os 16 melhores, na fórmula de copa: o campeão seria o campeão da Copa do Brasil.

Teríamos assim a mistura da justiça com a emoção, e poderíamos chamar a competição realmente de Campeonato Brasileiro.

Num campeonato com 41 clubes, a queda de quatro para a segunda divisão é razoável, num campeonato de 20, não. A série B não qualifica um time para sobir para a série A, ela funciona muito mais como punição. Ao mesmo tempo, ainda que não exista grande diferença entre os quatro últimos e outros times da série A, quatro estão condenados a cair. O Brasil tem alguns clubes que estão à frente dos outros (e mesmo estes costumam tropeçar), mas a imensa maioria parte se compara. Não é justo que um caia e outro não. Menos justo ainda é que seu lugar seja ocupado por um time pior. Tudo isso se pôde ver este ano.

Num campeonato verdadeiramente nacional, com 40 clubes (ou um pouco mais), a queda contemplaria os piores e subir seria um prêmio cobiçado por aqueles que tenham caído no ano anterior. Ainda que caíam quatro clubes da regiões esquecidas do país, a maioria dos estados continuaria representada. Para que esta situação fosse revertida, seria preciso um longo período e que o futebol destes estados comprovasse sua inferioridade. Ainda assim, haveria chance de que, com o tempo, o quadro mudasse. Enquanto isso, os brasileiros teriam a recompensa de conhecer mais sobre todo o país, que muitos consideram se limitar ao eixo Rio-SP.

quarta-feira, 17 de novembro de 2010

Passeio no Rio

"Escolhemos ficar no Centro para visitar a pé essa parte do Rio tão linda e cheia de História. Valeu a pena! A restauração deixou o Theatro Municipal esplendoroso! A Biblioteca Nacional é um colosso com as suas mais de 10 milhões de obras bem arquivadas! O Museu Nacional de Belas Artes é uma maravilha, tanto no que se refere ao seu acervo permanente, quanto na exposição de parte do acervo do Itaú Cultural, com as pinturas do Brasil Colonial representado pelas obras de Frans Post e Albert Eckhout! A Confeitaria Colombo intacta e que virou uma grande atração turística! Tomar um chopp no Amarelinho ou no Bar Luis, que bom! Tomar o bondinho de Santa Teresa e ir comer um bom prato nordestino no Bar do Arnaudo(É com ‘u’ mesmo!). O agito da Lapa! Saímos num sábado à noite passeando pela Av. Mem de Sá, que a partir das 22h vira rua de pedestres, com centenas de bares, casas de samba e restaurantes, e o povo em paz aproveitando o que está ao alcance do bolso de cada um, ou simplesmente flanando! Uma festa democrática que não conheço em nenhum lugar do mundo! Calculo que pelo menos 50 mil pessoas transitavam pelas ruas do bairro. Agora vem a parte triste, desoladora, a da nossa visita ao Palácio Gustavo Capanema e nos depararmos diante do enorme painel de Portinari, no 2º andar, com os estragos feitos por dutos de ar condicionado!!! Veja abaixo as fotos que tiramos..." (José Antônio Araújo)

A velhice do mundo eternamente jovem

O melhor da vida é a juventude, e a melhor parte da juventude é a infância. Juventude é brincar, maturidade é trabalhar; juventude é descobrir, maturidade é... descobrir que o melhor ficou para trás. O melhor do mundo também já ficou para trás, na sua juventude.

Quando eu era jovem, me incomodava com o discurso dos velhos: "no meu tempo..." Saudosismo. Os velhos da época, talvez mais jovens do que sou hoje, viam seu mundo desmanchar. E não era apenas porque a juventude tinha ficado para trás, é porque o mundo mudava rapidamente. Minha geração, jovem e ligada no novo, considerava aquilo saudosismo, coisa de velho. O que era velho estava ultrapassado. O novo é melhor. Minha geração elegeu a juventude como o valor mais importante. Minha geração não envelheceu. Era o começo do mundo contemporâneo, da etera juventude.

Envelhecer era um ritual: passar de uma idade a outra. Fases bem nítidas da vida: a infância (brincar), a adolescência (o começo das responsabilidades), a juventude (o começo da vida adulta), a maturidade (a plenitude), a velhice (a autoridade, o respeito). Minha geração parou na juventude. "Jovem para sempre!" foi o lema de quem se tornou adolescente depois da Segunda Guerra Mundial.

A primeira geração é aquela da qual fazem parte os Beatles; no Brasil, Chico Buarque, Gilberto Gil, gente que nos anos 60 entrou na casa dos vinte anos. Essa geração, cujo marco foi o ano de 68, em muitas partes do mundo, com suas manifestações, lemas e ícones, foi uma geração que decidiu ficar jovem para sempre. Em 1976, Gilberto Gil foi preso por uso de maconha, aos 34 anos; em 2010, os Rolling Stones continuam excursionando como uma banda de adolescentes, aos 70 anos. A minha geração veio em seguida e já considerava a juventude um valor permanente.

O uso eterno do jeans – uma roupa de vaqueiros americanos, que virou moda jovem – e dos cabelos grandes para rapazes (mesmo brancos, mesmo ralos), a adoção do tênis como calçado universal, o rock como música permanente, mesmo virando pop, mesmo perdendo qualquer caráter de contestação. A juventude eterna virou um produto de consumo, um valor universal. Jovens de setenta anos, é o que temos hoje.

Transformada em valor eterno e em consumidora, a juventude eliminou as demais idades: a velhice, com sua autoridade e sabedoria, foi destronada; a infância foi eliminada, para que as crianças se transformassem rapidamente em jovens e integrassem o mercado de consumo, pois produtos para crianças propriamente ditas são poucos, crianças inventam brincadeiras com imaginação. Antecipar e prolongar a juventude. Indústrias e mais indústrias da juventude eterna: cirurgias plásticas, academias de ginástica, cosméticos, medicamentos... As crianças são evitadas, os velhinhos são descartados: quem não for consumidor, quem não for jovem, não serve.

Mas a vida é feita de contradições: o melhor da vida é a juventude e a juventude do mundo ficou para trás. Este mundo da juventude eterna é um mundo velho.

O futebol, por exemplo. Jamais teremos outro Pelé, jamais teremos outro Garrincha, jamais teremos copas do mundo como as de 58 e 62,times como o Santos. O melhor futebol ficou para trás. Temos hoje o vício de consumir futebol, e é só. Futebol, hoje, é parte do mundo de consumo, onde tudo é preparado para vender. Consumimos futebol porque somos viciados nele, mas os bons tempos ficaram para trás.

