Na virada do primeiro para o segundo turno, o campeonato apontava para uma curiosa disputa pelo tetracampeonato, entre o São Paulo e seu ex-treinador, Muricy Ramalho, agora no Palmeiras. Atual tricampeão (2006-2007-2008), o tricolor paulistano está pronto para mais um título, que lhe daria a maioria dos títulos disputados desde 2003, além de superar a façanha já impressionante do ano passado, quando recuperou uma grande diferença de pontos perdidos no começo da competição e ainda abriu vantagem sobre o segundo colocado. Este ano, porém, o título parecia perdido, pois além do mau começo, o clube demitiu seu treinador igualmente tricampeão.
A mudança significava não apenas a perda de um treinador competente, com estofo de campeão e identificado com o clube, mas também os transtornos normais que a mudança de treinador provoca: ainda que o novo treinador seja bom e o grupo de jogadores não mude, todos precisam se adaptar ao novo trabalho para que os resultados apareçam. E no futebol brasileiro não há paciência nem tolerância.
O São Paulo percorreu esse caminho mais rapidamente do que eu esperava, o que confirma três coisas: a competência do clube (incluindo aí estrutura, administração, finanças e ambiente de trabalho), a competência do novo treinador (se no lugar de Ricardo Gomes, o São Paulo tivesse contratado Celso Roth, por exemplo, duvido que o resultado seria o mesmo) e a qualidade do plantel (o clube não tem apenas um time, mas um elenco, com jogadores de nível internacional, em geral os melhores do pais, repostos regularmente, bons jogadores bem treinados e jovens talentos).
Ao final da primeira rodada do returno, a 20ª do campeonato, o São Paulo dependia apenas dele mesmo para ser campeão, pois mantendo diferença de um ponto do líder, Palmeiras, bastaria vencê-lo para o ultrapassar. Não foi o que aconteceu, porém. Na 21ª rodada, o São Paulo foi derrotado (1 a 0) pelo Atlético Paranaense, em Curitiba, enquanto o Palmeiras venceu o Internacional, em São Paulo (2 a 1).
Não foram resultados surpreendentes, em ambos os jogos poderia acontecer qualquer resultado, tendo prevalecido o fator mando de campo. Além do São Paulo, também o Furacão vem se recuperando, desde que Antônio Lopes assumiu o comando do time. Igualmente o Inter, que caiu de produção na segunda metade do primeiro turno, dá sinal de recuperação. Os quatro fazem parte da elite do futebol brasileiro, em organização e competência, juntamente com mais alguns clubes: Corinthians, Grêmio, Goiás e Cruzeiro. Enquanto os times do Rio e o Atlético Mineiro, além dos nordestinos e mais um e outro, dão mostras de incapacidade de serem competitivos, esses oito se mantêm no topo ou se recuperam. Por quê? Porque compreenderam o sistema de pontos corridos.
A atual fórmula do campeonato é simples, mas décadas de regulamentos confusos e mutantes tornaram difícil compreender a simplicidade. Ela exige clubes organizados e a imensa maioria dos clubes brasileiros não é organizada. Assim, a constelação de grandes times brasileiros, que cresceram e se projetaram ao longo do século XX, pertence ao passado; o campeonato de pontos corridos criou uma nova realidade – não sozinha, é verdade, pois a mudança na legislação sobre o passe dos jogadores teve interferência decisiva nisso.
(Abro parênteses para dizer que os grande clubes brasileiros são clubes locais, embora comentaristas gostem de dizer que têm torcidas no país inteiro; o que faz os times cariocas e paulistas parecerem nacionais é principalmente o fato de as televisões – e antes as rádios – terem sede nestes estados, ajudando a divulgá-los para todo país, exibindo seus jogos. Além disso, sendo clubes de grandes centros são mais ricos e vencem mais disputas nacionais. Isso não o muda o fato de, por exemplo, o maior clube de Salvador ser o Bahia, mesmo jogando a segunda divisão.)
A antiga realidade era: os grandes clubes locais disputavam o campeonato brasileiro, que a cada ano seguia uma fórmula diferente e tinha número variável de participantes. A fórmula de pontos corridos, com turno e returno, começou limitando o número de participantes a 20, com descenso de quatro (no começo foram dois, se não me engano) e ascensão de outros quatro (foram criadas a segunda, a terceira e a quarta divisões – oficialmente são chamadas de séries A, B, C e D). Isto significa, em primeiro lugar, que o nome, a importância e a história do time não contam mais, só o que conta é o desempenho no campeonato, a cada ano. Como o número de clubes que caem é muito grande, a chance de cair todos os anos um ex-campeão é também grande – assim como de voltar no ano seguinte (já aconteceu isso com o Grêmio, o Atlético Mineiro, o Corinthians e este ano acontece com o Vasco).
