quinta-feira, 11 de novembro de 2010

Livros e filmes: Algumas coisas sobre 'O apanhador no campo de centeio'

Dizem que “O apanhador no campo de centeio” (diabo de nome esquisito, mesmo porque o dicionário recusa a palavra “apanhador” e campo de centeio não nos diz nada, a nós, brasileiros) é sobre a geração do pós-guerra, que é o primeiro livro sobre adolescentes escrito em linguagem de adolescente, que é um livro sobre a busca da essência e a rejeição ao mundo dos adultos. Aliam-se a isso as excentricidades do autor: Jerome David Salinger viveu recluso desde a publicação do livro, em 1951; não deu entrevistas nem se deixou fotografar; publicou pouquíssimos volumes e nenhuma outra história tão grande; não permitiu que seus livros contivessem mais do que as próprias histórias; e ainda, segundo sua ex-mulher, seria dado a práticas estranhas como beber seu próprio xixi. Por último, casou-se com uma mulher cinqüenta anos mais jovem (ele nasceu em 1º de janeiro de 1919). E tem ainda o fato macabro de o assassino de John Lennon ter pedido um autógrafo ao ídolo antes de matá-lo e declarar depois que o entendimento para seu ato está no livro. Pronto: temos um mito. Eu acrescentaria que ele me lembrou “O encontro marcado”, de Fernando Sabino, com o qual tem alguns paralelos: “O encontro...” também é um livro sobre a juventude, também fala da angústia de busca, foi escrito na mesma década, o escritor mineiro pertence à mesma geração de J. D. Salinger e bate na tecla da mesma idade mítica, os dezessete anos, idade do protagonista de “O apanhador...”, Holden Caulfield. Me parece óbvio que o livro é bom porque contém uma história que nos prende até o final. Sabemos que nos vai ser revelado o que acontece ao jovem H. C. e a cada página que passa estamos mais interessados em saber o que acontece com ele, porque o conhecemos mais (e gostamos mais dele, uma das mágicas de qualquer história: empatia). Também me parece certo que a narrativa na primeira pessoal e a linguagem coloquial que advém dela, cheia de gírias e palavrões – o que é um desafio para o tradutor e ao mesmo tempo um fator de envelhecimento, porque gírias e palavrões não apenas pertencem a um lugar e a uma língua, mas também a um tempo, fazendo com que a tradução, de certa forma, soe artificial – é um dos segredos do seu sucesso, porque confere autenticidade à história. Também me parece correto afirmar que a história retrata o pós-guerra, os anos que precederam o rock’n’roll e, especificamente na literatura, a geração beat. Ou seja, depois da revolução de James Dean e Marlon Brando, Jack Kerouac e Allen Ginsberg, Elvis Presley e Bob Dylan, e dos Beatles, “O apanhador...” não pega mais ninguém de surpresa, não tem o mesmo impacto, porque nos últimos cinqüenta anos a adolescência tornou-se uma idade respeitada. Tão respeitada que atravessou os vinte anos e já chegou aos trinta. Mais do que isso, hoje há roqueiros sessentões que ainda se comportam como jovens. Hoje existe o jovem profissional, há uma moda jovem, há música para jovens, há produtos para jovens. Pela data em que foi publicado, “O apanhador...”, se não é o precursor, é um dos precursores dessa valorização da juventude. “O apanhador...” é sem dúvida um livro para adolescentes. Como obra de arte que é, pode ser lida com prazer e interessar a pessoas de todas as idades. Eu o li agora, e imagino o impacto que teria sobre mim se a lesse aos dezessete anos, como li “Crime e castigo”. Há uma outra coisa que não foi dita, uma coisa que me tocou agora e me tocaria ainda mais naquela idade: o adolescente está desconfortável no mundo dos adultos, que não o compreende, que o maltrata, que quer enquadrá-lo. O adolescente quer um monte de coisas que está descobrindo e não pode ter, não consegue ter, por causa da sua idade, sim, mas também porque o mundo, que é feito e governado pelos adultos, não oferece. Diante de um mundo no qual não se reconhece e porque se recusa a crescer e se tornar o que rejeita nos adultos, o adolescente quer fugir. Reagindo às suas frustrações e à falta de acolhimento que sente entre aqueles nos quais deveria encontrar