Meu pai viu o futebol envelhecer. O futebol era jogado por muitos e presenciado no campo por alguns milhares, era uma emoção que fazia parte da sociedade, um acontecimento social vivido por pessoas que se conheciam. Era preciso ir ao compo para ver os craques, os times, os grandes jogos. Os craques de então eram jovens comuns, talentosos e atletas por natureza – nem sempre o talento e o vigor físico conviviam no mesmo jogador. O público que ia ver os jogos nos domingos à tarde, eram vizinhos, conhecidos, pessoas que se encontravam ao longo da semana. Os feitos ficavam na memória de cada um, sem replei, sem videoteipe.

Somos formados na ideia de que o novo é melhor, de que o novo produto e a nova tecnologia são mais avançadas. Essa ideia faz parte do valor da eterna juventude. No nosso mundo não há lugar também para objetos velhos. Velho é pior, velho é superado. Se em parte isso é verdade, pelo avanço da tecnologia, em outra parte é a ideologia do sistema, que exige o descarte do velho, para que compremos o novo. Uma parte é avanço tecnológico, outra parte é consumismo. Mesmo que a tecnologia não avance, o produto muda, para parecer melhor, novo, mais jovem. A juventude é o apelo para o consumo. O produto não é feito para durar. Pra quê? Daqui a um ano haverá um novo modelo e o atual estará obsoleto.

Esse mundo de eterna juventude e de consumo do novo, inverteu as posições. Nas gerações anteriores, velhice era sinal de sabedoria, de experiência, de conhecimento. É compreensível: quem viveu mais conhece mais. No mundo contemporâneo, velhice é sinal de obsolescência, porque o conhecimento vem da tecnologia, não da experiência. Num mundo que se renova continuamente, para que serve a experiência? É preciso conhecer o novo, a nova tecnologia.

O jovem leva vantagem sobre o velho, porque é mais fácil aprender na juventude e porque ele não tem de desaprender a tecnologia antiga. O conhecimento das pessoas mais velhas torna-se inútil, está superado. Desperta aquele sentimento que eu tinha quando ouvia meu pai falar que o antigo era melhor: saudosismo. O velho precisa ser "eternamente jovem" para continuar capaz de operar o mundo. Ser eternamente jovem não é mais uma questão apenas de aparência e linguagem, é também uma imposição do sistema.

Daqui a alguns anos ninguém se lembrará mais que a juventude do mundo antigo foi melhor do que a velhice deste mundo eternamente jovem, ninguém se lembrará que o futebol de Pelé e Garrincha foi o melhor de todos os tempos. Os velhos que viveram a juventude do mundo estarão mortos e com eles aquela experiência. No entanto, como o mundo é feito de contradições, a população humana estará envelhecida, pois a fecundidade diminui, e em algumas décadas teremos muitos velhos, muitos adultos e poucos jovens, poucas crianças. A ideia de juventude estará subvertida, num mundo velho. A ideia da eterna juventude será uma coisa de velhos. As novas gerações terão de recuperar a infância para seus filhos, depois de recuperar o desejo de ter filhos. Talvez recuperem as fases da vida e as idades perdidas.

quinta-feira, 11 de novembro de 2010

Livros e filmes: Algumas coisas sobre 'O apanhador no campo de centeio'

