Toda a questão do que se convencionou chamar de independência do Brasil se resume a entender quem faz a independência. Se ficamos restritos à idéia de que o Brasil se tornou independente de Portugal em 1822, não conseguimos entender o que se passa, porque a independência não se restringe a essas duas forças, brasileiros e portugueses. Há uma terceira força, a força que prevalece na independência, e esta força é Dom Pedro. Entender esta terceira força é fundamental para compreender o processo de independência e de fundação do Brasil, que define o Estado brasileiro.
Dom Pedro representa exatamente o Estado no processo de independência. Entre brasileiros e portugueses, existe o Estado, representado em Dom Pedro, na família real portuguesa, na monarquia. Na independência do Brasil, Dom Pedro tem interesses próprios, distintos dos interesses brasileiros e também dos interesses portugueses.
A primeira coisa que precisamos ter em mente é que em 1822 não existe Brasil. O que existe é um imenso território que pertence a Portugal, um diminuto, decadente e reacionário país europeu. Não existe Brasil no sentido que compreendemos a nacionalidade, hoje; existem povoamentos em várias regiões, com características culturais, humanas, geográficas e econômicas diferentes, sem qualquer ligação entre eles. A única coisa a ligar os “brasileiros” do Norte, do Nordeste, do Centro e do Sul é o fato de serem súditos portugueses.
Ao contrário do que se pensa, a história do Brasil é uma história de muitas rebeliões, mais ou menos populares, mais ou menos gerais, mas em grande número e com características comuns: são rebeliões que terminam com o massacre e a submissão do povo rebelado (a exceção, em parte, é a rebelião gaúcha – fato que ajuda a entender a Revolução de 30, Getúlio, Jango e Brizola), o que significa que, sistematicamente, o povo e as melhores cabeças do Brasil são derrotados, submetidos e mortos. Isso acontece na colônia, mas também no processo de independência, na monarquia e até na república.
No começo da década de 1820, a monarquia portuguesa corre risco. A monarquia portuguesa é uma monarquia reacionária, absolutista, e por isso a família real foge da Europa e vem se abrigar no Brasil. Está fugindo da revolução francesa, está fugindo de Napoleão. Durante 13 anos o Brasil se torna a sede da monarquia portuguesa, condição determinante no processo de independência: a corte brasileira não aceitará, mais tarde, voltar à condição de colônia, e Dom Pedro, que aqui chegou com nove anos, se sente mais brasileiro do que português. Como se verá, no entanto, mais ainda do que brasileiro, ele se sente membro da família real portuguesa e herdeiro do trono.
Há outra conseqüência decisiva da vinda da corte para o Brasil: os portugueses que permanecem em Portugal derrotam o exército napoleônico e não querem mais uma monarquia absolutista; eles fazem uma constituição liberal, obrigam Dom João VI a jurá-la e a retornar. De volta a Portugal, Dom João VI é um monarca de poderes limitados pela constituição e a casa de Bragança corre risco. Os passos seguintes da revolução liberal do Porto são exigir que Dom Pedro, o herdeiro do trono, que permanecera no Brasil como príncipe regente, também retorne e que o Brasil volte à condição de colônia portuguesa.
Neste momento, os três interesses estão muito nítidos, mas se confundem: o interesse de independência dos brasileiros, o interesse colonial português e o interesse da família real, que é conservar o trono – no Brasil e em Portugal. Para Dom Pedro, voltar significa submeter-se ao liberalismo português e perder o trono no Brasil, e não é isso que ele quer; sem a presença do príncipe regente, a independência do Brasil só pode se dar pela via republicana, como acontece nas demais nações americanas.
Dom Pedro não rompe com Portugal – e provas disso são que, mesmo na independência ele reafirma sua submissão ao pai, rei de Portugal, bem como, mais tarde, volta à pátria para recuperar o trono para sua filha. O que ele quer é manter o trono para sua família, tanto no Brasil quanto em Portugal, conservando, assim, os laços entre os dois países. O que ele não aceita é a submissão às cortes portuguesas e à revolução liberal.
