quinta-feira, 11 de novembro de 2010

A república e os militares

Talvez o melhor para o Brasil não fosse a república, em 1889 (nem Deodoro quer mesmo depor o imperador, apenas no ministério), mas a simples reforma constitucional, extinguindo o poder Moderador, criando uma monarquia parlamentarista, a exemplo da inglesa. A república, em 89, é outra incógnita. Sendo o Brasil uma nação que nasceu monarquia, que foi fundada por um imperador, como é que podia se tornar república? Para que é que devia se tornar república? Por que não simplesmente impor ao rei uma nova constituição, tirando-lhe o poder Moderador, aumentando o poder do parlamento? Por que a idéia da república, do presidente?

O fato é que a república nasce pela espada, embora embainhada, e tem como primeiros presidentes dois marechais. Os civis republicanos levarão alguns anos para tomar o poder para si; mais tarde, o poder lhes será tirado mais uma vez por mãos militares.

Assim como o Brasil nasce pelas mãos de um imperador, a república nasce pelas mãos de militares (em ambos os casos temos civis apoiando e incentivando, mas sem ter força para estar à frente).* Finalmente, em 1985, quando os militares se afastam (definitivamente?), depois de realizarem seu governo mais acabado, no qual tiveram todo o poder, sem dividi-lo com civis, parece que se inaugura uma nova ordem, inteiramente civil, pela primeira vez na história do Brasil, isto é, sem imperador e sem interferência militar (como aconteceu durante a república velha).

O Brasil tem tradição de rupturas tranqüilas (1822, 1889, 1985; nem mesmo 1930 e 1964 provocaram guerra civil), mas tem também tradição de repressão impiedosa a quem se levanta contra a ordem (as guerras de independência, as revoltas da Regência, da Chibata, Canudos, a Intentona Comunista, o AI-5).

As elites brasileiras que proclamam a república brincam demais com esse poder incontrolável das forças armadas. Não é à toa que durante todo o século XX os militares exercerão o poder, diretamente ou limitando o poder civil, afinal, são eles que deram à luz a república! Assim como Dom Pedro fecha a Constituinte e põe a coroa na própria cabeça, os militares poderão dizer: quem fez a república fomos nós. Ou: "presidente constitucional e defensor perpétuo pela graça de Deus e unânime aclamação dos povos, inviolável e sagrado".

A monarquia cai, obviamente, porque não havia ninguém mais para sustentá-la. É preciso lembrar que o Brasil foi criado contra o povo, o povo separatista, republicano e, naturalmente, democrático, porque o modelo de José Bonifácio, que Dom Pedro I encarnou e perpetuou na Regência e no Segundo Império, foi de uma nação com território indiviso e governo central forte. Isso já estava assegurado no final do império; o povo submetido inúmeras vezes, em todos os cantos da nova nação, não participou do golpe de Estado, a república foi uma coisa feita entre as elites.

O Brasil não precisava mais da monarquia, apenas a sabedoria política seria capaz de mantê-la – por exemplo, talvez se a reforma política viesse pelas mãos populares, mas aí faria tanta diferença que manter ou não a monarquia seria questão de menor relevância. A república é uma obra das elites, é como se ela dispensasse a família real, por não precisar mais dela: sua missão estava cumprida.

"Quem vamos colocar no lugar?", teriam se perguntado. Em primeiro lugar, o Exército, mas as mãos militares são muito perigosas... Por isso, as elites trataram logo de providenciar presidentes civis, eleições de quatro em quatro anos etc. Acontece que os militares tinham provado o gostinho do poder, e como um animal doméstico que um dia provou sangue, quiseram mais.

Foi assim até 1930, quando finalmente apoiaram o novo golpe, que não chegou a ser uma revolução, mas teve apoio popular, e chegaram ao poder. Fizeram um ditador, ou foram usados por um ditador. Vão derrubá-lo mais tarde, vão ensaiar novos golpes e contragolpes, com sucesso ou não, até que em 1964 conquistam o poder com exclusividade.

A questão da república brasileira é ter sido obra dos militares, que se sentem e se sentirão eternamente donos dela. Nesse sentido, a ruptura de 1985 é importante como queda do regime militar e ascensão do poder civil, sem interferência militar, num acordo de transição. Os militares se retiraram da cena, exauridos pelo exercício do governo, desgastados perante a opinião pública, menosprezados pelos civis (ninguém mais ousa hoje em dia, mesmo neste auge de desilusão com o governo civil de esquerda, pedir a volta dos militares ao poder).

Na verdade, os militares deveriam nos últimos anos se dedicar a recuperar a estima da nação, mas não se vê isso, o que talvez seja até bom, pois não se colocam como alternativa de poder novamente; melhor uma força militar desprestigiada num governo civil desgastado do que uma força militar admirada, que possa ser vista pela população como salvação nacional. O Brasil precisa afirmar o poder civil, contra todas as mazelas, contra toda a corrupção, contra todo o elitismo, contra toda a incompetência.

O sistema presidencialista dá a ilusão de que, de quatro em quatro anos, podemos escolher um novo salvador da pátria. Por enquanto estamos fazendo experiências. No que avançamos? Primeiro, na manutenção do governo civil, na estabilidade das regras. Em segundo lugar, na estabilidade econômica. Tudo isso é bom, mas é pouco, muito pouco num país tão cheio de misérias.

Não apenas a desigualdade social é muito grande, de forma que convivem no Brasil elites riquíssimas e um povo sem educação, sem saúde, sem moradia, sem emprego. O modelo econômico predador está destruindo o que sempre tivemos de melhor e que é o maior fruto do legado do império: as riquezas naturais de um país continental. Estamos destruindo a Amazônia, o Pantanal e o Cerrado, depois de ter secado rios e eliminado matas no Sudeste, no Nordeste e no Sul. A questão ambiental é fundamental no Brasil, é questão de sobrevivência, não é mais uma bandeira marginal, de luxo.

* Durante a história republicana brasileira, revezam-se no poder: militares, liberais e reformistas.

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