Não li o livro, não gostei do filme. Fui vê-lo porque pensei que era imperdível um filme sobre uma obra de Saramago – o prêmio Nobel de língua portuguesa do qual nunca consegui ler um livro –, dirigido por um brasileiro também reconhecido internacionalmente. Saí dizendo: para que filmar isso? Vá lá que Saramago o tenha escrito, mas para que transformar essa história em filme? Para que fazer o público ficar duas horas assistindo àquelas cenas desagradáveis? A gente vai ao cinema para ter prazer... A cegueira é uma metáfora tão óbvia! Com o passar do tempo, algumas idéias me vieram à cabeça, algumas imagens, algumas lembranças do filme. Cada um vê o que quer ver. Não sei o que Saramago escreveu, não sei se o filme é a recriação fidedigna da obra. Sei apenas que o escritor português assistiu ao filme ao lado do cineasta e o aprovou. Sei também que Ensaio sobre a cegueira não é uma obra de arte surrealista, não é um filme de Buñel, apesar de nos remeter ao cineasta espanhol. Apesar da metáfora óbvia, ele não é repleto de simbologias e compreensões que remetem ao inconsciente, não tem cenas cômicas, não é permeado por humor. Saramago não é um autor bem-humorado. Um mistério da história é por que a personagem principal (interpretada por Julianne Moore) conserva a visão. Ela é uma pessoa boa, como mostra uma das cenas iniciais. Todos nós conhecemos pessoas boas, não? Pessoas que parecem não ser deste mundo, pessoas que fazem o bem, cuja companhia dá alegria, pessoas que são assim desde que nasceram, que parecem atrair coisas boas e que não parecem fazer nenhum esforço em ser assim. Essa idéia é quase religiosa e repugna os ateus e agnósticos, no entanto, essas pessoas existem, duvido que alguém não conheça pelo menos uma. A fábula se completa quando a visão volta para o homem que ficou cego primeiro. Isso acontece quando aquele grupo compartilha a mesma casa, que deixa de ser propriedade privada. Ensaio sobre a cegueira é nitidamente um filme comunista. Nesse sentido, Saramago é um pensador que propõe a volta ao passado. Há gente inteligente, sensível, progressista, que torce o nariz para idéias assim – são pessoas, como o adjetivo mostra, que acreditam no progresso. Me pergunto, porém, se é possível progredir assim, se não é preciso retomar valores do passado para ter um mundo melhor. A idéia de progresso é ideológico, é como a burguesia travestiu, para tornar aceitável, sua busca incessante do lucro. Recuperar valores e sentimentos da vida simples, compartilhada, um nítido contraste com a sociedade contemporânea, moderna, moderníssima, mostrada no começo do filme, na qual a estrela é o automóvel – barulhento, irritante, violento, lindo, veloz. Não à toa o filme começa numa avenida, no trânsito caótico no qual aprendemos todos a nos mover, cuja violência aprendemos a ignorar, cuja insanidade aprendemos a não ver. A criação do ambiente da cidade dos cegos é impressionante. Onde foram as locações? Tenho impressão de ser São Paulo, acho que até li alguma coisa sobre um domingo de filmagens, que interferiram numa apresentação no Teatro Municipal, mas não pude confirmar, porque, além de os letreiros do filme serem pequenos e rápidos, o (projetor) do Usina tem o péssimo hábito de acender as luzes e finalizar a projeção quando as pessoas começam a se levantar (dia desses tive de ver o apêndice de Quando j’erais chanteur com as luzes acesas). A trilha sonora de Marco Antônio Guimarães não apenas é lindíssima, mas é também uma honra para nós, mineiros. No entanto, devo dizer que as imagens da fila indiana de cegos andando pelas avenidas e ruas da cidade imunda me emociona mais na fotografia do que emocionou no cinema.
Nenhum comentário:
Postar um comentário