Também não aceita os liberais brasileiros e muito menos, obviamente, os republicanos. Ele se apóia nos brasileiros para enfrentar os portugueses e expulsar as tropas fiéis a Lisboa, mas também se apóia nos portugueses para derrotar os brasileiros liberais e republicanos, e mais ainda: apóia-se em mercenários estrangeiros para derrotar brasileiros e portugueses liberais. A carnificina de brasileiros não começa nessa época, ela apenas dá continuidade à tradição colonial, mas institucionaliza-se como método de fundação do Estado brasileiro, que será seguido no primeiro império, no período das regências e no segundo império.
É compreendendo Dom Pedro como fundador do Brasil que podemos entender o processo de independência e principalmente que tipo de nação nos tornamos. Quem faz a independência é questão fundamental. A independência do Brasil é feita pelo Estado, não é feita pelos brasileiros; não é na verdade um processo de independência, mas de fundação de um novo reino, de uma monarquia absolutista na antiga colônia portuguesa na América. É uma afirmação do território português como propriedade da casa de Bragança. Dom Pedro funda seu Estado e seu império submetendo os “brasileiros” – melhor seria dizer os povos – do Norte, do Nordeste e do Sul, com guerra e violência, mas também os do Centro (na dissolução da Constituinte e prisão dos seus membros).
As provas de que Dom Pedro não quer fazer a independência, mas fundar seu império, estão nos fatos que se seguem ao mítico grito do Ipiranga: no fechamento da Constituinte, nas repressões aos rebeldes, no apoio que ele busca e obtém de portugueses fiéis. Tudo isso leva, nas décadas seguintes, a conflitos entre “brasileiros” e “portugueses” (entre os quais Dom Pedro não faz distinção, ele distingue apenas súditos fiéis e súditos infiéis) e ao desgaste da imagem do imperador como herói da independência. Fca cada vez mais claro para os brasileiros que Dom Pedro tem seus próprios interesses, até que em 1831 ele abdica a favor do seu filho e parte para fazer a guerra ao irmão Miguel e recuperar o trono português para sua filha.
Este episódio é marcante para a fundação do Brasil, porque mostra o sucesso de Dom Pedro. A fundação do Brasil por Dom Pedro significa, em primeiro lugar o que o nome indica: a criação do Brasil. Sem ele, é possível que o Brasil não existisse – mas que importância isso tem para o cabano que lutou por uma república na Amazônia e foi morto pelo império? Ou para o mártir Frei Caneca, que queria fundar uma república no Nordeste? Ou para os negros baianos massacrados em rebeliões de escravos ou na Balaiada? Ou para os farrapos do Rio Grande do Sul, cuja vocação era para integrar uma república dos Pampas, ao lado do Uruguai e da Argentina?
Que grande significado existe em ser brasileiro para aqueles que morreram ou foram submetidos e para as gerações dos seus descendentes, oprimidos? Certamente a história dessas pessoas teria sido melhor se aqui existissem várias repúblicas criadas por eles, ou, numa hipótese otimista, uma única república integrada por todas essas regiões.
Dom Pedro funda um Brasil monárquico absolutista (o imperador tem o poder moderador, que dissolve gabinetes e câmaras, e governa de acordo com sua vontade), em que as regiões se submetem à corte, em que os indivíduos se submetem ao Estado. Em situação muito melhor do que os brasileiros ficam os portugueses, aqui residentes, que continuarão durante muito tempo tendo grande influência no governo, na economia e na sociedade brasileira, mesmo porque as elites governantes brasileiras mantêm como referência cultural não a América e o Brasil, mas a Europa.
Dom Pedro funda uma monarquia capaz de existir mesmo sem rei! É o que acontece quando, hostilizado pelos brasileiros, ele parte para Portugal e abdica do trono em favor do seu filho de apenas cinco anos. Durante nove anos o Brasil será governado por brasileiros, mas não deixará de ser monarquia, não se tornará república, não deixará de ser o Estado dos Bragança. Os regentes são, se não mais, tão cruéis contra os brasileiros rebeldes (liberais e republicanos) quanto os reis da casa de Bragança. E o Brasil segue sendo uma nação com governo centralizado e absolutista, submetendo as demais regiões, as populações que não lhe são fiéis. Um país em que o Estado se afirma contra os cidadãos.
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