quinta-feira, 11 de novembro de 2010

Sobre moral e revoluções

A Revolução Russa de 1917 é o acontecimento mais extraordinário da história, pelo seu significado de levante popular vitorioso orientado por uma filosofia da história e pelos indivíduos extraordinários que gerou, especialmente Lenin e Trotski. Trotski é minha figura histórica predileta: herói, guerreiro, gênio, filósofo, político, escritor, líder de massas carismático. Não tem similar: nenhum outro homem em tempo algum foi homem de ação e intelectual tão brilhante ao mesmo tempo, nenhum viveu tão intensamente uma revolução, nenhum usou instrumentos tão poderosos como os possibilitados pelo marxismo. Nenhum outro revolucionário foi ao mesmo tempo o grande historiador da revolução que liderou. Não teve discípulos – fez seguidores, mas estes foram e são uma lástima. Uma das discussões mais importantes que a Revolução Russa gerou é sobre os limites morais da ação revolucionária. Trotski a abordou em A nossa moral e a deles; Edmund Wilson acha que ele tergiversou, como Marx e Engels antes, e que o marxismo não consegue respondê-la. Concordo que a questão é delicada e fundamental; foi usada como justificativa para comportamentos execráveis de muitos militantes comunistas. No entanto, tendo a concordar com a argumentação marxista-trotskista, considero plenamente justa a alegação de que as críticas à “moral” marxista são feitas por quem tem pés de barro e defende interesses de classe. Penso que a humanidade resolverá o dilema moral, mas não o fará voltando-se para morais ultrapassadas, que representam pontos de vista classistas e não se sustentam como instrumentos de progresso. O que Trotski nos diz é que não é possível antecipar a moral socialista, não é possível estabelecer hoje como os homens deverão se comportar no futuro. Só o que podemos fazer é agir hoje, com os instrumentos que temos, e na revolução a moral certamente não será a moral burguesa. Portanto, as críticas morais feitas de pontos de vista de classes reacionárias devem ser rechaçadas vigorosamente. Na situação revolucionária, de tomada do poder, o comportamento trotskista-marxista é plenamente satisfatório, e mesmo nos momentos imediatamente posteriores. O que me parece um erro no trotskismo é sua inflexibilidade para estimular a prática democrática revolucionária, ou seja, pelas classes revolucionárias, mas não segundo os superados valores burgueses. A crítica feita ao marxismo-leninismo (e trotskismo) é do ponto de vista reacionário, pretende julgar a revolução por algumas das suas consequências e por seus erros, e negá-la dessa forma, fazendo a sociedade retroceder aos moldes burgueses, muito mais defeituosos. Tampouco os capitalistas são capazes de oferecer o que os comunistas, segundo eles, negam. Nem o querem, querem apenas derrubar os revolucionários e recuperar o poder para si. Podemos criticar os rumos da revolução russa cheios de boa intenção, mas, conhecendo-a, nos perguntamos se houve algum grande erro, se era possível fazer diferente naquelas condições, as mais difíceis e sofridas durante mais tempo que um povo já enfrentou. A vitória da Revolução Russa foi um milagre proporcionado pelo extraordinário instrumento de ação política que é o marxismo e pelo gênio de homens como Trotski e Lenin. O conhecimento e a ação de um e de outro se materializaram na coragem e na determinação sem paralelo das massas trabalhadoras russas. Para cada Trotski e cada Lenin, a revolução contou com milhares e milhares de heróis anônimos, que a história não registra, mas que merecem igualmente nossa admiração. A Revolução Russa foi um daqueles momentos históricos raros em que a verdade se materializa em ação de massas. Foi o primeiro desses momentos em que as massas tiveram a guiá-las conhecimentos e organização senão científicos, bem próximos disso. E foi certamente o mais grandioso desses momentos episódicos em que o ser humano se encontra com a história. É difícil, quase impossível, julgar comportamentos que suscitou olhando confortavelmente de uma posição de classe média na primeira década do século XX. A moral revolucionária não nos é útil hoje, por desnecessária, ainda que queiramos o socialismo, ainda que rejeitemos o capitalismo. Haverá revolução ainda? Não sabemos. O socialismo é inevitável? Também não sabemos. O capitalismo sobreviverá eternamente reformando-se? A humanidade implantará os valores superiores da igualdade, da fraternidade e da liberdade no capitalismo? O homem trabalhador e o homem capitalista se tornarão um só? Não sabemos se o capitalismo nos conduzirá à barbárie ou se avançaremos; não sabemos se vamos superar o capitalismo e fundar o socialismo; não sabemos sequer se a humanidade sobreviverá a condições tão ameaçadoras e tão novas como as que enfrentamos hoje. A moral transformadora hoje passa pela construção de valores que nos permitam viver melhor e garantir a sobrevivência das novas gerações. Um mundo melhor, um mundo que ultrapasse o atual estágio do luxo e do lixo, da extrema riqueza e da extrema destruição, é necessariamente um mundo livre, fraterno e igual. Somos herdeiros da Revolução Francesa como somos herdeiros da Revolução Russa, mas nossa revolução talvez seja muito diferente delas.

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