Na atual fórmula, que é a tradicionalmente adotada na Europa, uma parte dos clubes passa o campeonato perseguindo um objetivo: não cair para a segunda divisão. Parece simples, mas não é; é preciso ter uma estratégia para isso, perseguir metas, organizar o time e formar sua mentalidade com esse objetivo. A luta pelo título fica com aquele pequeno grupo, que já compreendeu que, em primeiro lugar, é preciso ter um clube organizado, bem administrado, comandado com competência.
Clube organizado é aquele que tem estádio, orçamento, profissionais competentes, planejamento de longo prazo, patrocínios. Nessa organização, a estrutura de treinamento (campos, concentração, preparo físico, departamento médico, divisões de base) é fundamental. Em seguida vem o comando técnico: um treinador competente, vencedor, identificado com o clube e com sua torcida, no qual a direção confia e que, além do time principal, comande também as divisões de base. Esse treinador deverá fazer o planejamento de trabalho, para vários anos, e não apenas para uma determinada competição; deverá fixar os objetivos para cada ano, as metas de longo, médio e curto prazo, acordadas com a direção do clube.
A terceira coisa é o plantel: o campeonato brasileiro de turno e returno, que dura oito meses, não é disputado por um time de onze jogadores, mas um grupo de pelo menos trinta jogadores bem treinados. O treinador precisa ter esse elenco à sua disposição e reforços à altura para substituir os que saírem, não dá para formar plantel ao longo da competição, apenas trocar peças, e ainda assim o time, que é um conjunto, perde. No todo, a competência precisa se traduzir em comportamentos: um grande clube precisa se comportar como grande, do presidente ao jogador, do diretor de futebol ao treinador, e é este último que melhor personifica o vencedor. Há um aspecto psicológico na formação do time vencedor, que passe inclusive pelo perfil dos jogadores e do próprio treinador. Não são vencedores aqueles que não conseguem compreender a derrota, que põe culpa no juiz ou em alguma outra causa externa ao grupo – comportamento frequente de Roth e seus comandados.
Nesse campeonato sai-se bem o clube que menos oscila; que não dá goleadas, mas também não sofre goleadas, que vence as partidas disputadas em casa, mas também joga para ganhar fora de casa, porque o que vale é somar mais três pontos e o empate (um ponto) é quase tão ruim quanto a derrota. Sai-se bem o time que é bom por inteiro, que tem um goleiro de primeira linha, uma defesa segura, um meio de campo que sabe segurar e passar a bola, atacantes eficientes em pôr a bola nas redes. Sai-se bem o time que muda pouco, que perde menos jogadores por contusão, por expulsões e cartões amarelos. Estrutura, planejamento, competência, regularidade. Estas são as palavras-chave do campeonato brasileiro. (Um clube que tem isso e ainda tem a torcida que o Atlético tem é praticamente imbatível – donde se conclui que o Galo Forte tem praticamente apenas torcida.)
No atual campeonato, o clube que dá mostras de ter compreendido bem tudo isso, e por essa razão mesma supera expectativas, é o Avaí. Chegando ao quarto lugar, na 21ª rodada, o treinador Silas não muda seu discurso de que o objetivo do clube é permanecer na primeiro divisão. Ele tem elenco modesto, mas eficiente no jogo coletivo. Enquanto isso, grandes clubes que não compreenderam o campeonato até hoje, como o Flamengo e o Atlético, dão vexames e despencam na classificação.
Outros clubes também se saem mal por não compreenderem bem outro aspecto dessa disputa: o calendário. Está sendo assim como Cruzeiro este ano e foi assim com o Fluminense no ano passado – ambos perderam a Libertadores e despencaram no campeonato brasileiro, sendo que o Fluminense ainda não se recuperou, enquanto o Cruzeiro, que é mais organizado, está se recuperando. Os clubes disputam competições paralelas e precisam saber como farão isso, se vão privilegiar uma ou outra, e como se comportarão diante da vitória e principalmente da derrota. Ou seja: se o clube vai disputar duas, três, quatro, cinco competições no ano, precisa planejar sua participação em cada uma delas, considerando inclusive que algumas serão disputadas paralelamente.
