Na década de 1970 a esquerda brasileira discutia se a ditadura militar era a forma de governo definitiva no país. As desigualdades sociais eram tão grandes que muitos pensavam não ser possível manter a ordem a não ser sob um regime de força policial. Havia quem dissesse que as liberdades democráticas só seriam conquistadas numa sociedade socialista.
Os anos passaram, o regime militar acabou, o socialismo não veio, desde 1985 vivemos sob governos civis, diversas facções das esquerdas chegaram ao poder nos municípios, nos estados e no governo federal, elegemos três presidentes, em cinco eleições diretas. A nova ordem foi institucionalizada na Constituição de 1988, contemplando as tais liberdades democráticas. Passados vinte anos da nova Constituição, a primeira coisa que chama atenção é a duração da Carta, embora tenha sofrido uma revisão e diversas mudanças desde então. Apesar da vida longa das Constituições de 1824 (a primeira do país) e de 1891 (a republicana), desde 1930 o Brasil tinha ordem institucional instável: a Constituição de 1946 (da redemocratização), só durou 18 anos, a de 1934 (da Revolução de 30) apenas três. Tivemos ainda constituições ditatoriais, em 1937 e 1967.
Que importância tem o fato de a Constituição durar muito? Faz diferença para uma nação se suas leis são estáveis, embora no caso do Brasil, onde algumas leis pegam e outras não, e as que pegam não valem para todos – pobres e ricos são tratados de formas diferentes pela polícia e pelo Judiciário –, falar em leis estáveis seja levar a sério demais o que não passa de aparência. Ainda assim, a manutenção das regras eleitorais, por exemplo, é fator de educação política: eleição após eleição, governo após governo, o povo vai aprendendo as manhas do jogo, distinguindo os diversos políticos e partidos, separando o joio do trigo, definindo posições.
Quem viveu numa ditadura militar sabe que a democracia é muito melhor. A questão é: que democracia? Passadas três décadas, a esquerda que defendia as liberdades democráticas viu prevalecer suas idéias: a ditadura não foi sucedida por um governo socialista e mostrou-se possível conviverem no Brasil – como de resto na América Latina – o capitalismo e as liberdades democráticas. No entanto, aquela facção da esquerda que defendia a implantação de um governo dos trabalhadores, socialista, também não estava totalmente errada. A sociedade em que vivemos hoje está longe de ser uma democracia e daquelas liberdades democráticas ansiadas na ditadura, apenas algumas foram realmente alcançadas.
Impressiona que o capitalismo tenha conseguido sobreviver e prosperar no Brasil sem o apoio do regime militar, uma vez que ele pouco mudou nessas décadas. Aliás, muita coisa mudou para pior. A violência aumentou, a educação pública piorou, a propriedade da terra foi concentrada, o transporte coletivo, os problemas das grandes cidades em geral se agravaram nas últimas décadas de governos civis. Principalmente, as profundas desigualdades sociais permanecem. Como é que o capitalismo se mantém nessas condições sem o uso permanente da força?
Se a gente pensa que está hoje no poder um presidente que há 30 anos a esquerda “democratista” começou a idolatrar como líder operário, podemos deduzir que essa esquerda tem parcela de responsabilidade na manutenção da ordem. Pelo menos podemos afirmar com segurança que as desigualdades sociais no Brasil sem mantiveram com governos da esquerda “democratista”. Antes do presidente Lula, ocupou o cargo outro político que esteve na oposição ao regime militar, e também no seu governo as desigualdades permaneceram. É realmente impressionante a capacidade do capitalismo de cooptar lideranças e partidos de esquerda!
Da mesma forma, é fácil constatar que as frações socialistas da esquerda brasileira fracassaram nessas três décadas. Não apenas as idéias revolucionárias não prevaleceram na esquerda, como também elas praticamente se extinguiram. Em nenhum momento desde 1977 – para citar um ano em que as manifestações de massa ressurgiram – as esquerdas revolucionárias se tornaram hegemônicas. E olha que tivemos muitas crises: a campanha das diretas, o Plano Cruzado, o impeachment do ex-presidente Collor, recessão econômica... Na verdade, sequer temos uma esquerda revolucionária.
No entanto, a democracia na qual vivemos e as liberdades democráticas apregoadas pela própria esquerda, há 30 anos, mostram-se hoje como são: ideologia burguesa, representação da realidade capaz de iludir as massas e manter a ordem capitalista. Ideologia não da direita mais reacionária, atrasada, troglodita, mas ideologia da esquerda a serviço dos proprietários, dos ricos, dos capitalistas, das classes dominantes. A esquerda revolucionária que um dia denunciou esse “desvio” político entre seus “companheiros” não sobreviveu para cobrar a conta, para colher os louros, para dirigir as massas em outra direção.
