quinta-feira, 11 de novembro de 2010

Sobre estrangeirismos

Essa gente hoje em dia
Que tem a mania da exibição
Não se lembra que o samba
Não tem tradução
No idioma francês
Tudo aquilo que o malandro pronuncia
Com voz macia
É brasileiro
Já passou de português
(Noel Rosa, Não tem tradução)


O brasileiro é um idioma malandro, como o povo.

Em português, a palavra inglesa site, recorrente na internet, é sítio. Em espanhol também. Outros idiomas também a traduzem. No Brasil, site é site, mas se pronuncia saite, embora se escreva na forma inglesa, sem itálico, sequer. O que se vê na língua é o que se vê na cultura brasileira. O brasileiro não é como o português, um povo que cultua a própria língua, talvez porque sua língua não seja sua. Somos brasileiros, não somos portugueses.

Está no Casa Grande & Senzala (obra de grande erudição, mas chata de se ler) esta informação interessantíssima: temos tantos acidentes geográficos e localidades com nome tupi porque na época dos desbravamentos era o tupi a língua mais falada no país, e não apenas pelos indígenas, mais numerosos que os colonizadores, mas também pelos mestiços e pelos próprios portugueses, missionários jesuítas inclusive, que, para se comunicarem precisaram aprender a língua indígena.

O português permaneceu durante os primeiros séculos como a língua das elites, das casas-grandes, de um gueto, enquanto era o tupi a língua falada território adentro, nos sertões e nas matas, mesmo em São Paulo (de onde partiram as bandeiras e onde a palavra bugre é usada correntemente, havendo inclusive um clube de futebol denominado Guarani, cujos torcedores e atletas são chamados de bugres).

Isto significa que tantos nomes indígenas preservados em acidentes geográficos e localidades não o foram porque conservamos os nomes dados pelos indígenas, mas porque os demos nós mesmos, isto é, os brasileiros, os descendentes dessa mistura de raças, que inicialmente adotaram o tupi-guarani como língua geral (os jesuítas inclusive criaram uma língua assim denominada, “língua geral”, que nada mais era do que o tupi como eles o aprenderam, diz Gilberto Freyre, com os culumins, curumins, as crianças indígenas, principal alvo da sua catequese).

Nossa língua incorporou elementos indígenas e africanos. E se inventou também, o que não a diferencia de outras línguas, o português de Portugal entre elas, pois toda língua é viva e se transforma. A questão é que esta é uma característica brasileira: não valorizamos o português.
Não sei se o fenômeno existe em outros países, não sei se existe nos EUA, por exemplo, que adotaram a língua do colonizador inglês. Afinal, os europeus colonizaram o mundo e tornaram a língua importada oficial nos novos países. Em grande parte da América, a língua é o espanhol, uma vez que foi a Espanha que colonizou os territórios hoje divididos em quase duas dezenas de nações.

Qual a diferença entre o espanhol da Espanha e o espanhol americano? Não sei, mas sei que muitos dos países da América espanhola mantêm dialetos locais, línguas originais dos indígenas. No Brasil, os dialetos indígenas não se misturam com a população nacional. No entanto, a população nacional mudou o português, região por região, resultando numa língua única, falada de diversas formas (sotaques, sintaxe, vocabulário) e no todo diferente do português de Portugal.

Daí a diferenciação, entre nós, da língua falada e da língua escrita, da língua popular e da língua culta. A língua escrita e culta seguiu os padrões portugueses, enquanto a língua falada e popular distanciou-se muito daqueles. Esta é outra observação interessante de Gilberto Freyre sobre o mesmo assunto; de um lado, a língua escrita, oficial, o português dos bacharéis, de outro, a língua falada, a língua do povo, dos iletrados, dos analfabetos, dos mestiços, das crianças, dos indígenas e dos negros, enfim, a língua daqueles que aprenderam a falar no dia-a-dia e não nos livros.

No começo do século XX, os escritores modernistas começaram a quebrar essa dicotomia, adotando novas formas de escrever mais próximas da língua falada, popular. Não chegamos, porém, a um brasileiro propriamente dito, isto é, uma nova língua, derivada do português, ainda que seja quase impossível compreender o que fala um português rapidamente e mesmo na língua escrita haja diferenças, que o recente acordo ortográfico diminuiu e confundiu. E uma das diferenças é justamente que os portugueses adaptam os estrangeirismos.

Assim foi com o francês (em Portugal, vitrine é vitrina) e é com o inglês (como no caso citado, em que site, lá, virou sítio). Nós, brasileiros, que nascemos colonizados e não temos porque nos orgulhar de uma língua que também veio importada e nos foi imposta, não diferenciamos afinal sítio de site e vamos assimilando o inglês, como assimilamos antes o português.

Para nós, tudo são estrangeirismos: o inglês, o francês, o português. Preferimos a forma inglesa, sempre. É como se disséssemos: para que verter um estrangeirismo para outro? Curiosamente, pronunciamos os estrangeirismos na versão original, adotando sons que não são da língua portuguesa, o que cria um conflito entre a fala e a escrita.

Não estamos preocupados com a língua escrita, pois não escrevemos, somos pouco escolarizados, semianalfabetos e analfabetos. Não falamos site, mas saite, mesmo sem saber inglês. Aprendemos as palavras na sua forma original, conteúdo e forma juntos. Frequentemente, só forma, sem conteúdo, pois não sabemos exatamente do que se trata.

Iniciativas como a do deputado Aldo Rebelo, dado a esquisitices (recentemente andou defendendo os latifundiários contra os ambientalistas, embora seja um membro histórico do PCdoB), de obrigar o uso da língua portuguesa em publicidade e comunicações coletivas parecem importantes, mas talvez sejam insensatas. O povo brasileiro – o deputado comunista deveria saber disso – não respeita a língua do colonizador. Adotou-a, mas a transformou, criando sua própria língua.

Nossa língua, como disse Noel Rosa, “é brasileiro, já passou de português”. É uma língua diversificada, aberta a todas as influências, que convive com todas as línguas e raças, numa falta de identidade própria, numa sem-vergonhice tamanha, numa malandragem tal, que talvez, como o povo brasileiro, venha a ser, enfim, uma qualidade cultural.

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