O que o campeonato brasileiro mostra cada vez melhor é que se distinguem nele os clubes organizados dos clubes desorganizados, a competência da incompetência. Com tantas variáveis, todos os clubes enfrentam percalços, mas aqueles que são organizados e competentes conseguem superar as más fases mais rapidamente e são eles que acabam ganhando as competições (inclusive as menos importantes, como as estaduais, e também a Copa do Brasil, a Libertadores, a Sul-Americana) ou pelo menos conseguem se manter no grupo de elite do ano seguinte. Esse grupo de elite é aquele que vence o campeonato regional e disputa a Libertadores, ou ainda ganha a Copa do Brasil e a Sul-Americana. Enfim, disputa títulos todos os anos e ganha pelo menos um. Simplesmente não cair para a segunda divisão também pode ser o objetivo num ano ruim e deve ser a primeira preocupação de todo time que quer se manter na elite com realismo.
Considerando tudo isso é que a disputa do título de 2009 fica novamente entre o São Paulo e Muricy – este é um treinador vencedor, aquele é um clube vencedor. É mais fácil que o todo vencedor se saia melhor do que o treinador, mas a estrutura do Palmeiras pode surpreender. Outros clubes se esforçam para ocupar esse espaço: Goiás, Avaí, Internacional, Corinthians, Grêmio, Cruzeiro, Atlético Paranaense. O campeonato é longo e dá chances; mesmo os clubes mais regulares quem fases de queda. É mais importante ser regular no segundo turno do que no primeiro, mostra o retrospecto.
Para Atlético Paranaense, Cruzeiro e Grêmio, a questão é saber se conseguirão tirar a diferença atual do líder, em torno de dez pontos, e se superarão suas irregularidades. Enfim, se além de se afastarem da zona de rebaixamento e melhorarem seu desempenho no segundo turno, conseguirão crescer tanto a ponto de lutar pelo título ou por uma vaga no G4. Uma das dificuldades adicionais é que as vagas são poucas e os pretendentes acima deles são muitos – estes precisam cair de rendimento também, não basta que eles cresçam.
Para Corinthians e Internacional, a situação é parecida: conseguirão recuperar sua regularidade e manter a força que já tiveram? Se conseguirem, serão tão fortes candidatos ao título quanto São Paulo e Palmeiras. Sobre o desempenho do Avaí e até mesmo do Goiás paira uma dúvida: subiram, mas conseguirão se manter no topo? Têm qualidade para superar Palmeiras e São Paulo? Quando seu rendimento cair, serão capazes de se recuperar? Como os pretendentes ao título com possibilidades são muitos, o que acontecerá daqui pra frente serão muitas minidecisões, a cada vez que dois desses seis ou oito clubes se cruzarem.
Enquanto isso, ajudando a temperar ainda mais a disputa, clubes como o Botafogo, Coritiba, Santos, Vitória e Sport, além do próprio Atlético, ajustados por novos e bons treinadores ou empurrados pela torcida, também terão de somar pontos, seja para não cair, seja para disputar a Sul-Americana, o que significa que tirarão pontos dos clubes da elite. E é isso que ainda torna interessante assistir a algumas partidas – as minidecisões – ou pelo menos analisar o campeonato após cada rodada, como espectador. Como torcedor do Atlético, meu interesse só voltará quando o clube ingressar na elite dos clubes organizados e dirigidos com competência.
*Os pesares: 1) o futebol ficou muito mais físico, craque não tem vez, se também não for um atleta forte, alto e capaz de correr sem parar durante o jogo inteiro (situação que tiraria de campo quase todos os grandes do passado, que fizeram a história do futebol e as alegrias de várias gerações de torcedores); 2) o futebol ficou muito mais tático, com prevalência de treinadores e jogadas ensaiadas; 3) o futebol hoje é antes de tudo marcação, primeiro os times se organizam para destruir, só depois vão pensar em construir, com jogadas ensaiadas, o improviso virou exceção; 4) o futebol hoje é “sério” e violento, jogador que faz firula é ameaçado; 5) assim como nas jogadas de gol treinadas prevalecem atributos físicos (altura, impulsão, compleição etc.), também na marcação são ensaiadas práticas de antijogo, como segurar pela camisa, encostar no adversário, empurrá-lo, fazer falta antes que pegue a bola, dar carrinho etc.; 6) o futebol hoje é um grande negócio, movimentado não mais pela paixão dos torcedores que antigamente iam aos estádios aos sábados e domingos torcer por seus clubes e assistir aos seus ídolos, mas pelas emissoras de tevê, pelos meios de comunicação, pelos anunciantes, pelas federações de futebol, pelas empresas de material esportivo e pelos empresários de jogadores; 7) o futebol se tornou um entretenimento de massas transmitido pela televisão, revisto inúmeras vezes, aos pedaços ou na íntegra, e não mais um acontecimento social para se ver ao vivo (deixou de ser teatro** para ser televisão – note-se: não é cinema, é tevê, que tem características diferentes do cinema; cada meio tem sua mensagem, tem suas especificidades que geram realidades diferentes).