amor e compreensão, o jovem de dezessete anos quer sair de casa. Quer ir para bem longe, para um lugar em que não o conheçam, quer trabalhar em qualquer coisa apenas para poder comer, vestir, morar e levar a vida sem falsidades. Essa fuga, esse abandono do lar e da escola, é uma forma de liberdade. É a idéia que dá alegria, que redime, que afasta a depressão, que renova a vontade de viver, que ele sentia na infância, quando era ingênuo, não sabia nada e confiava nos adultos. Não importa o que acontecerá, importa apenas que ele está se libertando daquele mundo opressivo e que construirá sua própria vida. Visto assim, a rebeldia da adolescência nada tem de espantoso. É apenas o amadurecimento do homem, é o passo do menino que se torna homem, é um rito de passagem. É preciso romper e assumir o próprio destino para se tornar homem. O que torna opressivo (e depressivo) este mundo para o adolescente é a incongruência entre o que pensa, sente e deseja e o que o mundo dos adultos lhe oferece. É também a contradição que vê entre os valores que aprendeu e acredita – talvez mais do que isso, os valores que sente no fundo do coração – e os comportamentos dos adultos e mesmo dos jovens à sua volta. Apenas as crianças parecem conservar a pureza com a qual se identifica – embora nem ele mesmo seja tão puro, e sim contraditório, o que o deprime mais ainda. Por isso esse adolescente ama as crianças, como H. C. ama sua irmã caçula e sonha ser um “apanhador” num campo de centeio. Os beatniks pertencem à mesma geração de Salinger e têm temática semelhante, mas eles põem o pé na estrada, tornam-se marginais – usar drogas e ser gay são apenas aspectos dessa marginalidade. Escrevem o que vivem na estrada, que é a opção do jovem rebelde. “O que é a vida? Não sei. Só sei que não é essa droga que querem me impingir” – é como se dissessem. Escrevem sobre o que encontram na estrada, e na estrada encontram de tudo, tudo que encontram na estrada vale. Hoje em dia, ser gay não é mais ser marginal, é um status, como ser jovem, e usar drogas passou a ser apenas vício intimamente ligado ao mundo do crime. Este mundo é ainda o mundo capitalista, no qual não basta ser, é preciso ter; no qual não cooperação, mas competição; no qual é preciso progredir, ganhar dinheiro, ocupar posições, trabalhar duramente em lugares, ambientes e ofícios dos quais não se gosta. Uma rebeldia a esse mundo é o rock’n’roll, a eterna juventude; outra, é o socialismo, um outro mundo. O socialismo finalmente morreu, nos anos 90. A rebeldia jovem foi digerida pelo capitalismo, que transformou a juventude em consumidor. Será que o incômodo da adolescência acabou? Será que a revolução que “O apanhador...” inspirou mudou isso? É o que me pergunto. O sucesso contínuo do livro parece sugerir que não. Também é possível afirmar que a rebeldia da juventude não começou na década de 1940. A reacionária igreja católica tem nas suas hostes um religioso – Dom Bosco – que já no século XIX procurou compreender a juventude e dar-lhe o acolhimento que busca com sua rebeldia. Nossas escolas, porém, ainda estão longe de ser locais de acolhimento de adolescentes confusos. Os adultos estão longe de compreender a juventude e oferecer-lhe o que precisa receber. As famílias estão mais desfeitas do que nunca, os pais tão ausentes quanto nunca estiveram e a autoridade, intimidada. Esse desconforto em relação ao mundo é um sentimento próprio do homem, que se manifesta pela primeira vez, em geral, na adolescência. Não é à toa que há tantos suicídios entre adolescentes. Esta é a idade em que os homens precisam ser acolhidos, ser aceitos como são, receber apoio e afeto, mas também limites. Será o mundo capitalista capaz de nos dar isso? Será possível um mundo melhor sem que os homens sejam acolhidos na adolescência? Aquele beco sem saída da adolescência, que “O apanhador...” retrata tão bem, é na verdade um labirinto, pelo qual os adultos podem ajudar jovens a se locomover. No entanto, esta atitude “educativa” está longe de ser a predominante ainda neste começo de século XXI.

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