quinta-feira, 11 de novembro de 2010

Discoteca: Fatal - Gal a todo vapor

Vapor Barato é a canção de uma época. Quando os primeiros acordes do violão soam e aquele uoam-uoam-uoam-uoam-uoam da voz de Gal se espalha no ar, o mundo volta a 1971. Quem era jovem naqueles dias sabe do que estou falando. O disco gravado ao vivo, felizmente, eternizou aqueles momentos e nos dá a chance, rara nesta vida, de voltar no tempo, assim que colocamos o CD – ou o vinil – para rodar. O meu vinil foi roubado por uma amiga-namoradinha, que logo em seguida caiu na estrada, coisa comum na época. Nunca mais os vi. Levei muito tempo para recuperar o disco, em CD, e confirmar que aquele tesouro da juventude não tinha perdido o valor. Assisti ao show no Teatro Francisco Nunes, numa noite tenebrosa, como pareciam todas as noites do começo dos anos 70. O disco reproduz o espetáculo com detalhes como uma corda de violão que rebenta e a má qualidade acústica (merece ser remasterizado com as modernas e exaustivas técnicas que já nos deram um novo Elis e Tom). O show se divide em duas partes. A primeira tem tom intimista, Gal canta acompanhando-se ao violão. Sua voz é inigualável, o violão joanino, discreto. Em Vapor Barato o show muda – e muda, digamos assim, em pleno vôo. Depois da repetição de Fruta Gogóia, o belo uoam-uoam-uoam-uoam-uoam introduz Vapor Barato e anuncia a mudança de clima do show. No meio da canção, o violão é substituído pela guitarra elétrica, pela bateria, pelo baixo, tocados por um time de primeira, capitaneados por Lanny, e a voz de Gal se transforma em gritos lancinantes, e nem por isso é menos bela. Nem é preciso dizer que esta concepção do espetáculo foi de Wally Salomão, autor de Vapor Barato, com Jards Macalé. O número seguinte, Dê um Rolê, de Morais e Galvão, já começa no novo ritmo, com solo de guitarra, depois bateria e baixo. Naquele tempo os instrumentos se distribuíam com distinção nas caixas de som e a entrada da bateria é emocionante. Um dos segredos do disco é que Gal cantou MPB com clima de rock, o melhor rock’n’rol da virada dos anos 60. “Dê um rolê” é puro rock. “Não se assuste, pessoa, se eu lhe disser que a vida é boa”, brada Gal. Em 1971 era muito difícil acreditar que a vida é boa, daí o impacto do verso. “Enquanto eles se batem, dê um rolê e você vai ouvir apenas quem já dizia: eu não tenho nada, antes de você ser eu sou, eu sou, eu sou, eu sou amor da cabeça aos pés”. Não custa lembrar que Acabou Chorare estava no forno e Morais (ainda assinava assim, com i em vez de e, e sem o sobrenome Moreira) era o principal compositor dos Novos Baianos, a mais famosa expressão da geração paz e amor brasileira. “Enquanto eles se batem” quer dizer o quê? As letras daquele período perigoso eram cifradas, prestando-se a interpretações variadas – inclusive dos censores. Uma interpretação é que a letra se refere ao confronto entre grupos revolucionários armados e os porões da ditadura militar. Nossos hippies baianos não estavam nem aí pra esse confronto que infernizava o País. Gal lançava Moraes e Galvão, assim como lançava Luiz Melodia: a canção seguinte é Pérola Negra (Melodia só estrearia em disco em 73, com 10 composições próprias). Na seqüência final o disco (show) torna-se regional (Assum Preto), folclórico (Bota a Mão nas Cadeiras), carnavalesco (Chuva, Suor e Cerveja), novamente intimista (Maria Bethânia), para terminar na deliciosa Luz do Sol, de Carlos Pinto e Wally, que alterna revolta e doçura (“Saia, desapareça da minha vista! Apareça como a luz do sol batendo na porta do meu lar...”). Nesta mistura tropicalista a voz límpida de Gal domina instrumentos, ritmos e platéia extasiada. “Quero ver de novo a luz do sol!” é o grito que fica no ouvido do público, como último verso da canção. Gal a Todo Vapor é o ocaso do tropicalismo. Lendo o depoimento do José Simão (http://www.galcosta.com.br/sec_textos_list.php?page=1&id=23) sobre as “dunas da Gal” em Ipanema, naquele ano, a gente tem idéia do