Dizem que “O apanhador no campo de centeio” (diabo de nome esquisito, mesmo porque o dicionário recusa a palavra “apanhador” e campo de centeio não nos diz nada, a nós, brasileiros) é sobre a geração do pós-guerra, que é o primeiro livro sobre adolescentes escrito em linguagem de adolescente, que é um livro sobre a busca da essência e a rejeição ao mundo dos adultos. Aliam-se a isso as excentricidades do autor: Jerome David Salinger viveu recluso desde a publicação do livro, em 1951; não deu entrevistas nem se deixou fotografar; publicou pouquíssimos volumes e nenhuma outra história tão grande; não permitiu que seus livros contivessem mais do que as próprias histórias; e ainda, segundo sua ex-mulher, seria dado a práticas estranhas como beber seu próprio xixi. Por último, casou-se com uma mulher cinqüenta anos mais jovem (ele nasceu em 1º de janeiro de 1919). E tem ainda o fato macabro de o assassino de John Lennon ter pedido um autógrafo ao ídolo antes de matá-lo e declarar depois que o entendimento para seu ato está no livro. Pronto: temos um mito. Eu acrescentaria que ele me lembrou “O encontro marcado”, de Fernando Sabino, com o qual tem alguns paralelos: “O encontro...” também é um livro sobre a juventude, também fala da angústia de busca, foi escrito na mesma década, o escritor mineiro pertence à mesma geração de J. D. Salinger e bate na tecla da mesma idade mítica, os dezessete anos, idade do protagonista de “O apanhador...”, Holden Caulfield. Me parece óbvio que o livro é bom porque contém uma história que nos prende até o final. Sabemos que nos vai ser revelado o que acontece ao jovem H. C. e a cada página que passa estamos mais interessados em saber o que acontece com ele, porque o conhecemos mais (e gostamos mais dele, uma das mágicas de qualquer história: empatia). Também me parece certo que a narrativa na primeira pessoal e a linguagem coloquial que advém dela, cheia de gírias e palavrões – o que é um desafio para o tradutor e ao mesmo tempo um fator de envelhecimento, porque gírias e palavrões não apenas pertencem a um lugar e a uma língua, mas também a um tempo, fazendo com que a tradução, de certa forma, soe artificial – é um dos segredos do seu sucesso, porque confere autenticidade à história. Também me parece correto afirmar que a história retrata o pós-guerra, os anos que precederam o rock’n’roll e, especificamente na literatura, a geração beat. Ou seja, depois da revolução de James Dean e Marlon Brando, Jack Kerouac e Allen Ginsberg, Elvis Presley e Bob Dylan, e dos Beatles, “O apanhador...” não pega mais ninguém de surpresa, não tem o mesmo impacto, porque nos últimos cinqüenta anos a adolescência tornou-se uma idade respeitada. Tão respeitada que atravessou os vinte anos e já chegou aos trinta. Mais do que isso, hoje há roqueiros sessentões que ainda se comportam como jovens. Hoje existe o jovem profissional, há uma moda jovem, há música para jovens, há produtos para jovens. Pela data em que foi publicado, “O apanhador...”, se não é o precursor, é um dos precursores dessa valorização da juventude. “O apanhador...” é sem dúvida um livro para adolescentes. Como obra de arte que é, pode ser lida com prazer e interessar a pessoas de todas as idades. Eu o li agora, e imagino o impacto que teria sobre mim se a lesse aos dezessete anos, como li “Crime e castigo”. Há uma outra coisa que não foi dita, uma coisa que me tocou agora e me tocaria ainda mais naquela idade: o adolescente está desconfortável no mundo dos adultos, que não o compreende, que o maltrata, que quer enquadrá-lo. O adolescente quer um monte de coisas que está descobrindo e não pode ter, não consegue ter, por causa da sua idade, sim, mas também porque o mundo, que é feito e governado pelos adultos, não oferece. Diante de um mundo no qual não se reconhece e porque se recusa a crescer e se tornar o que rejeita nos adultos, o adolescente quer fugir. Reagindo às suas frustrações e à falta de acolhimento que sente entre aqueles nos quais deveria encontrar amor e compreensão, o jovem de dezessete anos quer sair de casa. Quer ir para bem longe, para um lugar em que não o conheçam, quer trabalhar em qualquer coisa apenas para poder comer, vestir, morar e levar a vida sem falsidades. Essa fuga, esse abandono do lar e da escola, é uma forma de liberdade. É a idéia que dá alegria, que redime, que afasta a depressão, que renova a vontade de viver, que ele sentia na infância, quando era ingênuo, não sabia nada e confiava nos adultos. Não importa o que acontecerá, importa apenas que ele está se libertando daquele mundo opressivo e que construirá sua própria vida. Visto assim, a rebeldia da adolescência nada tem de espantoso. É apenas o amadurecimento do homem, é o passo do menino que se torna homem, é um rito de passagem. É preciso romper e assumir o próprio destino para se tornar homem. O que torna opressivo (e depressivo) este mundo para o adolescente é a incongruência entre o que pensa, sente e deseja e o que o mundo dos adultos lhe oferece. É também a contradição que vê entre os valores que aprendeu e acredita – talvez mais do que isso, os valores que sente no fundo do coração – e os comportamentos dos adultos e mesmo dos jovens à sua volta. Apenas as crianças parecem conservar a pureza com a qual se identifica – embora nem ele mesmo seja tão puro, e sim contraditório, o que o deprime mais ainda. Por isso esse adolescente ama as crianças, como H. C. ama sua irmã caçula e sonha ser um “apanhador” num campo de centeio. Os beatniks pertencem à mesma geração de Salinger e têm temática semelhante, mas eles põem o pé na estrada, tornam-se marginais – usar drogas e ser gay são apenas aspectos dessa marginalidade. Escrevem o que vivem na estrada, que é a opção do jovem rebelde. “O que é a vida? Não sei. Só sei que não é essa droga que querem me impingir” – é como se dissessem. Escrevem sobre o que encontram na estrada, e na estrada encontram de tudo, tudo que encontram na estrada vale. Hoje em dia, ser gay não é mais ser marginal, é um status, como ser jovem, e usar drogas passou a ser apenas vício intimamente ligado ao mundo do crime. Este mundo é ainda o mundo capitalista, no qual não basta ser, é preciso ter; no qual não cooperação, mas competição; no qual é preciso progredir, ganhar dinheiro, ocupar posições, trabalhar duramente em lugares, ambientes e ofícios dos quais não se gosta. Uma rebeldia a esse mundo é o rock’n’roll, a eterna juventude; outra, é o socialismo, um outro mundo. O socialismo finalmente morreu, nos anos 90. A rebeldia jovem foi digerida pelo capitalismo, que transformou a juventude em consumidor. Será que o incômodo da adolescência acabou? Será que a revolução que “O apanhador...” inspirou mudou isso? É o que me pergunto. O sucesso contínuo do livro parece sugerir que não. Também é possível afirmar que a rebeldia da juventude não começou na década de 1940. A reacionária igreja católica tem nas suas hostes um religioso – Dom Bosco – que já no século XIX procurou compreender a juventude e dar-lhe o acolhimento que busca com sua rebeldia. Nossas escolas, porém, ainda estão longe de ser locais de acolhimento de adolescentes confusos. Os adultos estão longe de compreender a juventude e oferecer-lhe o que precisa receber. As famílias estão mais desfeitas do que nunca, os pais tão ausentes quanto nunca estiveram e a autoridade, intimidada. Esse desconforto em relação ao mundo é um sentimento próprio do homem, que se manifesta pela primeira vez, em geral, na adolescência. Não é à toa que há tantos suicídios entre adolescentes. Esta é a idade em que os homens precisam ser acolhidos, ser aceitos como são, receber apoio e afeto, mas também limites. Será o mundo capitalista capaz de nos dar isso? Será possível um mundo melhor sem que os homens sejam acolhidos na adolescência? Aquele beco sem saída da adolescência, que “O apanhador...” retrata tão bem, é na verdade um labirinto, pelo qual os adultos podem ajudar jovens a se locomover. No entanto, esta atitude “educativa” está longe de ser a predominante ainda neste começo de século XXI.

Livros e filmes: A bolha e o piropo

A pretexto de mostrar a insustentável vida em Tel Aviv, capital de Israel, o diretor Eytan Fox fez um belo filme de amor homossexual, que se tornou sucesso de bilheteria. Há alguma coisa de selvagem no amor entre dois homens que os heterossexuais não entendem. Assim como existe uma delicadeza incompreensível no amor entre duas mulheres. São justamente essa selvageria e essa delicadeza que tornam o amor “um jogo difícil de acertar”, como diz o samba. O homem se queixa das frescuras femininas, a mulher se queixa do machismo. Ou: o marido reclama da falta de interesse sexual da mulher e a mulher, da falta de carinho do homem. Essas diferenças se resolvem na paixão, quando, por algum tempo, homem e mulher parecem falar a mesma língua: o homem fica delicado como uma moça, a mulher fica disponível como um rapaz. Mas a paixão passa. O que faz duradouro um relacionamento são outras coisas. Alguém pode dizer: o amor. Muitos relacionamentos duradouros, porém, não têm amor. No amor, homem e mulher falam línguas diferentes. Por isso dois homossexuais se compreendem tão bem, falando a mesma língua. Duas lésbicas também, falando outra língua. A dificuldade do relacionamento heterossexual está em a mulher compreender a língua do homem e o homem compreender a língua da mulher. O homem que compreende a mulher é um Dom Juan, a mulher que compreende o homem é uma libertina (embora o donjuanismo seja criticado, tem certo charme, enquanto figuras como Lilith, Safo e Messalina só evocam reprovação). A motivação do amor heterossexual é o fascínio que o sexo oposto exerce sobre homens e mulheres. O mistério que provoca encantamento é o mesmo que torna a relação difícil. Que ninguém tome isso como uma análise psicológica. No fundo, é apenas um piropo. Ah se as mulheres, além de nos encantar, nos compreendessem!

