No Brasil, as autoridades são as primeiras a não cumprir a lei. Em se tratando de funcionários públicos, cometem um crime a mais, o da prevaricação, que é a não realização da sua obrigação, ou seja, zelar pelo cumprimento da lei. As autoridades corregedoras, cuja função precípua é fiscalizar as demais autoridades, também não cumprem as leis.
Se o Estado não cumpre a lei, quem há de? Se o Estado não cumpre a lei, para que serve? As respostas para estas perguntas explicam a essência do Brasil – ou será que a essência do Brasil é que responde a essas perguntas? O fato é que o entendimento do Brasil passa por aí. A lei no Brasil é conversa fiada, o entendimento geral é que só os trouxas a levam a sério e a seguem. O Estado usa as leis para se beneficiar, não segue aquelas que não o beneficiam. O cidadão que não é trouxa, o “esperto”, dá um jeitinho para se livrar delas. No Brasil, qualquer funcionário público é otoridade. A lei serve principalmente para demonstrar quem manda. É a célebre frase: “Você sabe com quem está falando?” A lei brasileira encerra o princípio básico nacional do autoritarismo: ela existe para subordinar o cidadão e propiciar a corrupção das autoridades.
É óbvio que o sentido universal da lei é outro, ela existe para subordinar o interesse particular ao interesse coletivo, mas não no Brasil, pois, como vimos, o Estado não cumpre a lei e as autoridades favorecem aqueles que as favorecem. No Brasil não existe a noção de “propriedade coletiva” ou “bem público”. O que é de todos, no Brasil é de ninguém – ou é do Estado. No Brasil, confundimos Estado com governo e este é identificado com as otoridades que o ocupam. Trata-se de uma subversão total da democracia, o que faz com que, mesmo vivendo numa sociedade “democrática” há 25 anos, o autoritarismo continue prevalecendo. Isso explica por que grande parte do aparato da ditadura militar continua intacto – as polícias, por exemplo.
O brasileiro comum não compreende que, quando elege um vereador ou um deputado, um prefeito ou um governador ou o presidente, está escolhendo um funcionário – como uma empregada doméstica, por exemplo. Não compreende que a “autoridade” deverá lhe prestar contas, que é subordinada a ele, e que ele, simples eleitor e cidadã comum, é mais importante do que ela. Não compreende que é ele que paga o salário das “autoridades” e as contas de todos os privilégios que elas desfrutam. O eleitor brasileiro não se identifica com o candidato, não acompanha seu trabalho, não exige prestação de contas, não o julga ao final do mandato.
Para nós, brasileiros, o Estado – as autoridades, os políticos, a lei –, assim como os ricos, compõem uma entidade abstrata que existe além de nós, independentemente de nós, e que nos subjuga. Não é à toa que somos obrigados a votar. O voto obrigatório é mais uma instituição nacional autoritária que sobreviveu à ditadura militar. O brasileiro vota porque é obrigado, não porque está escolhendo pessoas para administrar uma esfera da sua vida, a vida coletiva. O brasileiro não escolhe um igual a ele, escolhe um diferente, escolhe entre os candidatos da casta dos poderosos. Por isso ele ri daquele igual a si que assume a pretensão de ser candidato e desconfia daquele outro igual que é eleito: certamente tem alguém (poderoso) por trás dele. Ser autoridade não é para qualquer um. Ou: manda quem pode, obedece quem tem juízo. Nós, os eleitores, pertencemos à casta inferior dos que obedecem.
Se nos comportarmos bem, se paparicarmos os poderosos certos, poderemos nos dar bem também – não como eles, mas o bem que cabe ao inferior que se dá bem, ou seja, se apropriar das migalhas de poder e riqueza. Um motorista de uma autoridade tem também uma parcela de otoridade. A canção do Gonzaguinha “Comportamento geral” ultrapassa uma época e se mostra atual ainda hoje, pois, ao contrário do que se podia julgar em 1973, não fala da submissão do brasileiro à ditadura militar, mas de comportamento que está entranhado na nossa cultura.
Obrigados a votar, alguns de nós procuram escolher aquele “diferente” que é “menos ruim”. Espera que ele “roube menos”, faça “alguma coisa”. A maioria faz da ocasião uma oportunidade para exercer o “jeitinho brasileiro”, e troca seu voto por algum benefício particular. O jeitinho brasileiro é a outra face da moeda do autoritarismo.
Não é por acaso que a assunção de um ex-operário à presidência da República nada muda na essência do país. A educação, questão fundamental para transformar o país, não é prioridade do governo “dos trabalhadores”. A democratização do poder, a participação dos cidadãos nas decisões, a abolição dos privilégios dos parlamentares, dos juízes, do funcionalismo em geral em detrimento dos trabalhadores da iniciativa privada (aposentadorias, estabilidade, salários extras, carga horária etc) são assuntos que jamais entraram em pauta.
A estabilidade econômica e a valorização da moeda, durante décadas sonhadas e que nos primeiros anos provocaram distribuição de renda e crescimento, com o passar dos anos mostrou seu efeito mais perverso: a carga tributária cresce sem parar, a sociedade produz para manter o Estado. Se o Estado é como disse o monstro da selva brasileira, não poderia ser de outra forma. É preciso alimentá-lo. Ano após ano, a inflação é contida pela concorrência, que mantém baixos os preços do produtos vendidos pela iniciativa privada, enquanto sobem os preços dos serviços públicos e administrados pelo Estado.
Um exemplo: o aluguel de uma sala já é superado pelas despesas que ela acarreta, tais como o IPTU, o condomínio, a energia elétrica, o telefone e outras taxas. Outro exemplo: os preços cobrados pelos profissionais liberais não aumentam ou aumentam pouco, enquanto as despesas que eles têm para trabalhar, inclusive – e principalmente – impostos, não param de crescer. O Estado cria taxas e novas taxas todos os anos.
Se Marx tivesse nascido no Brasil jamais criaria a teoria da luta de classes. No Brasil contemporâneo, mais do nunca, existem castas: os marajás do Estado, os ricaços à margem da lei, as camadas médias melhor ou pior protegidas pelo Estado, as camadas médias que teimam em viver por conta própria, e agora o povão, beneficiado pelas políticas de filantropia do governo federal. São as camadas médias que sustentam o Estado, especialmente as camadas médias do setor privado. Elas, assim como o povão, sabem disso; não foi à toa que Collor se elegeu empunhando a bandeira de combate aos marajás. O povo brasileiro às vezes escolhe um guia e aposta nele. Sempre é traído.
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