clima vivido pela artista e sua entourage no centro cultural do país, enquanto seus conterrâneos se adaptavam ao exílio em Londres. O tropicalismo, movimento solar, luminoso, se consumia alimentando-se do obscurantismo ao redor. O disco retrata isso, naquelas canções gritadas cheias de duplos sentidos, acompanhadas de instrumentos eletrônicos, misturando Roberto Carlos e Ismael Silva, Jorge (ainda) Ben e Humberto Teixeira, Caetano Veloso e Geraldo Pereira. Gal a Todo Vapor é um disco datado e de má qualidade técnica, repleto de microfonias, mas que importa isso? Tem autenticidade, e o que é verdadeiro se torna eterno. Regravações desse repertório, em estúdio, com muito mais recursos e qualidade, não conseguiram nunca reproduzir o impacto do show, que o disco ao vivo felizmente perpetuou. Gal cantando Sua Estupidez (de Erasmo e Roberto), na primeira metade do show, é uma coisa divina. A dupla de Carlos nunca mais fez canção tão bonita, ninguém se atreveu a cantá-la, porque ninguém cantaria tão bem como Gal o fez.
-Fa-tal Gal a todo vapor Gal Costa Show gravado ao vivo Ano: 1971 Tempo: 1h07 Faixas: 1- Fruta gogoia 2- Charles, anjo 45 3- Como 2 e 2 4- Coração vagabundo 5- Falsa baiana 6- Antonico 7- Sua estupidez 8- Fruta gogoia 9- Vapor barato 10- Dê um rolê 11- Pérola negra 12- Mal secreto 13- Como 2 e 2 14- Hotel das estrelas 15- Assum preto 16- Bota a mão nas cadeiras 17- Maria Betânia 18- Chuva, suor e cerveja 19- Luz do sol
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Em 1971, Assum Preto (Humberto Teixeira e Luiz Gonzaga), cantada por Gal Costa no show Gal a todo vapor, era uma canção de protesto, porque a letra podia ser ouvida como metáfora: “Assum preto verve sorto, mas num pode avoá. Mil vez a sina de uma gaiola, desde que o céu pudesse oiá...” O final é uma referência ao exílio de Gil e Caetano: “Assum preto meu cantar é tão triste quanto o teu, também roubaram o meu amor, que era a luz dos óio meus”. Outro verso: “Tarvez por ignorança ou mardade das pió, furaro os óio do assum preto, pra ele assim cantá mió”. O começo: “Tudo em vorta é só beleza, céu de abril e a mata em flô, mas assum preto, cego dos óio, num vendo a luz, canta de dô”.
Todo o show – e o disco que o eternizou, que escuto agora –, no repertório e na interpretação, é uma referência àqueles dias negros, de ditadura militar, repressão, obscuridade, exílio, prisões e mortes. Antonico é igualmente um lamento, um pedido de ajuda, não para quem canta, mas para um amigo muito bom, que sofre justamente por causa das suas qualidades. E naquele tempo tantas pessoas precisavam de ajuda de quem a podia dar! Uma pequena ajuda para sobreviver...
Ainda não foi escrito o romance daqueles dias, mesmo porque não existe um romance apenas. Eu posso escrever minha história, que nada tem a ver com a política, e, no entanto, será um romance daqueles dias negros. Como a obscuridade e a repressão atingiram um garoto de dezessete anos que não se envolvia com política! Na verdade, aquela reação nos jogava nos braços da esquerda (digo mesmo que o que temos hoje, esse PT reacionário, é resultado desse movimento ideológico de uma geração, da juventude dos anos setenta, que viu a saída da porta esquerdista, uma saída que não nos levou ao lugar que queríamos, mas que parecia ser a única saída, a saída luminosa, a saída heróica, a saída sectária). A história a ser contada é sobre isso, sobre como uma geração foi jogada nos braços da esquerda e trinta anos depois chegou ao poder, e como todo esse caminho é um desdobramento da obscuridade. Qual o caminho certo? É o que a história tem que discutir, não como um libelo, como aquela peça (Por um emprego público!), mas como um olhar pungente para nossa geração perdida, massacrada pela ditadura e desencaminhada pela esquerda.
Escrever ao som do disco, talvez de outros da época (pesquisar a trilha sonora).
Eu vi o show, isso pode ser um ponto de partida.

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