Livros e filmes: Ensaio sobre a cegueira

Não li o livro, não gostei do filme. Fui vê-lo porque pensei que era imperdível um filme sobre uma obra de Saramago – o prêmio Nobel de língua portuguesa do qual nunca consegui ler um livro –, dirigido por um brasileiro também reconhecido internacionalmente. Saí dizendo: para que filmar isso? Vá lá que Saramago o tenha escrito, mas para que transformar essa história em filme? Para que fazer o público ficar duas horas assistindo àquelas cenas desagradáveis? A gente vai ao cinema para ter prazer... A cegueira é uma metáfora tão óbvia! Com o passar do tempo, algumas idéias me vieram à cabeça, algumas imagens, algumas lembranças do filme. Cada um vê o que quer ver. Não sei o que Saramago escreveu, não sei se o filme é a recriação fidedigna da obra. Sei apenas que o escritor português assistiu ao filme ao lado do cineasta e o aprovou. Sei também que Ensaio sobre a cegueira não é uma obra de arte surrealista, não é um filme de Buñel, apesar de nos remeter ao cineasta espanhol. Apesar da metáfora óbvia, ele não é repleto de simbologias e compreensões que remetem ao inconsciente, não tem cenas cômicas, não é permeado por humor. Saramago não é um autor bem-humorado. Um mistério da história é por que a personagem principal (interpretada por Julianne Moore) conserva a visão. Ela é uma pessoa boa, como mostra uma das cenas iniciais. Todos nós conhecemos pessoas boas, não? Pessoas que parecem não ser deste mundo, pessoas que fazem o bem, cuja companhia dá alegria, pessoas que são assim desde que nasceram, que parecem atrair coisas boas e que não parecem fazer nenhum esforço em ser assim. Essa idéia é quase religiosa e repugna os ateus e agnósticos, no entanto, essas pessoas existem, duvido que alguém não conheça pelo menos uma. A fábula se completa quando a visão volta para o homem que ficou cego primeiro. Isso acontece quando aquele grupo compartilha a mesma casa, que deixa de ser propriedade privada. Ensaio sobre a cegueira é nitidamente um filme comunista. Nesse sentido, Saramago é um pensador que propõe a volta ao passado. Há gente inteligente, sensível, progressista, que torce o nariz para idéias assim – são pessoas, como o adjetivo mostra, que acreditam no progresso. Me pergunto, porém, se é possível progredir assim, se não é preciso retomar valores do passado para ter um mundo melhor. A idéia de progresso é ideológico, é como a burguesia travestiu, para tornar aceitável, sua busca incessante do lucro. Recuperar valores e sentimentos da vida simples, compartilhada, um nítido contraste com a sociedade contemporânea, moderna, moderníssima, mostrada no começo do filme, na qual a estrela é o automóvel – barulhento, irritante, violento, lindo, veloz. Não à toa o filme começa numa avenida, no trânsito caótico no qual aprendemos todos a nos mover, cuja violência aprendemos a ignorar, cuja insanidade aprendemos a não ver. A criação do ambiente da cidade dos cegos é impressionante. Onde foram as locações? Tenho impressão de ser São Paulo, acho que até li alguma coisa sobre um domingo de filmagens, que interferiram numa apresentação no Teatro Municipal, mas não pude confirmar, porque, além de os letreiros do filme serem pequenos e rápidos, o (projetor) do Usina tem o péssimo hábito de acender as luzes e finalizar a projeção quando as pessoas começam a se levantar (dia desses tive de ver o apêndice de Quando j’erais chanteur com as luzes acesas). A trilha sonora de Marco Antônio Guimarães não apenas é lindíssima, mas é também uma honra para nós, mineiros. No entanto, devo dizer que as imagens da fila indiana de cegos andando pelas avenidas e ruas da cidade imunda me emociona mais na fotografia do que emocionou no cinema.

Livros e filmes: O sacerdote e o feiticeiro

O primeiro livro da série sobre a ditadura militar, do Elio Gaspari (na grafia de nomes, ele segue, em geral, a regra do seu próprio: não põe acentos), é um livro fundamental. Livros fundamentais são aqueles que mudam a forma como a gente vê o mundo: Crime e Castigo, por exemplo, quando o li, aos dezessete ou dezoito anos. Trata-se de uma tetralogia ou mais que isso, com o nome genérico "O sacerdote (Geisel) e o feiticeiro (Golbery)"; não pretende contar a história da ditadura militar (1964-1985), apenas reconstituir como a dupla citada entrou e saiu dessa aventura, como os dois criaram o regime militar e como acabaram com ele. Eu já havia lido o terceiro livro, "A ditadura derrotada", mas não me impressionou como esse.
Por que é um livro fundamental? Porque, ao reconstruir o golpe militar e a gradativa radicalização do regime, com riqueza de detalhes jornalísticos e sob vários pontos de vista, a partir dos arquivos de Golbery e Geisel, e centenas de entrevistas, ele nos dá uma visão nova da história do período.
Ao contrário das visões ideológicas, tanto de direita quanto de esquerda (várias de uma e de outra), o que aconteceu no Brasil sob o comando militar foi uma bagunça. O País era já uma bagunça antes, sob o governo Jango, mas a bagunça armada, dos militares, foi muito pior, porque muito mais violenta. A radicalização, ao contrário do que pensa que cresceu na noite da ditadura, foi um desejo da esquerda tanto quanto da direita. Entre 64 e 68, ao mesmo tempo em que as regras civilizadas de convivência política na nação foram quebradas, uma direita sem controle do governo e uma esquerda desacreditada da luta política e incentivada pelo castrismo, partiram para a luta armada.
Obviamente, a esquerda, sem o aparato do Estado e menos numerosa, perdeu. Perdeu a guerra e em grande parte a vida. Eram principalmente militares de baixas patentes (soldados, cabos, sargentos e um ou outro oficial) colocados na marginalidade pelo regime militar e jovens de classe média e alta, em geral universitários, que haviam liderado o movimento estudantil. Além de outros segmentos, como padres dominicanos e integrantes da esquerda católica.
A ditadura foi uma bagunça, assim como o fora antes o governo populista. O que impressiona é quão pouco ideológicas foram as ações da ditadura, como interesses particulares e instintos primitivos prevaleceram, aterrorizando o País. Ao mesmo tempo, como foram românticos os revolucionários esquerdistas (tanto um lado como o outro se denominavam "revolucionários", embora não tenha havido revolução nenhuma, nem de esquerda nem de direita), dispostos a morrer pela causa, sendo presos e torturados, assassinados como moscas. Do romantismo esquerdista, é bom que se diga, fazia parte matar inimigos e até inocentes, chegando ao extremo de "justiçar" os próprios companheiros sobre os quais pairavam dúvidas. Enfim, é um período negro da história do Brasil, da qual não ficou nada de bom, sobre a qual não há nada a aproveitar. O conhecimento que vem da leitura do livro mostra como um povo entrou num inferno, do qual os sobreviventes saíram piores do que eram.
Não é à toa que a violência dos traficantes campeia, sem controle do Estado; não é à toa que os políticos de esquerda que chegaram ao poder desde 1985 traíram e continuam traindo seus eleitores, dedicados a governar para si e para os seus. A ditadura tornou o País ainda mais amoral do que era. Nós, brasileiros, somos ruins, muito ruins.