**O teatro, com o qual o futebol se parecia no passado, assim como o circo e outros espetáculos, é o tipo de entretenimento mais antigo da humanidade. Basicamente, ele reúne artistas e um conteúdo que se apresentam num determinado lugar em determinado horário para o público presente.
*** Há quem diga, com razão, que o jogo de futebol é o maior espetáculo do mundo contemporâneo. É um espetáculo com regras e objetivos, com elenco fixo, que pode ser representado em qualquer parte. Sendo ao vivo, um nunca é igual a outro, ainda que sejam parecidos. O que determina a grandeza do espetáculo? O talento dos artistas e seu desempenho naquele jogo específico. Disso se pode inferir que, minimizando-se a participação dos talentos e maximizando-se as jogadas treinadas, a marcação e a violência, diminui muito o encanto do espetáculo. Também sua transformação em espetáculo televisivo provoca mudanças no forma como o vemos: nossos olhos e nossa memória agora são afetados pelas imagens gravadas de diversos locais e por sua repetição. Nossa memória não é mais a memória daquele momento, mas a memória do que vimos ou revimos em algum momento. Igualmente, a emoção se transforma, não é a emoção vivida no estádio, no meio da multidão, diante dos artistas, mas a emoção vivida em ambiente doméstico restrito, diante da telinha.
**** Essa transformação é de tal forma que um torcedor habituado a ver futebol pela televisão se surpreende esperando o replay quando vai ao estádio. Aspecto diferente dessa influência é que o estádios procuram cada vez mais reproduzir o ambiente de conforto doméstico, inclusive instalando telões – prática que parece afirmar categoricamente que o futebol teatro está morto, que o que interessa hodiernamente é o futebol entretenimento eletrônico.
***Acrescentando àquela nota sobre o Galpão, devo dizer que Moscou é um passo na direção da posteridade. Uma concessão? Não chega a tanto, porque se trata de um documentário, no qual o trabalho do grupo não sofreu interferência do meio cinema: o Galpão não representou para a câmara, ao contrário, foi a câmara que filmou o Galpão representando. (O que o Galpão tem a dizer?) Não foi, portanto, cinema, muito menos televisão. O documentário tem esse aspecto de cinema não-cinematográfico.***** (O que Coutinho tem a dizer?) Porque o Galpão é um grupo de teatro autêntico, na forma shakespereana, um grupo que se desenvolveu junto, que formou repertório, que criou uma linguagem junto, que começou encenando na rua e, embora subindo ao palco convencional, continua praticando na rua e reproduz esse teatro na sua escola, formando novos grupos. E sendo assim, apesar de criar espetáculos fabulosos, o Galpão optou por ser fugaz, optou por encantar pequenas multidões ao vivo, num lugar, num momento passageiro. Até agora, o “espírito” do Galpão, o clima dos seus espetáculos estava acessível de forma perene apenas nos deliciosos discos com as trilhas sonoras, acompanhadas de alguns trechos das peças. Agora, está também em Moscou. (Conferir produtos do Galpão; parece que o grupo tem um vídeo da apresentação de Romeu e Julieta na Inglaterra.)
****A respeito disso é interessante analisar um novo ambiente criado recentemente nas grandes cidades: assistir a partidas de futebol na televisão em bares, ambiente que mistura as duas condições (ambiente público e visão remota), com acréscimos (bebida, comida) que ressaltam o aspecto comercial do entretenimento.
