"A arte da política – a história que vivi", do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, é um livro de memórias de um intelectual no poder. Ele mostra como a política brasileira é rasteira e provinciana também em âmbito federal e não apenas local ou regional. A velha imagem das negociatas políticas – que a bela telenovela Cidadão Brasileiro, da Rede Record, retrata tão bem – não pertence ao passado nem aos grotões.
O ex-presidente – que tudo justifica, tudo tolera e tudo compreende – consome grande parte do livro explicando o jogo político. Narra que seu governo se empenhou em realizar as reformas de que o país precisava, mas foi limitado ou paralisado pelas pressões dos políticos, mais preocupados com seus interesses particulares do que com os da nação. Interesses esses que o ex-presidente considera legítimos e parte do jogo político.
O quadro dos “bastidores” que emerge do livro – longe de conter revelações bombásticas – é a confirmação da mesquinhez daqueles que nos representam nos poderes da República, ainda que a estabilização econômica e as reformas modernizadoras tenham sido fruto do esforço de um grupo competente, dedicado, idealista e patriota. É um desalento para quem ainda tem alguma esperança no futuro do Brasil. Não que o presidente pense assim, pois além de otimista e membro da elite que nos governa desde sempre – ainda que poucos poderosos tenham tido seu brilhantismo –, Fernando Henrique Cardoso se comportou no poder – é o que o livro mostra – como um intelectual em estudo. Teve o cuidado de registrar diariamente suas impressões sobre os acontecimentos nos palácios do Planalto e da Alvorada, registro do qual o livro é apenas uma pequena amostra e que certamente vem a ser um dos mais importantes documentos da história política nacional.
A reeleição do presidente, possibilitada por emenda constitucional que Fernando Henrique patrocinou, foi um divisor de águas no governo do tucano. A denúncia de compra de votos é uma mácula da qual não conseguiu se livrar. O ex-presidente diz, no livro, que não tinha interesse pessoal na reeleição, mas confessa que depois se sentiu mordido pela mosca azul. Sustenta que a intenção era fortalecê-lo politicamente para prosseguir nas reformas, que estavam praticamente paralisadas já em 1996 e que não cogitara ainda se candidatar. Assinala que a compra de votos foi um movimento da oposição, que inclusive se insinuou ao governo: era uma compra de votos contra a reeleição, mas que poderia também ser a favor da reeleição, se o governo pagasse... Garante que seu governo não comprou votos e que as denúncias feitas foram caluniosas, que sequer precisava disso, pois a reeleição interessava também a governadores e prefeitos e passou no Congresso com folga.
De qualquer forma, FH não pôde e não pode se livrar das desconfianças que cercaram a emenda constitucional – ainda que a opinião pública demonstrasse apoio majoritário a ela, ainda que o presidente fosse reeleito no primeiro turno – pelo simples fato amoral de ter mudado uma regra em seu benefício, com o jogo em andamento. O ex-presidente, que, no livro, entre outras coisas, faz da própria experiência um estudo de caso sobre a ética na política, deveria saber disso. Como separar o interesse nacional do interesse pessoal? Como ele próprio cita no livro, à mulher de César não basta ser virtuosa, ela precisa também aparentar que o é. O presidente tem consciência de que o casuísmo manchou sua biografia, e diz isso, mas, mais uma vez, parece avaliar que valeu a pena.
Fernando Henrique reserva à imprensa papel importante na democracia brasileira pós-ditadura militar. Ela atua indiretamente sobre o poder, como manifestação da opinião pública, e por isso não pode ser menosprezada. As forças que atuam diretamente são os parlamentares, os partidos, os governadores e prefeitos, os lobbies de empresários, de corporações, de funcionários públicos e até de movimentos sociais. Os partidos brasileiros não se comportam coesamente como grupos ideológicos e os políticos não são disciplinados. As mais diferentes causas e interesses perpassam todos os partidos, reorganizando-os em novos grupamentos, conforme a questão em pauta. Esta prática é agravada pelo fisiologismo, isto é, pelos políticos – em geral pertencentes a partidos inexpressivos, mas não apenas a estes – que fazem da sua atuação parlamentar uma troca de votos por favores particulares ou para suas bases, que se traduzirão em vantagens pessoais ou em votos. Tudo isso torna a tarefa de governar uma permanente negociação de varejo em busca de aprovação dos projetos governamentais que devem se converter em leis no Congresso.