Gênesis

O Gênesis diz:
1) Deus criou o universo;
2) Deus criou o homem;
3) Deus pôs o homem no paraíso, recomendando-lhe não comer nem da árvore do conhecimento do bem e do mal nem da árvore da vida;
4) Deus criou a mulher de uma costela do homem para lhe fazer companhia;
5) A serpente tentou a mulher e esta comeu da árvore do conhecimento e deu ao homem, que também comeu;
6) Descobriram que estavam nus e tiveram vergonha;
7) Sabendo pelo homem que o tinham desobedecido, Deus puniu a serpente a ser inimiga do homem (morder seu calcanhar e ser abatida a cacetada na cabeça), puniu a mulher a dar à luz em meio a dores e puniu o homem a trabalhar para sobreviver, até tornar à terra, da qual foi formado;
8) Para não comer também da árvore da vida, Deus os expulsou do paraíso (“Eis que o homem se tornou um de nós, conhecedor do bem e do mal; assim, para que não estenda a mão, e tome também da árvore da vida, e coma, e viva eternamente... E expulso o homem colocou querubins ao oriente do jardim do Éden, e o refulgir de uma espada que se revolvia, para guardar o caminho da árvore da vida.”)

Tudo isso é simbólico e misterioso: o homem trabalha e morre porque comeu da árvore do conhecimento. Foi expulso do paraíso para que não coma também da árvore da vida, pois se tornou “um de nós”. O jardim do Éden está protegido por querubins e “o refulgir de uma espada”. Isto é misterioso: quem ou o que serão os querubins? Onde está a árvore da vida? Onde é o jardim do Éden?

O que é possível interpretar, por suas conseqüências: a condição humana (o trabalho e a morte, as dores do parto e da gestação, a submissão da mulher ao homem, o mistério da vida) se deve a decisão divina. Deus nos deu (ao nosso ancestral Adão, primeiro pai) o paraíso, com a condição de não comermos dos frutos das árvores da vida e do conhecimento. Enquanto não conhecemos vivemos no paraíso, protegidos por Deus, ingênuos. Quando adquirimos o conhecimento, descobrimos nossa nudez (ignorância?), temos vergonha, nos escondemos. Somos punidos com a perda do paraíso, temos de trabalhar para sobreviver e morremos; a mulher deve obedecer ao homem e sofre para dar à luz.

Esta é uma forma de uma civilização se formar, se organizar. Um grupo de sábios escreve um livro de ensinamentos, de leis. Começa explicando a origem do universo criado por Deus e a origem divina do homem. O mais importante, porém, está na idéia de que o homem trabalha (sofre) por punição divina, bem como a mulher tem as dores do parto e obedece ao homem. Temos o conhecimento do bem e do mal, adquirido ao comer da árvore do conhecimento. Ao mesmo tempo, o mistério da vida nos é vedado, pois fomos expulsos do paraíso para não comer da árvore da vida. Uma e outra foram proibidas por Deus, mas o homem comeu da árvore do conhecimento. Assim ficou no meio do caminho, não tem acesso ao mistério da vida, mas tem o conhecimento. Onde está o conhecimento? Na lei, nas escrituras, na bíblia.

Enfim, trata-se de uma explicação (que funda uma civilização, a judaico-cristã) para o mistério da existência humana: o conhecimento é um sofrimento que adquirimos desobedecendo a Deus, assim como a morte. Não temos o dom da vida eterna porque fomos expulsos do paraíso. E a árvore da vida está guardada por querubins e uma espada refulgente.

O Gênesis trata de um tema que permanece atual, que foi sempre atual, desde que o homem pensa: nossa origem. Dá soluções a ele: o primeiro homem foi criado por Deus e punido por desobediência. A desobediência veio pela mão da mulher, que foi criada da sua costela para lhe fazer companhia. Vivíamos no paraíso e a punição foi a condição humana. A condição humana é o trabalho, no caso do homem, e as dores do parto, no caso da mulher; da morte, no caso de ambos. Acresce a isso, o conhecimento, o pensar, a angústia de tentar entender o universo, que veio do fato de Adão e Eva comerem o fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal. Tudo isso conduz às próprias escrituras, que nos dizem como agir, o que é certo e o que é errado, que são obscuras e exigem interpretação de sábios (os religiosos).

O Gênesis contém um grande mistério: o acesso à árvore da vida nos foi vedado e está protegido por querubins e uma espada refulgente. Que significam estes símbolos? Por que essa proibição?

Idéias sobre o nascimento de Belo Horizonte e suas conseqüências para a história da cidade

Uma cidade artificial
– As cidades nascem de atividades econômicas: comércio e serviços principalmente, também indústria, e de burocracias governamentais. Belo Horizonte nasceu do nada, foi construída onde não havia nada, e o que havia foi posto abaixo. Comparar o crescimento de BH como o crescimento de uma cidade normal.
2) Os construtores da cidade ignoraram os rios e ribeirões que havia no lugar. As ruas traçadas em mapa e depois executadas no terreno cortaram cursos d’água. Que fazer? Canalizá-los...
3) Nascida no nada, Belo Horizonte abrigou a burocracia em dois níveis de poder: estadual e municipal (da capital do estado). Provavelmente também a elite econômica, que precisava estar perto do poder. Ou seja, a cidade tinha população endinheirada. Atraiu serviços para atender a essa população. Que também precisava comer – e então o comércio de alimentos, a produção local ou em fazendas em torno deve ter sido estimulada.

