Sou muito melhor escrevendo do que falando. Às vezes penso nisso. Me lembro de um episódio marcante quando eu era adolescente. Foi no último ano do curso técnico e eu já frequentava a Umes – União Municipal de Estudantes Secundaristas. Era na época da ditadura, as entidades estudantis estavam controladas pelo governo e vigiadas pela polícia, a Umes era uma exceção. Sua sede era um conjunto de salas no Maleta. Íamos lá, eu, um ex-amigo, a namorada dele (aquela moça de quem lhe falei, que reencontrei outro dia) e mais meia dúzia de jovens. Não iam muitos estudantes lá, só pra fazer carteira de estudante e pagar meia entrada nos cinemas, mas isso garantia uma boa renda à Umes.
Então a gente resolveu fazer um jornal. Naquela época, jornal de estudante era rodado em mimeógrafo de tinta, dava muito trabalho e sujava muito. Numa reunião distribuímos as pautas, depois nos encontramos para ler os artigos. Como eu era o único que fazia curso técnico, fiquei encarregado de fazer um texto sobre ensino técnico. Era um ambiente de adolescentes, mas todos representavam algum partido clandestino e todos eram desinibidos, queriam falar, fazer prevalecer suas ideias. Ao final de cada texto, todos davam palpites para mudar.
A reunião durou muito, a gente estava cansada, meu artigo ficou para o fim, ninguém nem se lembrava dele, mas eu falei que faltava ele e tiveram de ouvir. Comecei a ler, com minha voz insegura. Ninguém interrompeu, ninguém falou nada, ficou todo mundo em silêncio. Era um texto diferente, porque falava do absurdo do ensino técnico autoritário e em tempo integral, como eu o vivia na escola técnica federal. Falava de liberdade individual, do tratamento que se dava aos estudantes, como se fossem máquinas de aprender, sem vontade própria. Li com emoção, porque era uma espécie de desabafo. Quando terminei, levantei os olhos do papel e olhei meus companheiros. Todos continuavam calados. Lembro que tinha uma moça muito bonitinha, de traços finos, que pertencia a organização adversária. Ela falava com muita delicadeza e ainda agora posso ouvir sua voz na minha memória. Era filha de um dos donos da Andrade Gutierrez. Mais tarde fez medicina, virou hare krishna, saiu de casa. Ela ficou olhando para mim, depois perguntou: Foi você quem escreveu? Alguém mais falou: Está muito bom. Houve mais um e outro comentários, não mais que murmúrios, e a reunião voltou ao normal, para as decisões de andamento do jornal. Entreguei meu texto para a menina, que era a editora e ela mexeu bastante no texto, adaptando-o à concepção do jornal, que eu não sei dizer agora, mas reconheci quando o jornal saiu – ainda tenho um exemplar dele. Por isso, as minhas angústias de então ficaram melhor registradas nos desenhos que fiz para ilustrar o artigo, pois, além de escrever, eu ilustrei boa parte do jornalzinho. Hoje tenho certeza de que os desenhos são melhores do que o texto e que eu deveria ter seguido a profissão de desenhista.
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Eu sentia e pensava do meu modo, mas só agia de acordo com ele se me sentia aprovado e amado; se meus sentimentos e ideias não eram os daqueles que me cercavam, eu me recolhia, não os expunha, não os defendia, não entrava em confronto (são emblemáticos a redação sobre o melhor amigo no quarto ano do grupo escolar e o artigo sobre ensino técnico para o jornal da Umes).
É como se eu dissesse: “Eu sou bom e inteligente, tenho bons sentimentos e boas ideias. Escutem-me, eu estou certo, aprovem-me, concordem comigo, amem-me”. Mas não era isso que acontecia: geralmente não me escutavam, não concordavam comigo, não me amavam. Foi por isso que comecei a escrever, porque escrevendo falo o que quero, ninguém me cala, ninguém me reprova, ninguém me despreza.
Nunca tive coragem de defender minhas ideias, meus sentimentos e minhas vontades se eles não eram aprovados e não geraram amor para mim. Nunca tive força para mudar quem é diferente de mim, nunca tive argumentos para convencer quem não via nem sentia como eu. Nunca fui bom na palavra falada, que tem voz, sai de uma boca, está ligada a uma cabeça, a um corpo, que tem beleza, força física ou carisma. Refugiei-me na palavra escrita que fala sem voz, que toca diretamente na imaginação do leitor, sem que ele me veja.
Nunca é uma palavra falsa, geralmente usada para dar ênfase a uma mentira. No meu caso, eu expunha o que sentia e o que pensava quando tinha aprovação; mais tarde, na época da escola técnica, passei a dizer o que pensava com o objetivo de chocar o ouvinte. Era agressivo, contundente, direto, conciso e obscuro. Achava que assim provocava o efeito de mostrar minha força e revelar a fraqueza do oponente. A partir do momento em que entrei na organização clandestina, porém, esse comportamento mudou: eu precisava ser amado pelo grupo e para isso devia concordar com ele.
Escrevi aquele texto dizendo o que eu pensava, ele foi uma oportunidade de me expressar, porque no convívio diário, como disse, não me impunha, não era ouvido; aquele embate permanente de ideias e egos me embotava a mente. Mas ao escrever o texto expus o que pensava, sem grande esforço, inclusive, porque, além da facilidade para escrever e da prática diária que eu tinha já nessa época, eu dizia o que sentia e expressava para mim mesmo há mais de dois anos.
Há duas explicações para a reação dos colegas, e talvez as duas estejam certas. A primeira é que escrevendo eu era muito melhor do que falando: inesperadamente, aquele menino miúdo (aos dezoito anos eu era ainda magrelo e baixinho), feio e tímido dissera coisas que não o consideravam capaz de pensar. A outra explicação é que meu texto tinha uma densidade existencial que extrapolava as referências políticas daquela turma e não combinava com a concepção política do jornal. A favor dessa explicação está o fato de Heloísa, a editora (ou terá sido um universitário hierarquicamente superior na sua organização, a quem mostrou o artigo?), tê-lo enxertado de trechos objetivos e chavões políticos da época. Eu contestava o sistema do ponto de vista da opressão individual, que era o meu, não da ordem social e política. Isso talvez fosse compreendido por todos ali, talvez não, mas o fato é que não combinava com um jornal de combate.
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