1) Maior abandonado tem a essência do rock: melodia que comove, ritmo que faz dançar, letra metafórica que expressa a condição do jovem moderno, que o adulto não compreende, guitarra e bateria para serem imitadas. Trata de questões sociais de forma zombeteira como faz o rock, que desde seu nascimento, não leva a sério este falso mundo sério. Tudo isso em apenas 2 minutos e 42 segundos de energia pulsante e alegre.
Eu tô perdido sem pai nem mãe
Bem na porta da tua casa
Eu tô pedindo a tua mão
E um pouquinho do braço
Migalhas dormidas do teu pão
Raspas e restos me interessam
Pequenas porções de ilusão
Mentiras sinceras me interessam
Eu tô pedindo a tua mão
Me leve para qualquer lado
Só um pouquinho de proteção
Ao maior abandonado
Teu corpo com amor ou não
Raspas e restos me interessam
Me ame como a um irmão
Mentiras sinceras me interessam
Maior abandonado é muito mais do que uma canção de amor, é uma evidente brincadeira com o grande problema social detectado na década de 80, a década da democratização, o problema do menor abandonado. Políticos, cientistas sociais e classes médias se mobilizaram em defesa das crianças pobres que estava marginalizadas da sociedade e estariam fadadas à criminalidade. A solução óbvia (educação pública de qualidade em tempo integral) foi colocada em prática no Rio de Janeiro (os Cieps de Darcy Ribeiro e Brizola). Vinte anos depois, os Cieps não apenas não se tornaram modelo para o país como desapareceram no próprio Rio e as crianças pobres trabalham para o tráfico ou estão mortas. O problema não foi resolvido, agravou-se. O artista do rock mostrou-se um visionário ao ironizar a hipocrisia daquela aparente preocupação social. Ao mesmo tempo ele falava de si e da sua geração, de outra classe social, igualmente abandonada pelos mesmos pais que se preocupavam com os filhos dos pobres. Na classe média que não cresce, o abandonado não é menor, é maior, sem pai nem mãe. Pode-se assim definir a canção como um protesto do jovem de classe média igualmente abandonado por aqueles que pretendem cuidar das crianças pobres e não fazem nem uma coisa nem outra. É a ironia dolorosa que dá à canção sua dose de alegria: raspas e restos me interessam, mentiras sinceras me interessam. Tudo remetendo à imagem da criança pobre cheia de necessidades elementares: migalhas dormidas do teu pão, pequenas porções, raspas e restos, só um pouquinho de proteção. Numa época que ainda vivia o sexo livre dos anos 60 e 70, pré-aids, é outra ironia falar “me ame como a um irmão”. E a imagem mais bela para a condição humana: “pequenas porções de ilusão”. 2) O rock brasileiro aparece nos anos 50, acompanhando o fenômeno americano, tem uma nova fase nos anos 60, copiando o fenômeno dos Beatles, que oscila do pastiche jovem guarda à criatividade dos Mutantes, hiberna nos anos 70, mas só vai nascer como música brasileira autêntica nos anos 80, com a geração das bandas, instrumentistas e poetas de grande talento, eficiente técnica e, sobretudo, com a força contagiante do rock. 3) Cazuza se sobressai como estrela maior na constelação do rock nacional por seu desempenho no palco, característico do rock, por seus dotes como cantor e compositor e, principalmente, como símbolo do rebelde que morre jovem em conseqüência do tipo de vida que leva, o tipo de vida essencialmente rock, que vitimou tantos outros roqueiros. 4) Em 1989, quando Cazuza, corajosamente, anunciou o que já era rumor generalizado, sua condição de portador do vírus da aids, a revista Veja dedicou-lhe uma capa com a manchete “Uma vítima da aids agoniza em praça pública”, a qual provocou reação apaixonada de artistas e fãs, além de familiares e do próprio. O episódio tornou-se emblemático de uma determinada realidade brasileira da época e foi estudada de forma brilhante pelo jornalista Eugênio Bucci. Ele colocou em oposição a revista, uma instituição que pretende ser porta-voz da opinião pública brasileira, e os artistas, que tinham então grande influência nessa mesma opinião pública. Afora outras questões, a revista cometeu um grande erro jornalístico ao dizer que Cazuza estava agonizante, quando ele era um doente em tratamento e só viria a morrer três anos mais tarde, e um grande erro de crítica cultural, ao insinuar que Cazuza não era um artista de primeira e que sua arte não sobreviveria. 5) A questão da eternidade do ser humano é uma questão importante da filosofia. Certamente, a arte de Cazuza o coloca no panteão dos imortais que ultrapassam a condição humana por sua capacidade de sobreviverem como idéia, mesmo depois de mortos. Para isso, morrer jovem como Cazuza não é um prejuízo, mas um benefício à formação do mito. Querer negar isso, além de manifestar um ponto de vista ideológico, é um juízo apressado que demonstra ignorância.
Crer é como fazer uma opção. Há pessoas espertas e pessoas que dançam. Eu não acredito nos espertos. Caetano Veloso poderia ter morrido de aids, mas é esperto. Cazuza não era esperto.
Crer é como fazer uma opção. Há pessoas espertas e pessoas que dançam. Eu não acredito nos espertos. Caetano Veloso poderia ter morrido de aids, mas é esperto. Cazuza não era esperto.
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