Identidade. Quem sou, quem somos. O que leva uma pessoa a mudar de cidade? Por que o êxodo de mineiros, de belo-horizontinos, para Rio e São Paulo? Belo Horizonte é uma cidade artificial, projetada por engenheiros. Em que clima foi criada? Há, no final do século 19, com a república, um ambiente de reformas urbanas no Brasil; São Paulo passará for reforma, em 1900, e o Rio, em 1904, ambas lideradas pelo presidente (do estado de SP e depois, da república) Francisco de Paula Rodrigues Alves. A construção de Belo Horizonte precede essas reformas, e mais do que uma reforma, é uma nova cidade. Escolhe-se um lugar (os técnicos, liderados pelo engenheiro Aarão Reis, escolheram Várzea da Palma – onde fica? –, mas os políticos determinaram que fosse aqui), desenha-se uma planta e se a executa. Uma cidade criada do nada. A construção da nova capital está determinada na constituição estadual, elaborada pela república. Os inconfidentes, um século antes, planejavam mudar a capital para São João del-Rei, um projeto republicano que ultrapassava as fronteiras mineiras. Ouro Preto, antiga capital de Minas, é uma cidade que tem vida, construída pela febre do ouro, a maior cidade das Américas no seu apogeu; o ciclo do ouro nas Minas Gerais produziu a mais rica cultura brasileira até então. Ouro Preto é considerada uma cidade velha, colonial, decadente, que não pode crescer. Cidade de Minas, nome original da nova capital, pretende ser um eixo de integração entre as diversas regiões do estado, que sofrem influência do Rio (Zona da Mata), São Paulo (Sul), Bahia (Norte e Nordeste); Minas são muitas, como dirá Guimarães Rosa. Na verdade, um estado é uma delimitação territorial em grande parte arbitrária. As cidades nascem em torno de atividades econômicas, cidade é fundamentalmente uma concentração populacional em torno de comércio e serviços. A atividade econômica no Brasil do final do século 19 está no campo, cafeicultura, principalmente, criação de gado. As cidades são os locais onde os fazendeiros negociam seus produtos e compram o que precisam. É o local onde estão serviços, como escola e hospital, bancos; mais tarde telefone, televisão. Também os serviços públicos e o governo: prefeito, secretários, vereadores, funcionários públicos de uma forma geral. Mas o principal é que as cidades nascem e crescem em torno de atividades econômicas, como concentração de serviços para apoiar a atividade econômica. Belo Horizonte, ao contrário, criada artificialmente, concentra a burocracia. Não uma, mas duas: a do estado, principalmente, mas também a do município, que cresce, com o crescimento da cidade. Com o tempo vai-se formando um comércio. Mas a cidade inicialmente não tem mais do que funcionários públicos. O núcleo arquitetônico de destaque, até hoje, não poderia ser de outra forma, é formado por prédios públicos: o conjunto da Praça da Liberdade, como o palácio do governo e os prédios das secretarias. Belo Horizonte é uma cidade de funcionários públicos. Que atividade econômica existe aqui? Não há produção agrícola em torno da cidade, o que a região vai concentrar cada vez mais é a mineração, principalmente de ferro – Belo Horizonte está no meio do que se vai chamar de Quadrilátero Ferrifero. Concentra o funcionalismo público, os políticos, serviços, e tem em torno a mineração. O projeto da cidade tem defeitos: desconsidera os córregos e rios (quarteirões e quarteirões são cortados pelos ribeirões, porque a planta os ignorou; só resta então canalizá-los), não planeja a região suburbana nem a rural, só o interior da Avenida do Contorno. E não executado plenamente: o Parque Municipal, que hoje seria um local fantástico, diante do crescimento da cidade, foi reduzido a um terço da sua área original, invadido por alamedas e avenidas e prédios, principalmente hospitais e o campus médico da UFMG. Também não houve cuidado de se proteger a cidade contra o crescimento, que tornou seu planejamento inócuo. A área urbana se deteriorou, com construção de prédios enormes no lugar de casas e prédios baixos; a área suburbana cresceu sem planejamento; encostas de morros foram ocupadas por favelas, grandes concentrações de moradias construídas ilegalmente pelos próprios moradores com ajuda de leigos, sem planejamento, sem plantas, sem ruas, sem água, sem luz, sem esgotos. Calcula-se que quase a metade da população da capital seja constituída hoje de favelados, portanto, de pessoas que ocupam moradias que representam exatamente o oposto do que Belo Horizonte foi ao nascer: uma cidade planejada. Depois da sua fundação, Belo Horizonte teve apenas um momento de expansão planejada, criativa: a construção da Pampulha, por JK, na década de 1940. Hoje a região está decadente, porque, mais uma vez, os cuidados com o planejamento foram abandonados. A partir daquela época também houve o crescimento da cidade provocado pela industrialização, não mais nos limites do seu território, mas dos municípios vizinhos, principalmente Contagem, com a criação da Cidade Industrial. Em pouco tempo, Contagem vai se tornar a maior concentração industrial do estado e uma das maiores do país. Mas o que é um estado, o que é um país? Os gregos viviam em cidades, cidades-estados; reuniam-se para jogos e uniam-se para a guerra; falavam a mesma língua, julgam-se unidos por laços de origem, “os helenos”; mas cada cidade grega era independente e se bastava. Hoje as cidades são quase sempre limitações territoriais, que quando crescem muito avançam sobre municípios vizinhos, os quais não têm grande população nem força econômica próprias, formando-se as regiões metropolitanas. Mas um estado como Minas Gerais é um territóri formado por regiões e municípios e cidades-pólos que pouco têm em comum. O que o Triângulo Mineiro tem a ver com Belo Horizonte e a Grande BH? Ou com Juiz de Fora e a Zona da Mata? Ou com Montes Claros e o Norte de Minas? Ou com Governador Valadares e o Leste? Ou com Pouso Alegre e o Sul de Minas? O que estas regiões e cidades têm em comum, exceto o fato de pertencerem ao mesmo estado, de se submeterem ao mesmo governo estadual (com sede em BH, daí a importância desta capital), de terem estradas e serviços comuns integrando-as? O que então é ser mineiro? Mineiro de onde? Minas funda o Brasil, com as cidades do ciclo do ouro, com a urbanização, com a interiorização, com cultura e arte, com a Inconfidência. Talvez por isso tenha sempre tanta importância política, mesmo com a decadência, mesmo com a prosperidade do Rio e de São Paulo. Minas é decisivo em todos os episódios da história do país e está sempre no poder; o que acontece agora, com o governo de Fernando Henrique Cardoso, é exceção. Se olhamos a história do Brasil, vemos que, se Minas decaiu economicamente, tornou-se de certa forma um centro de excelência política, é como se os políticos e a política mineiros sintetizassem o país, fossem capazes de fazer o que outros estados não fazem, nem o Nordeste nem São Paulo: enxergar o Brasil como um todo. Não é à toa que JK constrói Brasília. Tancredo foi a alternativa de transição entre a ditadura militar e um governo civil eleito. (abril de 2001)