*****Este caráter do documentário me interessa e me estimula muito. Sobre ele pode-se dizer que não é possível filmar a realidade (e nesse sentido Moscou não filma a realidade, porque filma ensaios de uma peça, que já é por si representação), que basta ligar a câmara para que as pessoas deixem de ser o que eram e se crie uma relação com ela, que é diferente do original. Além disso, o filme não é uma projeção em duas dimensões de uma realidade que passou, que não está realmente ali, é uma ilusão, portanto. Mais: o filme é editado, não corresponde sequer ao que foi gravado. Mais ainda: a câmara tem sempre um ponto de vista – de quem? Pode-se dizer ainda contra o documentário que a realidade não tem interesse: pra que filmar o que acontece em uma casa (ou em qualquer outro ambiente) durante duas horas sem cortes, por exemplo? Isso vira filme caseiro, amador, que provoca tédio (se for tecnicamente mal feito é insuportável). A não ser que a filmagem documente um acontecimento muito importante que interessa a muita gente ou muito a algumas pessoas: uma revolução, a morte de pessoa famosa, uma catástrofe. Ainda assim o documentário me fascina, embora eu não saiba resolver seus problemas técnicos (como, por exemplo, sei resolver os problemas técnicos de escrever um livro documental, digamos assim). Me fascina a ideia de contar uma história real, sem a intermediação de atores e do escritor; me fascina a ideia de mostrar a realidade que não aparece nos veículos de comunicação movidos pela lógica de produção capitalista. História de gente comum, de gente pobre, de gente que não é personalidade, não é famosa, não é atleta, não é artista, não tem poder, não fez nada extraordinário. Gente que no entanto tem vida rica de significados. Enfim, me fascina a ideia de mostrar o que não é mostrado de uma forma que não é usual.
***Acrescentando àquela nota sobre o Galpão, devo dizer que Moscou é um passo na direção da posteridade. Uma concessão? Não chega a tanto, porque se trata de um documentário, no qual o trabalho do grupo não sofreu interferência do meio cinema: o Galpão não representou para a câmara, ao contrário, foi a câmara que filmou o Galpão representando. (O que o Galpão tem a dizer?) Não foi, portanto, cinema, muito menos televisão. O documentário tem esse aspecto de cinema não-cinematográfico.***** (O que Coutinho tem a dizer?) Porque o Galpão é um grupo de teatro autêntico, na forma shakespereana, um grupo que se desenvolveu junto, que formou repertório, que criou uma linguagem junto, que começou encenando na rua e, embora subindo ao palco convencional, continua praticando na rua e reproduz esse teatro na sua escola, formando novos grupos. E sendo assim, apesar de criar espetáculos fabulosos, o Galpão optou por ser fugaz, optou por encantar pequenas multidões ao vivo, num lugar, num momento passageiro. Até agora, o “espírito” do Galpão, o clima dos seus espetáculos estava acessível de forma perene apenas nos deliciosos discos com as trilhas sonoras, acompanhadas de alguns trechos das peças. Agora, está também em Moscou. (Conferir produtos do Galpão; parece que o grupo tem um vídeo da apresentação de Romeu e Julieta na Inglaterra.)
****A respeito disso é interessante analisar um novo ambiente criado recentemente nas grandes cidades: assistir a partidas de futebol na televisão em bares, ambiente que mistura as duas condições (ambiente público e visão remota), com acréscimos (bebida, comida) que ressaltam o aspecto comercial do entretenimento.
*****Este caráter do documentário me interessa e me estimula muito. Sobre ele pode-se dizer que não é possível filmar a realidade (e nesse sentido Moscou não filma a realidade, porque filma ensaios de uma peça, que já é por si representação), que basta ligar a câmara para que as pessoas deixem de ser o que eram e se crie uma relação com ela, que é diferente do original. Além disso, o filme não é uma projeção em duas dimensões de uma realidade que passou, que não está realmente ali, é uma ilusão, portanto. Mais: o filme é editado, não corresponde sequer ao que foi gravado. Mais ainda: a câmara tem sempre um ponto de vista – de quem? Pode-se dizer ainda contra o documentário que a realidade não tem interesse: pra que filmar o que acontece em uma casa (ou em qualquer outro ambiente) durante duas horas sem cortes, por exemplo? Isso vira filme caseiro, amador, que provoca tédio (se for tecnicamente mal feito é insuportável). A não ser que a filmagem documente um acontecimento muito importante que interessa a muita gente ou muito a algumas pessoas: uma revolução, a morte de pessoa famosa, uma catástrofe. Ainda assim o documentário me fascina, embora eu não saiba resolver seus problemas técnicos (como, por exemplo, sei resolver os problemas técnicos de escrever um livro documental, digamos assim). Me fascina a ideia de contar uma história real, sem a intermediação de atores e do escritor; me fascina a ideia de mostrar a realidade que não aparece nos veículos de comunicação movidos pela lógica de produção capitalista. História de gente comum, de gente pobre, de gente que não é personalidade, não é famosa, não é atleta, não é artista, não tem poder, não fez nada extraordinário. Gente que no entanto tem vida rica de significados. Enfim, me fascina a ideia de mostrar o que não é mostrado de uma forma que não é usual.
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