A chegada do ano novo trouxe um problema que nós nunca tínhamos enfrentado: as crianças dentro de casa. Até o ano passado, elas frequentaram o Clic!, um lugar ao qual as crianças de até seis anos vão para brincar*. As aulas na escola só começam em fevereiro, de forma que temos o mês de janeiro inteiro com este problema: o que fazer com as crianças.
É um problema contemporâneo e à medida que penso nele vejo suas ligações com vários outros aspectos da contemporaneidade, como a vida em apartamentos, como lidar com a televisão e a internet, mães que trabalham, famílias sem pai etc. Vivemos numa sociedade capitalista e seu modelo de organização social pressupõe que as pessoas tenham dinheiro e comprem mercadorias e serviços.
Neste caso específico, significa que pais e mães devem tirar férias em janeiro e viajar em família para a praia, ou outro lugar aprazível. É a solução ideal. No mês em que as crianças estão de férias da escola, também os pais descansam e as famílias passam um mês juntas realizando um sonho que passaram o ano inteiro planejando.
Como o capitalismo é um sistema que deixa as soluções para os indivíduos e prega que estes ganhem dinheiro, pois as soluções estão à venda e dependem de dinheiro para comprá-las, acontece com muito mais frequência que a solução ideal não seja concretizada senão por uma pequena parcela de privilegiados. A maioria da população não tem dinheiro para comprar férias. Parte considerável dos adultos sequer tem férias, porque trabalha informalmente.
Além disso, a questão que as férias colocam de forma aguda, porque durante um mês inteiro ou mais, surge várias vezes ao longo do ano: nos fins de semana, nos feriados, nos recessos escolares – e nas férias de julho, novamente. A questão é que as crianças estão em casa o dia inteiro e os pais estão trabalhando normalmente, ou na melhor das hipóteses, têm férias, mas não têm dinheiro para viajar ou para passear.
Quando eu era menino, o problema se resolvia em turma. Férias eram os melhores meses do ano, os meses de brincadeira por excelência. A diversão era propiciada pelas seguintes condições: 1) morávamos em casas, com terreiro e jardins; 2) tínhamos muitos irmãos; 3) tínhamos muitos amigos, moradores das casas vizinhas; 4) as mães em geral não trabalhavam e tínhamos empregadas de confiança; 5) as ruas não eram lugares violentos e havia muitos lotes vagos. De forma que brincávamos o dia inteiro em bandos, nas casas uns dos outros, nos lotes vagos, nas ruas, pois não faltavam espaço nem amigos para isso. Férias escolares não eram um problema para os pais, como são hoje.
Nossas cidades e nossa cultura mudaram radicalmente no tempo de uma geração. Nossos filhos não têm irmãos, moram em apartamentos, não podem sair na rua, não têm amigos nas vizinhanças. A televisão, que víamos no fim da tarde e começo da noite, tornou-se companhia do dia inteiro, e a internet é agora a nova ocupação da criançada. As crianças sequer conhecem as brincadeiras com as quais nos ocupávamos; de qualquer forma, não têm mesmo espaço para praticá-las.
Minhas filhas são privilegiadas porque frequentaram o Clic!, uma casa antiga, com árvores e muito espaço para as crianças brincarem. Lá conviveram com outras crianças e foram educadas por profissionais competentes e sensíveis; até os seis anos não se preocuparam em aprender a ler e escrever, não tiveram outra preocupação senão brincar e respeitar os amigos. O Clic! não é escola e funciona o ano inteiro ininterruptamente, considerando justamente essa realidade contemporânea (tem apenas um recesso entre o Natal e o ano novo – hoje, 4 de janeiro, segunda-feira, as atividades foram retomadas). De forma que o problema de o que fazer com as crianças nas férias aparece para nós pela primeira vez.
A solução individual que nossa família deu durante esses anos não existe mais e não encontramos outra adequada ao nosso orçamento e gosto – como as colônias de férias oferecidas por clubes e escolas. Por isso me ponho a pensar no assunto. Há muito o capitalismo aprendeu a oferecer soluções estatais para problemas que as populações mais pobres não podem resolver por conta própria. Não à toa, da primeira vez em que o Brasil teve um governo preocupado com os trabalhadores, criou-se a estrutura do Sesi (Serviço Social da Indústria) e do Sesc (Serviço Social do Comércio), que oferece ainda hoje lazer para os trabalhadores, inclusive as famosas colônias de férias do Sesi, hotéis populares em cidades e praias.
Agora, a situação é mais complexa, porque, como vimos, as crianças não têm espaços e companhias para brincar. Minhas meninas têm a sorte de se terem, uma à outra, e se dão muito bem. Ainda assim percebo que o apartamento não é o lugar mais adequado para passarem o dia, nem a televisão a melhor companhia (em geral, deixamos que assistam um programa ou dois por turno, no Futura e no Discovery Kids, mas elas estão enjoadas de alguns desenhos e o Sítio do Picapau Amarelo, que já foi ótimo, abandonou as histórias de Monteiro Lobato e não tem mais a mesma qualidade).
A questão é que as transformações culturais pelas quais passamos são profundas e velozes e estamos longe de resolver seus problemas – a infância é só uma deles. Por exemplo: a família era a referência da educação, era nela que os valores se transmitiam, era no exemplo do pai e da mãe que as crianças se referenciavam, era nos parentes que as pessoas buscavam ajuda as mais diversas. Não se pode dizer que a família acabou, mas ela ficou tão diferente que está quase irreconhecível. Será possível andar para trás e recuperar o antigo modelo de família ou será necessário criar outro tipo de núcleo social? (É bom lembrar que a família não existiu sempre e o modelo burguês que está se transformando é uma criação recente. Em sociedades primitivas, as crianças eram filhos de todos os adultos; talvez estejamos próximos de adotar novamente tal modelo.)
Como ação do Estado, penso que já passou da hora de termos escolas públicas em tempo integral, não como prisões, mas como locais agradáveis de convivência e educação das crianças e adolescentes. É o caso também de se criarem novas colônias de férias, nas quais o Estado ofereça espaços, equipamentos e educadores competentes. O que não se pode é continuar ignorando que, sem pais, sem irmãos, sem amigos e sem espaço para brincar, as férias infantis são passadas, cada vez mais, na prisão dos apartamentos, na companhia da televisão e da internet. Isso não é educação, muito menos infância.
*A história e a experiência do Clic! estão contadas no livro em Meninada, o que nós vamos fazer hoje?
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