É isso que torna o mundo tão complexo. No fundo, o que conta é muito simples: a busca do lucro, o capitalismo, dirigindo a sociedade. Basta ver o que acontece hoje com os alimentos: nunca se produziu tanto, no entanto, faltam alimentos; nunca se ganhou tanto dinheiro com alimentos, no entanto, a fome aumenta. Alimentos e terras são produzidos e comercializados de forma especulativa, não mais por agricultores, mas por fundos de investimentos. Para qualquer ponto da economia que olharmos veremos sempre a mesma cena: capitalistas especulando em busca de lucros maiores. À medida que isso acontece, os ricos ficam mais ricos e o número de pobres aumenta. Para estes, é cada vez mais difícil satisfazer suas necessidades básicas de sobrevivência, embora vivam num mundo de abundância.
Se é isso que move o mundo, no fim das contas, por que é tão difícil percebê-lo? Porque no dia-a-dia do mundo o capitalismo se fantasia de mil formas. Na política, por exemplo, a dominação de meia dúzia de ricaços não se faz pelo controle direto de armas e exércitos, mas por caminhos sinuosos da política, com corrupção de autoridades, aprovação de leis, fornecimento a Estados, convencimento da opinião pública, controle de meios de comunicação. Assim foi que o PT, o maior partido de esquerda da história do Brasil, às vésperas de tomar o poder, na eleição de 2002, fez um acordo com as elites e trocou seu programa por outro, com concessões essenciais ao neoliberalismo.
Tal acordo inclusive legitima a direita e descredencia a esquerda, uma vez que é interpretado da seguinte forma: como esquerda Lula nunca chegaria ao poder, foi preciso caminhar para o centro. O núcleo dirigente do PT seguiu o conselho dado pelo ex-presidente Collor em 1999, quando ainda estava com direitos políticos cassados: não se vence eleição majoritária sem alianças, sozinha a esquerda não chega ao poder. O Lula presidente no século XXI é muito diferente daquele líder operário do final do século XX, assim como os aliados do PT são muito diferentes daqueles com quem o partido caminhara até então.
O PT no poder confirma uma velha máxima comunista: ninguém serve tão bem ao capitalismo quanto a esquerda reformista. Sem atacar os pontos que põem em xeque o capitalismo, o que a esquerda reformista faz é aparar arestas para tornar o sistema suportável, além de se comportar tão bem de forma que a direita não a acuse de ser... socialista. Assim foi que, ao assumir o governo, Lula cuidou, antes de tudo, de pôr em ordem as finanças, com políticas que enriqueceram ainda mais os banqueiros e especuladores, e que retomaram o caminho do desenvolvimento, isto é, do lucro.
A política econômica de Lula é um sucesso sem similar nos governos civis pós-85. Em contrapartida, o que se pode dizer de questões muito mais importantes, como a distribuição da terra, a saúde pública, a distribuição de renda e principalmente a educação pública? Certamente alguma coisa melhorou em relação a governos anteriores, mas a distribuição de renda nem de longe faz sombra ao enriquecimento das elites.
Lula, como Fernando Henrique, sucumbiu à sedução capitalista do sucesso individual em detrimento de interesses das classes trabalhadoras, mas terão ambos sido diferentes algum dia? Sobre o pavão FHC não há dúvida, mas também Lula nunca teve compromissos claros de classe, nunca teve posições radicais contra o capitalismo. Basta-lhe passar à história como um bom presidente, melhor do que os burgueses, ele que foi retirante e metalúrgico. Não pretende fazer nada para eliminar as profundas desigualdades sociais do Brasil. Ele fica do lado que se sensibiliza com os pobres, o lado “progressista” dos capitalistas, mas não contra eles. Certamente, para os pobres, para os trabalhadores e para a esquerda, é melhor o governo Lula do que o governo FHC ou o governo Collor, ou o governo Sarney e muito mais do que a ditadura militar, mas ele não faz nem fará um governo de esquerda.
As liberdades conquistadas com o fim do regime militar e a Constituição de 1988 são basicamente as liberdades burguesas, isto é, as liberdades que interessam à burguesia, aos proprietários, aos capitalistas, aos investidores, aos donos de dinheiro – liberdade de propriedade.
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