segunda-feira, 29 de novembro de 2010

O Almirante e o Doutor

"Há muito tempo nas águas da Guanabara / O dragão do mar reapareceu... Conhecido como Almirante Negro / Tinha a dignidade de um mestre sala"

Acho que o marinheiro João Cândido Felisberto ficaria feliz se pudesse saber que, um século depois da revolta que liderou, o Brasil elegeu uma mulher presidente, depois de ter sido governado durante oito anos por um operário – um Doutor na arte de governar, assim como o marinheiro tornou-se um verdadeiro Almirante dos mares. Em maio passado, o Almirante foi homenageado pelo Doutor, que batizou com seu nome o primeiro navio da nova frota da Transpetro lançado ao mar. Foi o primeiro navio feito no Brasil para a Petrobras, em 13 anos. Petrobras, João Cândido, Lula, Dilma. Tem um Brasil sendo desenhado nestes "pontos de bordado", um Brasil diferente daquele feito pelos doutores e almirantes que não merecem seus títulos. Um Brasil melhor.

Tomo a ideia do bordado emprestada do historiador José Murilo de Carvalho, autor do ensaio Os bordados de João Cândido, sobre o herói da Revolta da Chibata. São dele também muitas das informações que se seguem. João Cândido era um marinheiro típico: um crioulo "alto, feio e forte", filho de ex-escravos. Nasceu em 1880, no Rio Grande do Sul; morreu em 1969, no Rio de Janeiro. A grande tristeza da sua longa vida foi ser traído pelo governo, expulso da Marinha e ver seus companheiros morrerem cruelmente. Para expurgá-la, bordou toalhas, no período em que esteve encarcerado.

Consta que João Cândido não era rebelde nem organizou a revolta, que eclodiu nos encouraçados Minas Gerais e São Paulo, no dia 22 de novembro de 1910, mas assumiu seu comando devido a sua ascendência sobre os marinheiros. Os dois navios tinham sido comprados recentemente pelo governo brasileiro e estavam entre os mais modernos do mundo. Seu desfile na Baía de Guanabara maravilhou a população da então capital federal.

As negociações para rendição dos marinheiros incluiu a concessão de anistia. Leal à pátria, João Cândido inclusive bombardeou o quartel dos fuzileiros navais que se rebelaram dias mais tarde. A rebelião da qual fez parte reivindicava a eliminação da punição com chibatadas a marinheiros indisciplinados, em geral negros, que ainda era prática na marinha brasileira 22 anos depois de abolida a escravidão. "Nós, marinheiros, cidadãos brasileiros e republicanos, não podemos mais suportar a escravidão na Marinha brasileira", dizia o manifesto da Revolta, que teve como estopim o castigo de 250 chibatadas aplicadas em um marinheiro do Minas Gerais no dia 21 de novembro.

Numa vingança dos oficiais contra os subalternos, na primeira oportunidade, os revoltosos foram traiçoeiramente presos e 18 deles jogados numa cela subterrânea lavada com água e cal, no presídio da Ilha das Cobras. Apesar dos protestos, gritos e pedidos de socorro, foram mantidos ali durante toda a noite de 24 para 25 de dezembro. Os carcereiros não tinham as chaves da cela, levadas pelo comandante do Batalhão Naval, um capitão-de-fragata, para sua festa de Natal. Quando ele voltou, às oito horas da manhã, 16 presos tinham morrido asfixiados, apenas João Cândido e o soldado naval João Avelino sobreviveram.

Não foi a primeira vez que as classes dominantes brasileiras trataram as classes subalternas insubordinadas com crueldade. Também não seria a última. A história brasileira está repleta de episódios assim. Cito apenas dois deles porque têm aspectos que lembram a Revolta da Chibata. Em 1823, durante as chamadas "guerras de independência", 252 brasileiros republicanos foram mortos asfixiados com cal no porão do navio Palhaço, no Pará, pelas tropas de D. Pedro I. Em 1844, no acordo de rendição da Guerra dos Farrapos, os revoltosos gaúchos desarmaram e entregaram ao exército imperial os escravos libertos do batalhão conhecido como Lanceiros Negros; foram massacrados.

O lema dos marinheiros dos encouraçados Minas Gerais e São Paulo era "Ordem e Liberdade". Faz mais sentido do que esse "Ordem e Progresso" que meia dúzia de militares positivistas gravou na nossa bandeira e que persiste até hoje, justificando a violência das elites. No lema dos positivistas, o progresso justifica a ordem; no lema dos marinheiros, a liberdade delimita a ordem. A violência no Brasil nunca vem do povo, é sempre contra o povo, um povo amoroso e ordeiro, como os companheiros de João Cândido, mas, historicamente, sem liberdade, sem direitos, sem cidadania. Dá certo conforto constatar que a história anda para a frente e faz justiça. Um século depois, João Cândido é lembrado em músicas, peças de teatro e museus, seu nome está incorporado à frota naval brasileira, da qual ele nunca quis sair. Dos nomes dos assassinos cruéis, quem se lembra?

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