quarta-feira, 17 de novembro de 2010

A velhice do mundo eternamente jovem

O melhor da vida é a juventude, e a melhor parte da juventude é a infância. Juventude é brincar, maturidade é trabalhar; juventude é descobrir, maturidade é... descobrir que o melhor ficou para trás. O melhor do mundo também já ficou para trás, na sua juventude.

Quando eu era jovem, me incomodava com o discurso dos velhos: "no meu tempo..." Saudosismo. Os velhos da época, talvez mais jovens do que sou hoje, viam seu mundo desmanchar. E não era apenas porque a juventude tinha ficado para trás, é porque o mundo mudava rapidamente. Minha geração, jovem e ligada no novo, considerava aquilo saudosismo, coisa de velho. O que era velho estava ultrapassado. O novo é melhor. Minha geração elegeu a juventude como o valor mais importante. Minha geração não envelheceu. Era o começo do mundo contemporâneo, da etera juventude.

Envelhecer era um ritual: passar de uma idade a outra. Fases bem nítidas da vida: a infância (brincar), a adolescência (o começo das responsabilidades), a juventude (o começo da vida adulta), a maturidade (a plenitude), a velhice (a autoridade, o respeito). Minha geração parou na juventude. "Jovem para sempre!" foi o lema de quem se tornou adolescente depois da Segunda Guerra Mundial.

A primeira geração é aquela da qual fazem parte os Beatles; no Brasil, Chico Buarque, Gilberto Gil, gente que nos anos 60 entrou na casa dos vinte anos. Essa geração, cujo marco foi o ano de 68, em muitas partes do mundo, com suas manifestações, lemas e ícones, foi uma geração que decidiu ficar jovem para sempre. Em 1976, Gilberto Gil foi preso por uso de maconha, aos 34 anos; em 2010, os Rolling Stones continuam excursionando como uma banda de adolescentes, aos 70 anos. A minha geração veio em seguida e já considerava a juventude um valor permanente.

O uso eterno do jeans – uma roupa de vaqueiros americanos, que virou moda jovem – e dos cabelos grandes para rapazes (mesmo brancos, mesmo ralos), a adoção do tênis como calçado universal, o rock como música permanente, mesmo virando pop, mesmo perdendo qualquer caráter de contestação. A juventude eterna virou um produto de consumo, um valor universal. Jovens de setenta anos, é o que temos hoje.

Transformada em valor eterno e em consumidora, a juventude eliminou as demais idades: a velhice, com sua autoridade e sabedoria, foi destronada; a infância foi eliminada, para que as crianças se transformassem rapidamente em jovens e integrassem o mercado de consumo, pois produtos para crianças propriamente ditas são poucos, crianças inventam brincadeiras com imaginação. Antecipar e prolongar a juventude. Indústrias e mais indústrias da juventude eterna: cirurgias plásticas, academias de ginástica, cosméticos, medicamentos... As crianças são evitadas, os velhinhos são descartados: quem não for consumidor, quem não for jovem, não serve.

Mas a vida é feita de contradições: o melhor da vida é a juventude e a juventude do mundo ficou para trás. Este mundo da juventude eterna é um mundo velho.

O futebol, por exemplo. Jamais teremos outro Pelé, jamais teremos outro Garrincha, jamais teremos copas do mundo como as de 58 e 62,times como o Santos. O melhor futebol ficou para trás. Temos hoje o vício de consumir futebol, e é só. Futebol, hoje, é parte do mundo de consumo, onde tudo é preparado para vender. Consumimos futebol porque somos viciados nele, mas os bons tempos ficaram para trás.

Meu pai viu o futebol envelhecer. O futebol era jogado por muitos e presenciado no campo por alguns milhares, era uma emoção que fazia parte da sociedade, um acontecimento social vivido por pessoas que se conheciam. Era preciso ir ao compo para ver os craques, os times, os grandes jogos. Os craques de então eram jovens comuns, talentosos e atletas por natureza – nem sempre o talento e o vigor físico conviviam no mesmo jogador. O público que ia ver os jogos nos domingos à tarde, eram vizinhos, conhecidos, pessoas que se encontravam ao longo da semana. Os feitos ficavam na memória de cada um, sem replei, sem videoteipe.

Somos formados na ideia de que o novo é melhor, de que o novo produto e a nova tecnologia são mais avançadas. Essa ideia faz parte do valor da eterna juventude. No nosso mundo não há lugar também para objetos velhos. Velho é pior, velho é superado. Se em parte isso é verdade, pelo avanço da tecnologia, em outra parte é a ideologia do sistema, que exige o descarte do velho, para que compremos o novo. Uma parte é avanço tecnológico, outra parte é consumismo. Mesmo que a tecnologia não avance, o produto muda, para parecer melhor, novo, mais jovem. A juventude é o apelo para o consumo. O produto não é feito para durar. Pra quê? Daqui a um ano haverá um novo modelo e o atual estará obsoleto.

Esse mundo de eterna juventude e de consumo do novo, inverteu as posições. Nas gerações anteriores, velhice era sinal de sabedoria, de experiência, de conhecimento. É compreensível: quem viveu mais conhece mais. No mundo contemporâneo, velhice é sinal de obsolescência, porque o conhecimento vem da tecnologia, não da experiência. Num mundo que se renova continuamente, para que serve a experiência? É preciso conhecer o novo, a nova tecnologia.

O jovem leva vantagem sobre o velho, porque é mais fácil aprender na juventude e porque ele não tem de desaprender a tecnologia antiga. O conhecimento das pessoas mais velhas torna-se inútil, está superado. Desperta aquele sentimento que eu tinha quando ouvia meu pai falar que o antigo era melhor: saudosismo. O velho precisa ser "eternamente jovem" para continuar capaz de operar o mundo. Ser eternamente jovem não é mais uma questão apenas de aparência e linguagem, é também uma imposição do sistema.

Daqui a alguns anos ninguém se lembrará mais que a juventude do mundo antigo foi melhor do que a velhice deste mundo eternamente jovem, ninguém se lembrará que o futebol de Pelé e Garrincha foi o melhor de todos os tempos. Os velhos que viveram a juventude do mundo estarão mortos e com eles aquela experiência. No entanto, como o mundo é feito de contradições, a população humana estará envelhecida, pois a fecundidade diminui, e em algumas décadas teremos muitos velhos, muitos adultos e poucos jovens, poucas crianças. A ideia de juventude estará subvertida, num mundo velho. A ideia da eterna juventude será uma coisa de velhos. As novas gerações terão de recuperar a infância para seus filhos, depois de recuperar o desejo de ter filhos. Talvez recuperem as fases da vida e as idades perdidas.

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