Nesse quadro, a oposição é muito sensível aos clamores da opinião pública, diariamente manifestada na imprensa. O resultado prático mais flagrante dessa influência são as Comissões Parlamentares de Inquérito (CPIs), sem sempre formalizadas e menos ainda – como vemos atualmente – eficazes, mas um tormento permanente para o presidente. Vale no caso, em geral, o ditado: “os cães ladram e a caravana passa” – seja qual for a caravana, isto é, o governo. Mas que fica uma enorme onda de poeira e um mau cheiro no ar, isso fica, adoecendo o presidente e membros da sua equipe e deixando na lembrança do povo uma convicção difusa de corrupção generalizada e, o que é pior, de impunidade.
Com tanto desengano, não é de espantar que a política brasileira tenha sido trágica para todos os governos civis a partir de 1985. Basta lembrar das mortes de Tancredo Neves, o Moisés que nos conduziria à Nova República; Dílson Funaro, líder messiânico do Plano Cruzado; Pedro Collor, o gatilho do impeachment do seu irmão Fernando; Luiz Eduardo Magalhães e Sérgio Motta, grandes apoios de Fernando Henrique. E agora a execração pública de José Dirceu e José Genoíno. Sem falar nas mortes de Ulysses Guimarães e Teotônio Vilela.
Parte fundamental desse ambiente é o chamado denuncismo, praticado pela imprensa nas últimas décadas, principalmente a partir dos escândalos que levaram ao afastamento do então presidente Collor. É compreensível e mesmo necessário, nessa democracia recente e de práticas rasteiras, que a imprensa atue de forma vigilante. Ela faz certamente mais a favor do que contra a consolidação da democracia brasileira. No nosso mundo tecnológico, em que até o voto já é eletrônico, a imprensa é um poder democrático, que, de alguma forma procura compensar a ausência da participação popular nos quadriênio que separa duas eleições.
A questão que se coloca é sobre os danos que denúncias improcedentes trazem para cidadãos probos – políticos ou não – e para o País. Não há reparo (quando acontece) que recupere o estrago feito. O bandido pode tomar o lugar do honesto, abrigando-se no anonimato garantido pela proteção da fonte, e destruir um caráter ou um projeto idôneo. A imagem negativa que se forma sobre o próprio País na população tem conseqüências danosas.
Trata-se de uma questão delicada e das mais importantes para nossa imprensa que há apenas uma geração se acostumou com a liberdade. Seu desafio é não servir de instrumento para interesses escusos de bandidos, corruptos, inimigos das suas vítimas ou mesmo levianos, incompetentes e sectários. É afastar de si o cálice do sensacionalismo, fácil (para o repórter) e lucrativo (para o proprietário).
O presidente e o ex
O presidente Lula recebeu um reconhecimento de quem menos esperava. Na última página do seu livro de memórias sobre o período em que esteve no poder (A arte da política: a história que vivi, Civilização Brasileira, 700 páginas, R$ 70), o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso diz que um país precisa de líderes morais e cita como exemplos, na história recente do Brasil, Ulysses Guimarães, Teotônio Vilela, Dom Paulo Evaristo Arns, Dom Helder Câmara, Betinho e... Lula. É verdade que faz uma ressalva: “antes de se envolver nas paixões partidárias e de ser perder nos descaminhos entre o poder e suas facilidades, [Lula] mostrou como os trabalhadores podiam resistir ao regime autoritário”.
Um professor no poder
O livro do ex-presidente é o livro de um professor que passou pelo poder. Fernando Henrique Cardoso teve o cuidado de registrar diariamente suas impressões sobre os acontecimentos nos palácios do Planalto e da Alvorada, registro do qual o livro é apenas uma pequena amostra e que certamente vem a ser um dos mais importantes documentos da história política nacional. Ele mostra como a política brasileira é rasteira e provinciana também em âmbito federal e não apenas local ou regional. A velha imagem das negociatas políticas – que a bela telenovela Cidadão Brasileiro, da Rede Record, retrata tão bem – não pertence ao passado nem aos grotões.
O ex-presidente – que tudo justifica, tudo tolera e tudo compreende – consome grande parte do livro explicando o jogo político. Narra que seu governo se empenhou em realizar as reformas de que o país precisava, mas foi limitado ou paralisado pelas pressões dos políticos, mais preocupados com seus interesses particulares do que com os da nação.
