domingo, 7 de novembro de 2010

Saramago, iluminismo, filosofia, Lula, ideias e experiência

Sapere aude!*

Quando todo mundo deixou de ser comunista, Saramago persistiu. Ler sua biografia na Wikipédia é ver como a sociedade portuguesa é conservadora. Em outras épocas mais progressistas, até a década de 1970, as palavras de Saramago não se sobressairiam tanto, mas sua obra começou justamente quando a reação vencia. O fato de ser português, de escrever numa língua sem tradição de repercussão mundial, ajuda a chamar atenção para si. Mas o que Saramago diz pode ser dito por qualquer intelectual contemporâneo, deve ser dito por todo intelectual de nacionalidade influenciada pela religião católica.

Imagino-o diante do escandaloso debate (?) medieval que tomou o centro da campanha eleitoral brasileira durante mais de um mês, entre a reta final do primeiro turno e o segundo turno, sobre o aborto. A direita encurralou a esquerda. Temendo perder a eleição, a candidatura do PT recuou e assumiu compromissos com o que há de mais reacionário. Com isso, aparentemente, a direita venceu, mesmo tendo perdido. Mas terá sido Dilma realmente acuada? Dilma é mais que Dilma, seu governo vai além da sua vontade e das suas ideias.

A forma de agir da direita é sempre a mesma, desde a... revolução burguesa! Mas a revolução burguesa, em andamento, não sabia ainda que seria uma revolução burguesa. Nada sabe o que é enquanto está acontecendo. E como a história não acaba nunca, não sabemos o que ela é, o que se realiza nela. Isto é filosofia. Será Hegel? Não é apreender o momento histórico como não é possível ver o universo: não é possível compreender o todo sendo parte dele.

A revolução burguesa era uma revolução do povo, o Terceiro Estado, no qual burgueses e trabalhadores estavam juntos, contra a nobreza e a igreja. Só depois, quando assume o poder, é que a burguesia se separa dos trabalhadores, e para isso é capaz de se aliar aos reacionários a quem derrotou. A burguesia não consegue levar a cabo a revolução democrática, bandeira que empunhou (porque a democracia contraria seus interesses e pulveriza seu poder), assim como não consegue levar adiante o iluminismo e a ciência. Para conter o povo, os burgueses, agora reacionários, usam os mesmos recursos assustadores da igreja.

Tudo me joga na história. É o que me interessa. Manifestar minhas opiniões é um movimento que faço, mas a história segue sem mim: Lula tem muito mais importância do que qualquer coisa que eu escreva, embora o que eu escrevo tenha alguma importância. É muito mais importante compreender o que se passa, para onde vai o mundo, quais são as forças que o movem, do que bradar o que eu penso. Quem sou eu para criticar Lula? Que prática, que experiência tenho eu em política? No entanto, tenho obrigação intelectual de conhecer aquilo sobre o qual pretendo escrever. Meu brado não deve ser de ignorância arrogante, mas do que descubro olhando o que é importante, a partir do conhecimento que tenho. O trabalho intelectual é um processo, é um brado com humildade, um brado humilde.

O que vale na vida é a experiência, as ideias de nada valem sem a experiência, e só ideias se deformam. A imaginação transforma ideias em fantasias. Fantasias nunca se igualam à realidade, a realidade é sempre mais rica do que qualquer fantasia. Por isso é preciso experimentar. Por isso é preciso fazer sempre o movimento da ideia à experiência e da experiência de volta à ideia. Porque somos seres que imaginam, que têm ideias, que pensam, mas o que importa, no fim, é a realidade, não a ideia que temos dela. A ideia é o instrumento humano de lidar com a realidade. Isto também é filosofia. O trabalho intelectual talvez seja a reflexão permanente da experiência alheia.

É preciso compreender Lula, é preciso saber como age Dilma. Quais as informações que eles levam em conta? Qual o padrão da sua política? Lula é um negociador. Isto significa não apenas que ele está sempre negociando, mas que ele acredita que é assim que se faz política, que é assim que ele atingirá seus objetivos. E ele tem objetivos, tem princípios, tem referências. Lula não é um idealista, no sentido de ser propagandista, de abandonar um caminho porque não está como ele quer, de não ser capaz de sujar as mãos. Lula não é um revolucionário. Lula não prega o conflito nem age pelo conflito.

A web é um fenômeno similiar ao iluminismo. Outros dirão à invenção da imprensa. Mas a web é muito mais do que a imprensa, porque não é mais democrática, é democrática, enfim. Não é que todos (ou número maior, os alfabetizados) tenham acesso ao conhecimento: todos participam da produção e da difusão do conhecimento.

* (Ouse ser sábio!) O lema do Iluminismo é, de certa forma, uma resposta ao alerta de Descartes: "Pensar com a própria cabeça é um risco que não aconselho a todos correrem".

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