As sete dimensões e a sabedoria

As sete dimensões humanas

1- A primeira dimensão é a natureza, o universo, tudo que há, que existia antes de mim e continuará existindo depois.
2- A segunda dimensão é o mundo, a terra, a natureza transformada pelo homem, esta parte da natureza na qual eu vivo, da qual faço parte, a história.
3- A terceira dimensão é a época da história da qual faço parte, a civilização capitalista.
4- A quarta dimensão é a época restrita na qual vivo nas décadas em que me é dado existir.
5- A quinta dimensão é o lugar específico no qual existo: o país, a cidade, o bairro, a classe social, a família.
6- A sexta dimensão é a idiossincrasia, a dimensão individual, minhas características pessoais.
7- A sétima dimensão é a consciência. É a dimensão que intermedia todas as outras. Sem a consciência, nada mais existe. Ao mesmo tempo, a consciência sabe que tudo existia antes dela e continuará existindo depois (primeira dimensão).

A sabedoria

A sabedoria consiste em viver bem nas sete dimensões humanas. É uma tarefa individual, pois sendo a consciência individual, a fórmula da sabedoria não pode ser transferida para outro, cada um tem de encontrar a sua, exceto a sabedoria primordial.

A sabedoria primordial é o conhecimento das sete dimensões humanas, especialmente a sétima, ou seja: a dimensão da consciência como um milagre gratuito e finito.

As sete dimensões são como círculos concêntricos, sendo o sétimo o central e o primeiro o mais amplo, que inclui todos os outros.

Os sete círculos tornam-se gradativamente mais importantes para a consciência à medida que se aproximam dela. Contraditoriamente, sua importância real é inversa. Ou seja, a importância das dimensões para a consciência e para o universo são opostas.

Isto significa que o que mais interfere na consciência são, pela ordem: as idiossincrasias, as circunstâncias, o tempo de vida, o período histórico, o mundo e o universo.

Inversamente, as coisas mais importantes para a existência são, pela ordem: o universo, o mundo, a história, o tempo de vida, as circunstâncias, as idiossincrasias e a consciência.

Os extremos se encontram: a consciência que não tem importância para o universo, mas este só existe para ela. A consciência é a obra-prima do universo e tenta desvendá-lo. A consciência atingirá seu ponto máximo quando atingir a imortalidade e construir uma inteligência artificial capaz de conhecer tudo.

Os níveis do conhecimento

A consciência deve buscar o conhecimento nas seis outras dimensões:

1- O conhecimento do eu.
2- O conhecimento das suas circunstâncias.
3- O conhecimento da época restrita.
4- O conhecimento da época ampla.
5- O conhecimento do mundo.
6- O conhecimento do universo.

De nada adianta conhecer o universo sem se conhecer a sim mesmo; quanto mais perto da consciência mais a dimensão interfere na vida do indivíduo. O conhecimento deve começar, portanto, pelas idiossincrasias.

1- O conhecimento do eu. O que sou eu? Um corpo humano masculino. Para me conhecer, devo olhar para: masculinidade, meu corpo, minha mente, minhas habilidades e meus comportamentos, pontos fortes e fracos, encantamentos.

- O que é ser masculino? Masculino e sexo, masculino e ação, masculino e fala, masculino e força, masculino e comportamento, masculino e inteligência, masculino e habilidades, masculino e responsabilidades.

- Quais as minhas características físicas? Forte ou fraco, débil ou resistente, alto ou baixo, gordo ou magro? Defeitos físicos, habilidades físicas.

- Quais as minhas qualidades intelectuais? Qual o grau da minha inteligência? Que tipo de inteligência tenho? Que dificuldades intelectuais tenho?

- Quais as minhas características psicológicas? Carismático ou apagado, seguro ou inseguro, líder ou liderado, independente ou dependente, persistente ou não. Observador? Perspicaz? Raciocínio rápido ou lento? Extrovertido ou introvertido? Ativo ou parado? Agitado ou quieto? Ansioso ou calmo? Paciente ou impaciente? Concentrado ou disperso?

- Quais os meus talentos? Talentos para artes, talentos para trabalhos manuais, talentos para esportes, talentos para relações, talentos intelectuais.

- Quais os meus defeitos? O que me prejudica?

- O que é que me move? O que é que me encanta?

Pirâmides, guerras e turismo

Programa no GNT mostra um alemão que tem 27 lojas em Berlim, onde vende para turistas pedaços do muro mais famoso da história. Ele tem estoque de pedras – pequenas, maiores, bem maiores e realmente grandes – para vinte anos. Um absurdo do capitalismo, o tal do “mercado”. O sujeito emprega um monte de gente (vendedores, britadores, operários e outros) e ficou rico vendendo pedaços do Muro de Berlim! Keynes, o economista que salvou o capitalismo em meados do século XX, dizia que em momentos de crise o Estado precisa construir pirâmides, ou seja, nada. Ao empregar gente e comprar matéria prima, a economia volta a crescer – que é a necessidade básica do capitalismo – e gerar lucro – que é seu objetivo.

Não é muito diferente do que fez Lula com o PAC e o Bolsa Família, no auge da crise econômica atual. O fato de economistas e jornalistas econômicos terem se surpreendido com o sucesso brasileiro no enfrentamento da crise só revela sua incompetência presunçosa. O governo distribuiu renda para pobre (Bolsa Família) e ricos (empreiteiras contratadas no PAC), que mantiveram a economia em movimento, comprando. E ainda ficaram rindo até as orelhas, felizes com o lulismo, como se pode ver em qualquer solenidade de inauguração ou lançamento de ações do governo, sempre lotada de gente em estado de hipnose, que aplaude o novo pai dos pobres e lhe confere aprovação quase unânime.