O quadro dos “bastidores” que emerge do livro – longe de conter revelações bombásticas – é a confirmação da mesquinhez daqueles que nos representam nos poderes da República, ainda que a estabilização econômica e as reformas modernizadoras tenham sido fruto do esforço de um grupo competente, dedicado, idealista e patriota. É um desalento para quem ainda tem alguma esperança no futuro do Brasil. Talvez por isso o livro termine com um capítulo no qual o ex-presidente traça o que considera fundamental para sairmos “da letargia em que nos encontramos”. Sugere uma “convergência de propósitos” para “reestruturar as instituições educacionais brasileiras” num prazo de vinte anos.
O ex-presidente ocupa sete capítulos com a narrativa de acontecimentos que cercaram decisões importantes da política e da economia do período. O capítulo oito começa bem, com a tentativa do professor de compreender, a partir da sua experiência no poder, por que o Brasil é como é: a herança portuguesa, a burocracia, as elites conservadoras, a formação da cidadania. O leitor, no entanto, sente-se logrado quando da análise o autor passa a uma prestação de contas do seu governo, no melhor estilo das propagandas oficiais. Os capítulos nove e dez vão pelo mesmo caminho e podem ser pulados, exceto se o objetivo for colher dados para um trabalho escolar.
O final é salvo pela interpretação do sociólogo da situação atual do Brasil – marcada pela corrupção e pelo sentimento de impunidade “dos ricos e poderosos” – e pela proposta surpreendente de uma cooperação, “acima das lutas partidárias”, pela reconstrução moral do país.
Imprensa e política
Fernando Henrique destaca, no seu livro, importante papel da imprensa na democracia brasileira pós-ditadura militar. Ela atua indiretamente sobre o poder, como manifestação da opinião pública, servindo de contrapeso às forças que influenciam o poder diretamente: parlamentares, partidos, governadores e prefeitos, lobbies de empresários, de corporações, de funcionários públicos e até de movimentos sociais.
Os partidos brasileiros não se comportam coesamente como grupos ideológicos e os políticos não são disciplinados. As mais diferentes causas e interesses perpassam todos os partidos, reorganizando-os em novos grupamentos, conforme a questão em pauta. Esta prática é agravada pelo fisiologismo, isto é, pelos políticos – em geral pertencentes a partidos inexpressivos, mas não apenas a estes – que fazem da sua atuação parlamentar uma troca de votos por favores particulares ou para suas bases, que se traduzirão em vantagens pessoais ou em votos. Tudo isso torna a tarefa de governar uma permanente negociação de varejo em busca de aprovação dos projetos governamentais que devem se converter em leis no Congresso.
Nesse quadro, a oposição é muito sensível aos clamores da opinião pública, diariamente manifestada na imprensa. O resultado prático mais flagrante dessa influência são as Comissões Parlamentares de Inquérito (CPIs), sem sempre formalizadas e menos ainda – como vemos atualmente – eficazes, mas um tormento permanente para o presidente. Vale no caso, em geral, o ditado: “os cães ladram e a caravana passa” – seja qual for a caravana, isto é, o governo. Mas que fica uma enorme onda de poeira e um mau cheiro no ar, isso fica, adoecendo o presidente e membros da sua equipe e deixando na lembrança do povo uma convicção difusa de corrupção generalizada e, o que é pior, de impunidade.
Parte fundamental desse ambiente é o chamado denuncismo, praticado pela imprensa nas últimas décadas, principalmente a partir dos escândalos que levaram ao afastamento do então presidente Collor. É compreensível e mesmo necessário, nessa democracia recente e de práticas rasteiras, que a imprensa atue de forma vigilante. Ela faz certamente mais a favor do que contra a consolidação da democracia brasileira. No nosso mundo tecnológico, em que até o voto já é eletrônico, a imprensa é um poder democrático, que, de alguma forma procura compensar a ausência da participação popular nos quadriênio que separa duas eleições.
A questão que se coloca é sobre os danos que denúncias improcedentes trazem para cidadãos probos – políticos ou não – e para o País. Não há reparo (quando acontece) que recupere o estrago feito. O bandido pode tomar o lugar do honesto, abrigando-se no anonimato garantido pela proteção da fonte, e destruir um caráter ou um projeto idôneo. A imagem negativa que se forma sobre o próprio País na população tem conseqüências danosas.
Trata-se de uma questão delicada e das mais importantes para nossa imprensa que há apenas uma geração se acostumou com a liberdade. Seu desafio é não servir de instrumento para interesses escusos de bandidos, corruptos, inimigos das suas vítimas ou mesmo levianos, incompetentes e sectários. É afastar de si o cálice do sensacionalismo, fácil (para o repórter) e lucrativo (para o proprietário).
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