quinta-feira, 11 de novembro de 2010

Discoteca: Secos & Molhados (1973)

O começo da década de 1970 foi talvez aquela que viu ser produzida a maior quantidade de grandes álbuns de música popular, tanto no Brasil quanto no exterior. É curioso, porque o Brasil vivia os anos de chumbo, o pior momento da ditadura militar, e o mundo vivia o refluxo dos revolucionários, luminosos e loucos anos 60. Era mesmo um período nebuloso, obscuro. No entanto, brilharam na escuridão algumas obras-primas que ainda refletiam a luz da década anterior, como uma estrela morte que ainda enxergamos no céu, ou, ao contrário, reagiam ao terror dominante. No primeiro caso está, por exemplo, “Tapestry”, de Carole King; no segundo, “Construção”, de Chico Buarque. Há fenômenos que só podem ser explicados pela conjunção de vários fatores, os quais, superados, impedem sua continuidade, ainda que alguns insistam em seguir adiante. Seguir adiante, no caso, significa mudar, mas o sucesso, como se sabe, cega.
Foi este o caso do Secos & Molhados, o efêmero grupo de quatro, três, dois ou apenas um – embora a questão chave seja exatamente quem é esse um que personifica o grupo. Para João Ricardo, o músico dono do nome S&M e sua cabeça, o núcleo era – e é ainda (basta ver a página na internet) – ele. Para o público, porém, o Secos & Molhados era sobretudo um corpo – e uma voz: Ney Matogrosso. O fenômeno S&M não existiria sem seu inventor, é certo, mas este deveria entender que a banda não sobreviveria sem Ney. Chega a provocar pena ver como JR tenta apagar a importância de Ney na história do S&M, como se fosse apenas um dos tantos integrantes que o grupo teve antes e depois. Talvez, se JR percebesse a condição imprescindível de Ney para a banda, ela tivesse durado mais. Se ele compreendesse que com a saída de Ney o grupo morrera, talvez fosse capaz de procurar um novo caminho e construir para si uma carreira solo digna, sem se apegar ao S&M como uma viúva se apega ao guarda-roupa do marido. Ney nunca mais brilhou tanto como brilhou no S&M, mas JR nunca mais brilhou sequer.
Afora o choque de egos e um possível rompimento amoroso entre Ney e João, o meteórico fenômeno Secos & Molhados – que lembra outro, ocorrido duas décadas mais tarde, os Mamonas Assassinas – tinha na sua origem já as causas da sua morte. Durante um ano ou dois, tudo convergiu para seu sucesso: o criativo JR encontrou Ney, um artista que desabrochou tardiamente. Os dois, mais Gerson Conrad e Sérgio Rosadas (as quatro cabeças servidas na bandeja da capa do álbum), fizeram um som diferente. A androginia de Ney encantou o público e casou com a “modernidade” do Fantástico, que lançou o S&M no seu programa de estréia. Com 300 mil cópias vendidas em dois meses, S&M era ao mesmo tempo uma contestação ao sistema e um produto do sistema. Quem queria, se apegava ao conteúdo político de “Rosa de Hiroshima” (melodia sobre poesia de Vinicius de Moraes) e “Sangue Latino”. Enrustidos se identificavam com o rebolado e a maquiagem provocantes de Ney. Quem queria diversão apenas, cantava “Gato preto”. Enfim, a dubiedade da banda satisfazia a todos. E a qualidade daquela conjunção de talentos era inegável.

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