O que impressiona no caso do Muro de Berlim é que a riqueza é gerada por pedaços de pedra, que, enquanto estavam juntos e de pé, eram apenas um monumento à intolerância e ao ódio. Os restos do muro não têm nenhuma importância material, não têm nenhum valor útil, no entanto geram riqueza, porque há turistas dispostos a comprá-los. O turista é uma das personagens típicas do mundo contemporâneo, substitui talvez, como tipo sociológico, o camponês imbecil da França e outras partes do mundo capitalista em desenvolvimento nos séculos XIX e XX. Para servi-lo, o capitalismo põe em movimento inúmeras indústrias interligadas e transforma todo o mundo num gigantesco parque de diversões.

Onde houver um muro de Berlim para mostrar a turistas boquiabertos haverá turismo. Todos consumirão os produtos do lugar como uma nuvem de gafanhotos e levarão uma lembrancinha, incluída ou não no pacote, mas sempre negociada a preço de ocasião. Afinal, de volta para casa, depois de colocar o entulho num canto, em exibição, jamais terão novamente a chance de obter um suvenir por preço tão bom... Quanto valerá um pedaço do Muro de Berlim importado? Além do mais, sempre há o risco de falsificação, e um pedaço do Muro de Berlim “certificado” custará não dez dólares, mas cem...

Mas, pra que é que serve mesmo um pedaço do Muro de Berlim? Ninguém sabe. Pior: 99,99% dos turistas consumidores talvez não tenham ideia do significado do muro. Uma atividade absolutamente inútil movimenta a economia, emprega trabalhadores e enriquece empresários. É pra isso que servem os pedaços do Muro de Berlim e os turistas. Fica rico quem tiver pedaços do muro para vender, ou quem inventar uma novidade inútil – um kinder ovo, uma puca, um gogo’s. (Crianças e jovens são outros exércitos de consumidores tratados como imbecis pelo capitalismo.)

O verdadeiro mistério do mundo capitalista é de onde vem o dinheiro. Quando o Estado constrói pirâmides, ele põe dinheiro em circulação, mas o dinheiro do Estado é fictício, porque o Estado não produz nada, e ainda por cima fabrica dinheiro. Os economistas dizem que imprimir muito dinheiro cria inflação e desvaloriza a moeda, mas isso é mais uma das bobagens que os economistas dizem e os jornalistas repetem. A crise atual foi uma aula sobre a ignorância dessa gente. Há décadas os EUA vivem de fabricar dinheiro e continuam dominando o mundo.

Há mais mistérios entre o céu e a terra do que supõe a nossa vã economia. Analistas mais razoáveis dizem que há muito mais crédito correndo o mundo do que dinheiro para pagá-lo. Ou melhor, do que riqueza correspondente, isto é, produtos úteis gerados pelo trabalho. É assim desde que o capitalismo é capitalismo; antigamente, de tempos em tempos, corria um boato sobre a incapacidade de o banco pagar seus investidores, estes corriam para sacar o seu e o banco quebrava. O banco quebrado devia a outro, que também quebrava, e a crise estava instaurada. A de 1929, que quase pôs fim ao capitalismo e gerou a Revolução de 30 no Brasil, sem a qual não seríamos como somos hoje, foi, dizem historiadores, simples assim.

Foi quando Keynes inventou a construção de pirâmides, que o presidente americano Roosevelt adotou. E o Estado criou mecanismos para proteger o sistema bancário, que, em resumo, consistem em o Estado, que nunca quebra, bancar o prejuízo dos banqueiros (e depois distribuí-lo com toda a população). Assim, a dívida do Estado aumenta ainda mais. Como dívida é promessa de pagamento, o mundo capitalista vive de promessas, empurrando a realidade sempre para o futuro. Os ricos gastam por conta, gastam o que não têm, papéis e mais papéis, que nada têm a ver com riqueza concreta, graças a essa outra mágica ilusionista do capitalismo, que foi substituir produtos por dinheiro.

Qualquer faminto sabe que um pão vale mais do que um pedaço de papel impresso com cifrões, no entanto, no capitalismo, é o papel que dá acesso ao pão! Quem tem papel tem pão, quem não tem, morre de fome... Os ricos, que não plantam nem fazem pão, acumulam toneladas de papéis e com eles compram todo o pão do mundo. Os ricos são poucos, mesmo que passem o dia inteiro comendo não conseguem consumir todo o pão do mundo, mas têm montanhas de dinheiro e precisam gastá-lo. Enquanto isso, ficam famintos aqueles muitos que não têm papel impresso com cifrões, mesmo que sejam capazes de trabalhar e produzir, mesmo que eles mesmos tenham plantado o trigo e feito pão...

A contradição é a essência do capitalismo. Riqueza e destruição, progresso e barbárie – guerra. Guerra é outra forma que o capitalismo tem de sair de crises, é uma espécie de pirâmide, que cria riquezas (tecnologias, inclusive, como esta internet) destruindo e matando. Não é curioso que tenhamos passado por guerras e matança de dezenas de milhões de seres humanos para ter as sofisticadas tecnologias que nos dão tanto conforto hoje? Há muito tempo guerras não são frutos de conflitos entre povos, mas uma indústria imprescindível ao funcionamento do sistema. Afinal, que confronto pode haver entre nações num mundo globalizado, em que o capital está em toda parte? A guerra é a morte transformada em indústria, organizada, planejada, sofisticada. Assim como o tráfico de drogas, com seus exércitos, violências e matança regular não são um defeito do sistema, mas parte integrante dele. No capitalismo, qualquer negócio é lícito.

Guerras, pirâmides e – sabemos agora, nós, brasileiros – Bolsas Famílias, nos tiram das crises eternas do capitalismo. A diferença entre guerras e Bolsas Famílias é a diferença entre Lula e FHC, entre Obama e Bush, reformismo e neoliberalismo. O absurdo do capitalismo é que exista gente comprando pedaços de muro e gente morrendo de fome. Para o capitalismo, essa contradição não tem a menor importância, o que interessa é movimentar a economia. O capitalismo não estabelece relação entre as necessidades dos seres humanos, muito menos as necessidades de todos os seres humanos, igualmente, e o crescimento, o “desenvolvimento”, o movimento econômico, enfim, que gera o lucro.